O URUBU
Meia noite em meu terreiro — eu cansado e já cabreiro compulsava por inteiro velhos livros de vodu; já pescava, adormecendo, quando ouvi alguém batendo, gentilmente me rangendo, range em meu vestíbulo. “Deve ser uma visita junto ao meu vestíbulo”, eu dizia “sem rebu”. Eu me lembro com desgosto, num moroso mês de agosto, quando o fogo no seu posto fenecia ainda cru; e eu varava a noite escura procurando na leitura um remédio para dura, dura falta de Lulu — essa moça radiante – nome angélico – Lulu, jaz num pouso anônimo. E a sedosa triste sina que corria na cortina já me invade e me alucina com pavor de algum exu, quando o coração batia, e eu, corado, repetia: “É visita em noite fria junto ao meu vestíbulo, só visita que tardia bate em meu vestíbulo, é só isso, sem rebu”. Mas então fiquei mais forte, mais altivo no meu porte “Moço ou moça, me desculpa, peço por obséquio; fato é que eu, adormecendo, vem você aqui batendo de levinho aqui rangendo e range em meu vestíbulo, mal ouvi, abri a porta” – aqui do meu vestíbulo, só o escuro, sem rebu. Nesse escuro tão profundo, resto triste e tremebundo, duvidando dos demônios que podiam dar chabu; mas silêncio ali reinava e mais parado o ar ficava e esse som que martelava, era o nome da “Lulu”? Sussurrei o nome dela e ouço o eco, só “Lulu” – simples, isso, sem rebu. Para dentro já voltando, toda a alma me queimando, logo escuto alguém batendo, pulo feito um cururu. “Deve ser vento que encana e passa na veneziana; anda logo, desencana, e já desfaço todo o angu, fico calmo num instante e já desfaço todo o angu;– foi o vento, sem rebu!” Abro a tranca da janela sem deixar de pensar nela, ali pousa, majestoso belo, arcaico – um urubu; não fez gesto de respeito, só pousou no parapeito, com orgulho no seu peito; e eu no meu vestíbulo vejo o ser empoleirar-se em Palas no vestíbulo, repousando sem rebu. Esse bicho tez-noturna logo alegra a dor soturna com o sério e decoroso ar de um ser impávido. “Tua crista sem alarde diz que tu não és covarde, urubu da cinza tarde dessa eterna noite azul, dize enfim qual é teu nome na plutônia noite azul!” Urubu diz: “Noteucu”. Galináceo petulante, se pasmei de o ver falante, seu discurso irrelevante pareceu ridículo. Ora, vamos e venhamos, que jamais nós encontramos, nesta vida que levamos, ave num vestíbulo – bicho ou besta sobre um busto belo no vestíbulo, com tal nome: “Noteucu”. E o urubu tão solitário sem sequer um dicionário inseria a sua alma nesse termo críptico. Sem palavras mais amenas, nem mexia suas penas, murmurei a duras penas: “Aves passam sem tabu, passam todas esperanças que guardei no meu tabu”. A ave insiste “Noteucu”. Assustado pela rara intervenção que me tomara, eu falei “O que essa fera fala vem do seu baú, que algum dono distraído, desastrado e destruído ensinara por ruído em canto melancólico, ‘té que em desespero resta o canto melancólico: ‘Noteucu’ e ‘Noteucu’”. E o urubu de tez noturna logo alegra a dor soturna, e eu me sento em frente a busto e besta em meu vestíbulo. Me afundei nessa cadeira e meditei uma hora inteira sobre a fala sobranceira e ominosa do urubu sobre o som insano, seco e ominoso do urubu com aquele “Noteucu”. Eu me engajo matutando, som nenhum articulando para a fera cujos olhos cravam meu espírito; e eu pensava nisso tudo com o couro cabeludo na almofada de veludo sob a luz de um abajur; ela sobre esse veludo, sob a luz desse abajur nunca mais porá o cu! Pareceu-me o ar mais denso perfumado por incenso que algum anjo ali passando porta em seu turíbulo. “Deus mandou-te de repente por um anjo penitente como alívios e nepente pras lembranças de Lulu; Bebe, bebe o bom nepente, esquece a morte da Lulu!” O urubu diz “Noteucu”. “Mau profeta, ó ser trevoso!–seja bicho ou o tinhoso!– se te trouxe um tentador ou se és de longe um náufrago, desolado mas ousado, neste deserto encantado, num castelo enfeitiçado – conta, por obséquio – Tem alívio em Gileade? Diz, diz, por obséquio!” “Tem alívio Noteucu.” “Mau profeta, ó ser trevoso! – seja bicho ou o tinhoso! – Pelo santo paraíso – por bom Deus ou por Jesu – dize ao peito que hoje impedem dores, lá no arcaico Éden onde encontra quanto pede, em nome angélico, Lulu, onde encontra alguma sede, em nome angélico, Lulu.” O urubu diz “Noteucu”. “Que isso seja a despedida!”, eu gritei, “Ave atrevida, vai, retorna à tempestade da plutônia noite azul! Não me deixes pluma rude da mentira que me ilude! Deixa a minha solitude! Sai do meu vestíbulo! Tira o bico deste peito e some do vestíbulo!” O urubu diz “Noteucu”. E o urubu jamais revoa, mas repousa nessa proa sobre o busto da alva Palas junto ao meu vestíbulo; no seu olho já centelha algum demônio que se espelha, e a lanterna agora velha lança a sombra do urubu, e minha alma dessa sombra persistente do urubu se liberta? Noteucu!
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Fróes.
trad. Guilherme Gontijo Flores & Rodrigo Tadeu Gonçalves
no blog Escamandro 11/07/2016