Leminski afirma que é magra a safra de um poeta de haikai. "Já não bastasse a extrema escassez de meios que esta forma implica, algumas palavras, alguns buracos, o haikai demanda dias e dias de brisa e mormaço, birita e desempenho, desespero e euforia, namoros e despedidas, só os piores e os melhores pedaços de vida. Um belo momento, pinta." 21
soprando esse bambu a noite
só tiro me pinga uma estreia no olho
o que lhe deu o vento e passa
a chuva é fraca casa com cachorro brabo
cresçam com força meu anjo da guarda
línguas-de-vaca abana o rabo
a chuva vem de cima duas folhas na sandália
correm o outono
como se viesse atrás também quer andar
cortinas de seda viu-me, primeiro frio do ano
o vento entra e passou, fui feliz
sem pedir licença como um filme se não me engano
É quando a vida vase enfim, rio do mistério
É quando como quase nu, que seria de mim
Ou não, quem sabe. como vim se me levassem a sério?
Sobre a riqueza, virtude semântica e polivalência de significados que latejam "nos interstícios das 17 sílabas que Matsuo Bashó e seus discipulos elevam à categoria de grande arte", ele lembra, no livrinho fundamental Matsuo Bashô, a lágrima do peixe, 1983, que a escrita japonesa se grafa com um sistema de escrita composto de dois subsistemas: e' necessário usar kanji, ideogramas de origem chinesa, mais um silabário, hirakaná.
"Acontece que o japonês é idioma aglutinante (como o tupi, as línguas indígenas da América, o basco, o turco, finlandês, o húngaro) de mecanismo muito distinto do chinês (monossilábico, como o tibetano, o vietnamita, o thai). Japonês tem terminações, conjugações de verbo, sufixações: o núcleo dos substantivos e verbos é dado em ideograma, kanji, as terminações morfológicas em silabário", escreve Leminski. 22
Ele cita o estudioso americano Donald Keene: 23
"O japonês clássico é uma língua de frases intermináveis, às vezes literalmente intermináveis e, nesse caso, se deixam incompletas, no vigésimo ou quadragésimo giro, como se seus autores desesperassem de chegar jamais ao término da sua tarefa".
Em contraste, o chinês clássico "é uma língua monossilábica, escrita sem modulações gramaticais, apenas uma morfología posicional, com entonações musicais, que servem para diferenciar muitas sílabas que são idênticas".
"O japonês é polissilábico, não tem as entonações musicais do chinês, e soa um pouco como o italiano, pelo menos para os que não sabem italiano", comenta Keene. 24
Leminski emenda citando R. H. Blyth: 25
"O gênio da língua japonesa era bem difrrente do chinês. Não só sujeito, predicado e objeto eram, até um grau, indistinguíveis, e a pontuação inexistente, mas até o perfil das palavras era borrado". E complementa: "Em japonês, não existem artigos nem plural".
Blyth arremata: "Na vida, sujeito e predicado não estão fixados, nem causa nem efeito (...) Coisas não começam com letra maiúscula e terminam com um ponto final". Leminski: "A língua japonesa, idioma meio sem parentescos históricos visíveis com outros, é vaga, fluida, cheia de gerúndios, soltos, sem conexões sindéticas claras: o sistema de preposições e conjunções do japonês clássico é líquido, com ambigüidades entre em, e, e de (ni, to, no). Nessa língua, talvez, Descartes não conseguiria dizer: 'penso, logo existo'. Nela não existe articulação, causa ou consecutiva desse rigor, pensado em latim".
O haikai é parte de um conjunto plástico maior, pintando como mancha integrante de um desenho caligráfico onde ambos, desenho e texto são traçados a pincel num mesmo momento da composição. Leminski: "A tudo isso, soma-se a riqueza própria do ideograma chinês, entidade pictocaligráfica, irrepetível e incorrigível como uma rubrica. Essa riqueza de significados do haicai é garantida, ainda por outro traço formal distintivo: os haikais japoneses não têm título". 26
Finalmente, Leminski observa que é fundamental que esse processo de escrita seja caligráfico, feito à mão: "Isso implica deformações personalizadas, que, embora quase destruam o signo de origem, com ele mantêm relações plásticas e icônicas tais que permitem sua leitura no interior da comunidade dos praticantes desse código".
"Há, sobretudo, naturalmente, o plano fonético do haikai, com tramas sonoras muito elaboradas: o japonês é língua foneticamente muito simples, sílabas completas tipo consoantevogal (yúkí, nátsu, aki, kokorô, tábi, úmi), sem encontros consonantais violentos, permitindo mini-harmonias acústicas sutis, com inversões, espelhismos, aliterações, repercussões, harmonias imitativas, onomatopéias, ecos, rimas esparsas. A poesia japonesa não conhece a rima, como tal, a coincidência sonora obrigatória no final dos versos". 27
Leminski, lia e traduzia japonês (é sua a tradução de Sol e aço, 1985, de Yukio Mishima), que começou a aprender desde quando era um jovem judoca (chegou a faixa preta e professor). Ele demonstra as complexidades e musicalidades do haikai japonês, traduzindo alguns originais, inclusive este, de Bashô: 28
úmi kuretê o mar escurece
kamô no koê a voz das gaivotas
honoká ni shirôshi quase branca
O haikai de Bashô, diz Leminski, "é um severo exercício de linguagem. Basta ver a tessitura material, o jogo fonético, no plano do significante deste haicai, que em japonês soa assim: 29
kare eda ni árvore curva
karasu tomarikeri o vôo do corvo
aki no kure inverno
"Esse haikai", prossegue Leminski, "apresenta um grau de elaboração ao nível físico da linguagem (assonâncias, paralelismos, paronomásias, ecos), de tal nitidez que poderíamos, sem medo, incluí-lo naquela categoria de 'poema artificial' do filósofo alemão Max Bense. Basta ver a série: kake/kara/keri/kure... O haikai é uma bateria de 'k', a konsoante de aki..."
Falando sobre kakekotoba, ou seja, "palavra pendurada", Leminski lembra a explicação de Donald Keene: "O limitado número de sons possíveis na língua japonesa deu lugar inevitavelmente, a muitos homônimos e há inúmeras palavras que contêm outras ou partes das palavras distintas. Por exemplo, a palavra shiranámi, que significa 'ondas brancas', poderia sugerir a um japonês a palavra shiranu, que quer dizer 'desconhecido' ou námida que quer dizer 'lágrima'." 30
"A função do kakekotoba consiste em ligar duas ideias diftrentes mediante um giro ou desvio do seu significado próprio", conclui Keene. "O kakekotoba mostra um traço característico da língua japonesa: a compressão de muitas idéias num espaço reduzido, por meio, geralmente, de jogos de palavras que produzem uma dilatação dos harmônicos da palavra".
Mas a melhor definição, antológica, de kakekotoba é do próprio Leminski: "É a passagem de uma palavra por dentro da outra, nela deixando seu perfume. Sua lembrança. Sua saudade." 31
Ele define, ainda, as funções dos três versos do haikai, assim reduzido ao seu "esqueleto fonético-formal": 32
_ _ _ _ _
_ _ _ _ _ _ _
_ _ _ _ _
O velho tanque:
"O primeiro verso expressa, em geral, uma circunstância eterna, absoluta, cósmica, não humana, normalmente, uma alusão à estação do ano, presente em todo haicai."
O sapo salta:
"O segundo verso exprime a ocorrência do evento, o acaso da acontecência, a mudança, a variante, o acidente casual. Por isso, talvez, tenha duas sílabas a mais que os outros."
O som da água:
"A terceira linha do haikai apresenta interação entre a ordem imutável do cosmos e o evento (...) o terceiro verso de um haikai não é uma conclusão lógica: parte de uma obra de arte, é o membro de um poema."
Mais adiante, Leminski comenta: "Assim, muita complexidade está lá, escondida dentro dos haikais, aparentemente, mais banais. Os de Matsuo Bashô podem ser qualquer coisa: menos banais." E traduz, a seguir, um de seus haikais que revelam toda a sua humanidade e humor zen-budista: 33
em minha cabana
tenho o que oferecer pelo menos
os mosquitos são pequenos
Mais Bashô, por Leminski: 34
em kyoto lua onde está?
com saudades de kyoto o sino caiu
o hototoguisu no fundo do mar
flor pura
pó algum
nessa pupila
Leminski lembra que, além dos mosteiros tradicionais, sob a direção de mestres experimentados, o zen é acessível, para todas as pessoas, através dos "caminhos" (em japonês, do): "Esse dô (ou caminhos) são vias de acesso a uma experiência: através da sua prática, vive-se circunstâncias zen, circunstâncias em que o zen pode manifestar-se, ocasiões nas quais se toma visível, nas cores dos nossos gestos. Bashô praticou vários." 35
Alguns dos caminhos mais percorridos: kyu-dô (o caminho do arco-e-flecha), cha-dô (o caminho do chá), ken-dô (o caminho da espada), chu-dô (o caminho da caligrafia), ka-dô (o caminho das flores, ikebana) e haiku-dô (o caminho do haiku, do haikai).
"Quão longe nos é dado ver, o tema central do zen é a superação das dualidades. A dissolução dos maniqueísmos. A síntese dos contrários. Além do bem e do mal Do sagrado e do profano. Do espiritual e do material Do transcendental e do imanente. Do aqui e do além. Isso, Matsuo Bashô procurou em seus haicais. Neles, a mais funda espiritualidade manifesta-se nos eventos mais vulgares", afirma Leminski.
"Os pensamentos mais sutis revelam-se nas condições mais materiais. E a mais alta poesia, nas circunstâncias mais pedestres e corriqueiras. Assim, Bashô transformou uma prática de texto, uma produção verbal, em 'caminho' para o zen, a mais extraordinária aventura espiritual do bicho homem", complementa. 36
acenda a luz de leve do orvalho
eu lhe mostro uma beleza nunca esqueça
bola de neve o branco gosto solitário
esta estrada a lua se foi narciso
lá vai ninguém tristeza biombo
outono os quatro cantos um ao outro ilumina
tarde da mesa branco no branco
"o caminho do haikai, arte zen, parece um contrasenso nesse zen tão não-verbal. Exatamente por isso desconfiamos que o haicai, talvez, não seja escrito em palavras", finaliza Leminski. "Duvidamos até que seja escrito. Ele é inscrito. Desenhado. Incrustado, como um objeto, em outro sistema de signos. Palavras mais que palavras: gestos, vivências, coisas-em-si."
Palavras mais que palavras, os haikais e toda a poesia de Paulo Leminski, que encantou a tantos, ficaram inscritos em nossos corações e mentes. Caprichos e relaxos. Campos de morango para sempre, cultivados por esse curitibano 'cachorro louco', capaz 'de fazer chover em nosso piquenique'. Polêmico, infrator, inventor. Capaz de emocionar, surpreender, instigar; provocar, gozar, criar sempre. Fazer rir e chorar.
Raimundo Caruso (n. 1945), poeta curitibano-catarinense, num dos seus recentes Poemas exemplares, 1995, fulminante: 37
rimar é fácil:
montanha com mar
neblina com trem
carta com clima
difícil
é Ieminski
Numa conversa de poetas, contou que um dia mostrou uns haikais seus a Caetano Veloso (n. 1944), e o baiano multimidia perguntou como se apreciava um haikai. Leminski, rápido no gatilho: "Haikai tem três linhas e cinco buracos. os buracos são mais importantes que as linhas".
Caetano Veloso encantado, achava os poemas de Leminski "uma maravilha, porque são muito sintéticos, muito concisos, muito rápidos, muito inspirados" Ele o considerava "um personagem muito único, no panorama da curtição de literatura no Brasil". Gravou-o: "Leminskí tem um clima/mistura de concretismo com beatnik Que é muito legal. 'Verdura' é um sonho. É genial E um haikai da formação cultural brasileira." 38
7 de junho de 1989, aos 45 anos, Leminski nos deixa. E deixa um legado de poesia inestimável. Nesse dia invernoso, inesperado, após a notícia no rádio e o telefonema de confirmação do poeta curitibano Reinoldo Atem (n. 1950), tudo o que consegui foi xingar e chorar. Não consegui escrever uma linha sequer sobre o amigo que partira.
Lembro que, naquele momento, um haikai veio crescendo, crescendo, até eclipsar totalmente essa mistura de dor e saudade entorpecidos em cachaça de gosto ruim: era um haikai de Bashô, que o próprio Leminski um dia transcriara, quase numa premonição. Esse haikai é a sua cara:
casca oca
a cigarra
cantou-se toda
Valeu. A viagem do haikai no Brasil há muito chegara a um porto seguro e aqui plantara suas raízes fundas. Mais de 80 anos depois da chegada do Kasato Maru, e após a passagem do cometa Leminski, nós podemos realmente afirmar: yes, nós temos haikai. Brasileiro. Aqui é bananeira que já deu cacho. E continuará dando, ainda, por muito tempo."
Carlos Verçosa
Bahia, novembro de 1995.
OBS.: excerto do livro Oku: Viajando com Bashô publicado pela SEC. DE CULTURA E TURISMO DO GOV. DO EST. DA BAHIA,1996, pp
468-487.
NOTAS
1 Alice RUIZ, in O haicai tenta definir-se, Portal, dez. 1988, p. 5.
2 Paulo LEMINSKI, Anseios crípticos, 1986, p. 51.
3 Haroldo de CAMPOS, in Paulo LEMINSKI, Caprichos e relaxos, p. 7.
4 Ibid., p. 147.
5 Ibid, p. 7.
6 Ibid., p. 131; 79; 86;
7 Dessa época, 1973, um haikai que nunca tive coragem de lhe mostrar:
veia antiga
risque o novo em moscouritiba
em maio com leminski
8 Antonio RISÉRIO, Catatau: cartesanato, José, nov. 1976, p. 1.
9 Ibid., p. 3; 1; 4.
10 Paulo LEMINSKI, Catatau, p. 60; 76; 2; 89; 28; 138; 7; 133; 117 (aqui, a citação do sapo totêmico de Bashô, em seu memorável flagra); 128; 188; 108; 144. Registro ainda uma pequena homenagem do "irmão em poesia" (à época, eu editava Rascunho página literária dominical do jornal Folha de Londrina), na citação:
o ras traz o cunho
do seu pulso
óstia versisovina...
11 Paulo LEMINSKI, op. cit., p. 48.
12 Idem, op. cit., p. 91; 101; 106; 138; 89; 77; 95.
13 Idem, op. cit., p. 49. Idem, op. cit., p. 84; 103.
14 Aná1ise de Antonio Risério, Leminski e a vanguarda, Bric a Brac, 1990, p. 11-3: "Não sei como Leminski chegou ao Oriente. Sei que o Oriente é fundamental em sua vida e em sua obra. (...) É evidente que há, em seu orientalismo, a marca esprit de geómetric do concretismo, rebrilhando com nitidez no plano-piloto para poesia concreta. E é evidente que há também o influxo contracultural, mistura de satori e LSD, rock e zen, Eros e koan. Mas há ainda, a interseção, fragmentos que brilham nos interstícios. É possível viajar, neste aspecto, a partir do ideograma. (...) Leminski via o haicai com olhos experimentalistas: sintaxe de montagem, visualidade da escrita, harmonias fônicas, jogos de imagem, signos que se espelham e se espalham. Mas via também com olhos de andarilho contracultural (...) Leminski colheu a lágrima no olho do peixe", complementa Risério, citando o haikai genial com que Bashô inicia sua viagem a Oku, e que acabou por servir de título ao livrinho escrito por Leminski (Bashô - A lágrima do peixe).
15 Idem, op. cit., p. 97.
16 Ibid, p.98. Um belo haikai é como fotografia revelou fixou, registrava na contracapa de Sashimí, 1987.
17 Ibid., p. 98. Idem, La vie en close c'est une autre chose, 1991, p. 118; 120; 122; 157; 68; 150. A maioria dos haikais constantes neste 1ivro póstumo foram selecionados por Leminski e Alice Ruiz em setembro de 1988. Ele reúne poemas escritos desde os anos 60: "O poeta que aqui se lê, a exemplo dos faraós, construiu uma obra capaz de continuar falando, por si só, como as pirâmides, e transcender mesmo no deserto a aridez da mesmice da nossa finitude", escreve Alice.
18 Idem, op. cit., p. 98.
19 Ibid., p. 99. Idem, op. cit., p. 130; 137; 174; 154; 128; 126.
20 Idem, op. cit., p. 99.
21 Idem, op. cit., p. 96; 98; 96; 98. Idem, op.cit., p. 103; 106; 99. Idem, Distraídos venceremos, 1987, p. 128; 113; 121;7; 112; 116.
22 Idem, op. cit., p. 32-3.
23 Donald KEENE, A literatura japonesa, apud Paulo LEMINSKI, ibid., p.33.
24 Ibid., 33.
25 Reginald Horace BLYTH, Haiku, apud Paulo LEMINSKI, ibid., p. 33-4.
26 Ibid., p. 34. "É uma coisa, não uma declaração sobre fatos", declara Leminski sobre o fato de haikai não ter título (idem, op. cit., p. 103). Título limita: "Já vi muito poeta sofrendo para achar o título para um poema. E eu dizendo, pra que título? O poema não funciona sozinho?"
27 Ibid, 34-5.
28 Ibid., p. 35-6; 40. "Nem de longe tenho a pretensão de que os haikais que, aqui, apresento, traduzidos do japonês, dêem conta da fertilidade de sentidos de um poema que, freqüentemente, é parte integrante de uma pintura. Isto é. um ícone. Um ícone, não tendo sinônimos, não pode, rigorosamente, ser traduzido. É apenas igual a si mesmo: toda obra de arte tem natureza tautológica. Beleza é aquilo que as coisas bonitas têm. Indefinível, beleza não tem tradução. O belo é irrefutável", justifica Leminski. A busca do equilíbrio entre o pleno e o vazio, quando o silêncio pode dizer mais que o discurso, no haikai, resulta num contínuo re-interpretar: "Nenhum haicai está concluído, ele é apenas abandonado, e cabe ao leitor continuar onde o poeta parou", escreveu o poeta americano Raymond Roseliep (apud J. Carlos M. BARBOSA, Planeta, set. 1992, p. 31).
29 Idem, Ahahahaikais: poesia em estado de graça, op. cit., p. 1.
30 Donald KEENE, op. cit., apud Paulo LEMINSKI, ibid., p. 39.
31 Ibid., p. 39.
32 Ibid., p. 44-7
33 Ibid., p 54.
34 Ibid., p. 55 (Kyoto é a velha capital do Japão, antes de Edo, hoje Tokyo; hototoguisu ora é traduzido como rouxinol, ora como cuco; ao ouvir seu canto, Bashô "sente nostalgia por um Kyoto que não existe mais"); 57 (composto por Bashô em Tsuruga, numa de suas viagens, e baseia-se na lenda sobre uma cidade no fundo do mar; "Bashô aproveita o mito para expressar a enigmática natureza da lua, calada como um sino náufrago"); 60 (Bashô, aqui, homenageia sua discípula de haikai Sono-jô, também médica e oculista, e refere-se a urna flor branca do jardim de sua casa, onde estava hospedado, em cuja pétala nenhuma poeira pousara: "Assim, festeja a pureza de vida da poeta, com sutil alusão a seu ofício de oftalmologista, especializada em retirar partículas do olho das pessoas. Minha tradução acrescenta, em português, um kakekotoba, entre 'pupila' do olho e 'pupila' discípula. Muito leve a mão desse Bashô, capaz de retirar o cisco de um haicai da íris de uma flor. O branco, do branco", escreve Leminski).
35 Ibid., p. 79.
36 Ibid., p. 88; 90; 64; 60; 59; 59. "Bashô concentrou a essência dessa cultura [zen] numa forma-miniatura: o haicai. Ele fundou 'o caminho do haikai', um dos caminhos zen-budistas para atingir a iluminação o 'satori' (...) Quando Bashô chegou, o haikai como forma já existia. Era um tipo de poesia humorística, chamada, em japonês, 'senryu'. Tudo o que Bashô fez foi infundir um conteúdo espiritual na pequena forma, dando-lhe uma alma imortal. Mas a graça que havia no 'senryu', o haicai humorístico, não desaparece com Bashô. Só que a graça é agora menos imediata, mais sutil, mais 'poética'. A poesia do haikai é, porém, crua, seca, brutal, fiel à percepção zen das coisas", afirmava Leminski in Ahahahaikais: poesia em estado de graça, Anexo, Diário do Paraná, 3 ago. 1977, p. 1.
37 Raimundo CARUSO, 5O poemas exemplares, 1995, lâmina 23.
38 Caetano VELOSO, in Paulo LEMINSKI, op. cit., contracapa; p. 84. A "Verdura" (in Outras palavras, 1980) cultivada por Caetano na horta leminskiana:
de repente/ me lembro do verde/ da cor verde/ a mais verde que existe/ a cor mais alegre/ a cor mais triste/ o verde que vestes/ o verde que vestiste/ o dia em que eu te vi/o dia em que me viste// de repente/ vendi meus filhos/ pra uma família americana/ eles têm carro/ eles têm grana/ eles têm casa/ a grama é bacana/ só assim eles podem voltar/ e pegar um sol em copacabana
Copyright © by Carlos Verçosa