NOTA INTRODUTÓRIA [1] ORIGEM E FINALIDADE DO SONETO [2] A ESTÉTICA DO SONETO [3] O SONETO COMO POEMA POLIGLÓTICO [4] O SONETO EM PORTUGAL [5] O SONETO BRASILEIRO [6] VARIAÇÕES EM TORNO DO SONETO [7] CONCLUSÃO [8] APÊNDICE I: PANORAMA DO SONETO BRASILEIRO [9] APÊNDICE II: NOTAS DE CRUZ FILHO APONTAMENTOS DE GLAUCO MATTOSO ÍNDICE ONOMÁSTICO SUMÁRIO
NOTA INTRODUTÓRIA
Da mesma forma como, há poucos anos, revisitei o raro e obscuro "Ritmo e poesia" (1955) de Cavalcanti Proença (cujo conteúdo expandido resultou no exaustivo tratado "O sexo do verso: machismo e feminismo na regra da poesia", também disponível, a princípio, na versão virtual), resgato agora outro compêndio, ainda mais ostracizado, cujo autor se assinava laconicamente como Cruz Filho e cujo título, não menos sucinto, era "O Soneto". Porém, desta vez, não pinço fragmentos: percorro a obra original na sua íntegra, para interferir nos pontos em que venho teorizando e praticando, como esticólogo e sonetista.
Para tanto, numerei todos os parágrafos e tópicos do livro, reportando-me a determinadas passagens numa abordagem posfacial. Também as notas bibliográficas do autor foram reunidas em apêndice, para não truncar a seqüência dos parágrafos numerados. No geral, inclino-me a concordar com as teses de Cruz Filho, mas são justamente as particularidades, discordantes ou não, que me levaram a reler aquele histórico tratado. Além, é claro, do desejo de compartilhar tão precioso estudo com as novas gerações de poetas, leitores e críticos. O cearense José da Cruz Filho (1884-1974) se afigura como um curioso caso de parnasiano retardatário. Natural de Canindé, cidade até hoje famosa pela melhor literatura de cordel, o jornalista e professor também se dedicou ao conto e ao ensaio, mas a obra que o levaria à Academia Cearense de Letras (a ponto de ser eleito "príncipe dos poetas cearenses" em 1963) é a lírica. Sua vocação sonetística, manifestada justamente na década em que o movimento modernista pretendia ultrapassar esse insuperável gênero de composição, acabou por motivá-lo a pesquisar suas origens e transformações - estudo que se corporificou na monografia "O Soneto", publicada em 1961 pela mesma editora carioca do tratado de Cavalcanti Proença, a Organização Simões. Objeto de colecionadores e bibliófilos, a esgotada edição interessa aos cultores da poesia como documento obrigatório acerca do que o soneto tem suscitado ao longo de sete séculos. Não se trata dum manual técnico, mas dum retrospecto histórico e crítico, cuja consulta vem complementar tudo quanto tenho teorizado desde 1999. Daí a conveniência de disponibilizar seu conteúdo no formato digital, devidamente anotado e comentado em apontamentos nos quais atualizo o panorama estético e temático do universo sonetável. Escaneado a partir dum exemplar xerocopiado que me foi oferecido pelos confrades canindeenses, o texto teve suas imperfeições sanadas, tanto quanto possível, na cuidadosa revisão de Akira Nishimura e Tadeu Dias. Graças ao dedo ciberespacial de Elson Fróes, também poeta e tradutor, essa fonte pode ser agora clicada na rede. Eis que o soneto avança, incólume e indelével, sobre o século informático. GLAUCO MATTOSO, dezembro de 2008.[1.1] Não obstante as reiteradas investigações até hoje feitas pelos seus diversos historiadores, jamais deixou de perdurar certa confusão no tocante à origem do soneto. Contudo, afigura-se-nos questão definitivamente resolvida ter tido ele por berço a Itália, ou, com mais precisão, a Sicília, sem embargo das opiniões divergentes, nunca estribadas em documentação de incontestável solidez, mas em preconceitos de caráter nacionalista dos seus propugnadores ou em induções destituídas de fundamento histórico. Assim, cumpre-nos pôr de lado toda hipótese do gênero da defendida por Guilherme Colletet (1598-1659), aliás já refutada por Carlos Asselineau, no seu interessante ensaio sobre o soneto (1), segundo a qual os italianos teriam havido a fórmula deste poema dos trovadores ("troubadours") da Provença, que, por seu turno, já a teriam recebido dos poetas que floresceram na corte dos primeiros reis da França. [1.2] Colletet, de fato, como observa Asselineau, ignorava que a palavra "sonnet", tal qual havia sido empregada por Thibaut VII (1201-1253) e por Guilherme de Lorris, troveiro ("trouvère") do século XIII, era aplicada "indiferentemente a toda espécie de canto" pelos mesmos troveiros e trovadores. [1.3] Entretanto, deixando à margem a advertência de Du Bellay, que lhe chama "tão sábia quanto aprazível invenção italiana" (2), persistem, ainda hoje, alguns autores no antigo vezo de atribuir ao soneto origem trovadoresca, posto que desaconselhados em tal intento pelo próprio "Grand Dictionnaire Universel", de Pedro Larousse, que assim se expressa, no verbete "soneto": "O soneto veio-nos da Itália. Considera-se geralmente que nasceu na Sicília, no século XIII. Há, em todo caso, quem tenha Petrarca como o seu inventor, ao passo que outras fazem remontar a sua invenção aos nossos trovadores. Em verdade, entre estes a palavra "sône" não significava soneto; aplicava-se, ao contrário, a diversas poesias, com o sentido de canto". [1.4] Por sua vez, a "Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana" (Espasa-Calpe SA - Bilbao) assim se pronuncia sobre o assunto, no mesmo verbete: "É bastante antiga a origem do soneto. Foi conhecido dos trovadores e troveiros, não faltando autores que remontem a origem da combinação até as filigranas da poesia árabe, ainda que a maioria conceda o mérito da invenção a Pierre das Vignes ou de la Vigne (1197-1249), conselheiro de Frederico II, e o de fixar-lhe a forma definitiva ao toscano Aretino. Pertence, sem embargo, a Petrarca a glória de o haver generalizado. O marquês de Santillana, que já tinha aprendido o emprego do decassílabo com Francisco Imperial, levado de entusiasmo pelas trovas italianas e provençais, escreveu sonetos ao 'itálico modo'". [1.5] Entre os que atribuem origem francesa ao soneto inscrevem-se modernamente, entre outros, Augusto Dorchain e também Olavo Bilac e Guimarães Passos. [1.6] Dorchain, escritor francês contemporâneo, no seu excelente tratado "L'Art des Vers", dá apoio à citada hipótese de Colletet, ao opinar que, inventado no século XIII pelos trovadores provençais, teria o soneto passado à Itália, onde florescera com Dante e Petrarca, e de onde Mellin de Saint-Gellais e Clemente Marot o trouxeram para a França. Hipótese análoga é a adotada por Olavo Bilac e Guimarães Passos, no seu "Tratado de Versificação", com a qual atribuem a invenção do soneto ao trovador limosino do século XIII Girard de Bourneuil. Este parecer foi possivelmente colhido por aqueles tratadistas ao "Dictionnaire des Écrivains et des Littératures", de Frederico Lolié, que admite a mesma procedência. [1.7] A invenção do belo poema de catorze versos há sido também imputada a Guittonne d'Arezzo, um dos predecessores de Dante na poesia toscana, bem assim a Giacomo (ou Jacobo) da Lentini. Diz-nos Fidelino de Figueiredo: "Mas após as investigações do Prof. G. A. Cesareo, é a Giacomo da Lentini, poeta da primeira metade do século XII (?), também siciliano, que se atribui esse achado." (V. "La poesia siciliana sotto gli Svevi", in "Le origini della Poesia lirica". - Palermo, 1924). (3) [1.8] De fato, o "sonnet" a que se refere Guilherme Colletet nada tem de comum, como ficou dito, senão no nome, com o soneto (do italiano "sonnetto"), pequeno poema de forma fixa, composto de uma oitava e de uma sextilha, ou mais explicitamente, de catorze versos distribuídos em dois quartetos e dois tercetos, cuja técnica rigorosa levou Antônio Godeau (1605-1672), bispo de Vence (França), também poeta e freqüentador do Palácio Rambouillet (4), a pretender que o reino de tal composição não seria deste mundo (5). [1.9] Cumpre registrar aqui o seguinte trecho, referente à origem do soneto, extraído de um comentário do crítico francês contemporâneo Jorge Pellissier: "É conhecida a voga que adquiriu o soneto, por volta do meado do século XVII. Não é este poema de origem provençal, como geralmente se tem acreditado; a palavra "son" ou "sonnet", muito antiga na língua dos trovadores, aplica-se a qualquer espécie de canto e designa, sobretudo, as composições líricas que eram cantadas ao som de instrumentos musicais. A forma moderna do soneto é invenção italiana: foi trazida à França, não por Du Bellay, mas por Saint-Gellais e Marot. Compuseram sonetos todos os poetas da Plêiade e os seus discípulos. Um tanto depreciado durante o domínio literário de Malherbe, reencontrou o soneto a sua antiga voga com Voiture, Benserade e outros. Tendo caído novamente em olvido, no decurso da última metade do século XVII e durante todo o século XVIII, foi retomado brilhantemente pela escola moderna, cabendo a Sainte-Beuve a iniciativa da restauração da antiga honra do poema". (6) [1.10] Diz-nos também Henrique Hauvette que, na Sicília, ao tempo de Frederico II, no século XIII, "certa poesia curta, de origem obscura, mas cuja sorte ia ser maravilhosa - o soneto - começou a ser exercitada pela pena de Jacobo da Lentini". Essa "poesia curta" teve também cultores no florentino Chiaro Davanzati, morto em 1280, no bolonhês Guido Guinizelli, em Rustico de Filippo, de Florença, em Cecco Angioliere, da Toscana, como ainda em Fra Guittonne d'Arezzo (1230-1294) e em Pier delle Vigne, morto em 1249. (7). [1.11] Na referência que faz ao poeta francês Clemente Marot (1495-1544), diz Emílio Faguet, na sua "Histoire de la Littérature Française": "Compôs ele, todavia, alguns sonetos, disputando assim a Mellin de Saint-Gellais a honra de haver introduzido na França esse ritmo que posteriormente se tornou tão glorioso". Depois, no seu interessante compêndio didático intitulado "Initiation Littéraire" (1913), ao tratar da expansão do movimento mental da Idade Média na Itália, escreve o mesmo Faguet: "No século XIII, graças ao estímulo do imperador Frederico II, Nápoles e a Sicília, onde se fundaram grandes universidades, constituíram-se centros de literatura puramente italiana. Faziam parte deles Pierre des Vignes (Petrus de Vineis), que passa por ser o inventor do soneto, Ciullo d'Alcamo, autor da primeira canção italiana conhecida etc." [1.12] Convém se tenha em vista, neste ponto, para melhor inteligência do assunto, a observação de L. Etienne, na qual assevera que os Italianos tomaram por empréstimo aos Provençais a forma da poesia destes, mas a imitação introduziu nela somente uma imagem, e não fiel representação, cabendo notar-se que a "sestina", espécie de balada curta e muito complicada, foi a única composição que, de nome e de fato, passou dos trovadores aos poetas italianos. (8) [1.13] Já agora é necessário que ouçamos a palavra do eminente polígrafo português Agostinho de Campos a respeito do objeto do presente ensaio: "O soneto nasceu ocidental, meridional e católico, o que não o impediu de conquistar a Europa toda e de ainda a dominar, vencendo e prendendo na sua celular estreiteza o Inglês insulano e individualista, o Espanhol eloqüente e esfusiante, o Francês lógico e disciplinado, assim como o Alemão do livre-exame, profundo e difuso, inchado de cogitação, e para quem - dir-se-ia - há mais conceitos do pensamento do que palavras no dicionário. Conquistada a Europa e levado nas asas das três línguas imperiais - inglês, castelhano, português - o soneto partiu a tomar posse das duas Américas. [1.14] Se tal forma ou fórmula poética viu com efeito a luz na Sicília, pode esta ilha gabar-se de ter sido o berço de um império durável e de uma devoção pertinaz, no domínio da arte literária; e o ilustre Petrarca prestou com ela a Madonna Laura homenagem teimosa, cujos ecos repercutem ainda e não mostram indícios de calar-se tão cedo." (9) [1.15] Para que ao côro quase universal de louvores ao soneto não faltasse a voz da própria Poesia, houve por bem Sainte-Beuve (1804-1869), crítico e poeta, fazer o resumo de certo aspecto da história do formoso poema, na literatura européia, com o conhecido soneto imitado de Wordsworth, adotando, porém, o parecer da origem italiana do mesmo poema: [Sainte-Beuve, parafraseando Wordsworth] Ne ris point des sonnets, o Critique moqueur! Par amour autrefois en fit le grand Shakespeare; C'est sur ce luth heureux que Pétrarque soupire, Et que le Tasse aux fers soulage un peu son coeur; Camoëns de son exil abrège la longueur, Car il chante en sonnets l'amour et son empire; Dante aime cette fleur de mythe, et la respire, Et la mêle au cyprès qui ceint son front vainqueur; Spenser, s'en revenant de l'ile des féeries, Exhale en longs sonnets ses tristesses chéries; Milton, chantant les siens, ranimait son regard: Moi, je veux rajeunir le doux sonnet en France; Du Bellay, le premier, l'apporta de Florence, Et l'on en sait plus d'un de notre vieux Ronsard. [1.16] Este soneto, de fato, é hábil paráfrase do célebre soneto do poeta inglês Guilherme Wordsworth (1770-1850), com o acréscimo, no último terceto, dos nomes de dois poetas franceses, - Du Bellay e Ronsard, e da indicação indireta da pátria do louvado poema. [1.17] Leia-se a composição de Wordsworth, que é, como a de Sainte-Beuve, poético resumo biográfico do soneto: [original de Wordsworth] Scorn not the Sonnet; Critic, you have frowned Mindless of its just honours; with this key Shakespeare unlocked his heart; the melody Of this small lute gave case to Petrarch's wound; A thousand times this pipe did Tasso sound; With it Camoëns soothed exile's grief; The sonnet glittered, a gay myrtle leaf Amid the cypress with which Dante crowned. His visionary brow; a glow-worm lamp, It cheered mild Spenser, called from Faery-land To struggle through dark ways; and, when a damp Fell round the path of Milton, in his hand The Thing became a trumpet; whence he blew Soul-animating strains - alas, too few! (10). [1.18] Conclui-se de quanto precede que o soneto, poema originário da Idade Média, teve por berço, provavelmente, Palermo, a cidade insular onde Frederico II presidiu, na própria corte, ao primitivo surto da poesia siciliana, no meio de "doutos, poetas, astrólogos, Judeus e Árabes", aos quais dispensava proteção e perante quem lia os seus próprios versos, na primeira metade do século XIII. Foi nessa pequena academia poética que floresceram Pier delle Vigne, Enzo, rei da Sardenha, Jacobo da Lentini, Guido della Colonne, Jacobo Mostacci, Ruggieri d'Amice e outros cujos nomes mal chegaram até nós. [1.19] A história literária reteve o nome de Pier delle Vigne, indigitado inventor do soneto, menos por amor à glória dessa invenção do que pela circunstância de o ter encerrado Dante no sétimo círculo do Inferno, onde os violentos contra as suas próprias pessoas, transformados em troncos de árvores, servem de abrigo aos ninhos das harpias. Ali teria dito Pier delle Vigne ao poeta da "Divina Comédia": "Io son colui che tenni ambo le chiavi Del cor de Federigo, e che le volsi, Serrando e disserrando, si soavi, Che dal segreto suo quasi ogni uom tolsi: Fede portai al glorioso offizio, Tanto ch'io ne perdei li e i polsi. La meretrice che mai dall'ospizio Di Cesare non torse gli occhi putti, Morte comune, e delle corti vizio, Infiammò contra me gli animi tutt; E gl'infiammati infiammar si Augusto. Che i lieti onor tornaro in tristi lutti.". (11) [1.20] Viveu o poeta suicida na pequena corte de Frederico II, de quem foi conselheiro e confidente; acusado injustamente, segundo se diz, de traição ao seu protetor pelo marido de certa dama de nome Florismunda, cuja beleza celebrara nas suas "canzoni", foi despojado da função que exercia, em 1249, ano em que se suicidou. Por esse motivo aparece o pretendido pai do soneto no recinto do Inferno dantesco. [1.21] A respeito da influência irradiada dessa chamada "escola siciliana", em que o idioma poético italiano emitiu os seus primeiros balbucios, damos ainda uma vez a palavra a Henrique Hauvette: "Entretanto, essa escola siciliana, por mais pobre que possa parecer, exerceu profunda influência nos destinos da poesia italiana (...) Demais, certa invenção mais fecunda se anunciava pela mesma época, nos versos do florentino Chiaro Davanzati, morto antes de 1280 (...) Num dos sonetos desse poeta o retrato da sua dama é completado pela indicação dos efeitos que produz a sua beleza no coração daqueles que a contemplam: basta a sua presença para restituir a alegria a quem se encontra mergulhado na dor: Cosi Madonna mia face allegrare, Mirando loi, chi avesse alcun dolore. (12) [1.22] Esta idéia, que hoje pareceria fria e trivial, constituiu o ponto de partida de toda uma psicologia amorosa, de que foi Guido Guinizelli, de Bolonha, o primeiro representante (...) Ao lerem-se os seus versos, em que se alia a novidade do pensamento à doçura harmoniosa do estilo, julgamos já ouvir os acentos familiares da poesia dantesca. Dante, com efeito, não deixou de citar e imitar a Guido Guinizelli, o "Sággio", como ele lhe chama, isto é, o poeta "sábio", a quem deu ainda êste belo título: "pai de todos os poetas que têm sabido rimar doces e encantadoras canções de amor". (13) [1.23] A evolução da poesia ensaiada na Sicília, ou antes, do sentimento dessa poesia, com os gêneros poéticos nela praticados, como o soneto e a canção, teve, como remate, a escola que depois se chamou do "dolce stil nuovo", de que Dante foi o representante máximo. Aquela "metafísica amorosa", posta em prática por Davanzati e Guinizelli, foi retomada com maior vigor por Guido Cavalcanti, chefe dos poetas da escola florentina, que lhe deu caráter extreme da influência das tradições sicilianas e bolonhesas; os sonetos de amor desse poeta foram mais tarde eclipsados pelo fulgor da lírica dantesca. [1.24] Muito mal poderá avaliar o homem dos nossos dias os sentimentos do seu antepassado medievo, no atinente às suas relações com o outro sexo. O homem de então não seria o cavalheiro enamorado e de esmerada educação, ou o poeta galante, que celebra, em bem medidos versos, a beleza e o encanto naturais da mulher preferida, mas, ao revés, o conquistador imperioso e rudo, sem coração nem espírito, para quem o amor de hoje, com o seu delicioso complexo de ternura, dedicação e gentileza, ainda não havia nascido. Como aquele rei do soneto intitulado "Idade-Média", de Luís Guimarães, poderia o homem daqueles tempos interrogar a sua companheira, ao vê-la seguir, com olhar atento, o vôo de uma andorinha: - Em que pensas, ó triste escrava minha? [1.25] E a triste escrava não teria o direito de lhe responder, como a rainha do soneto: - Penso que um dia, nos azuis espaços, Livre afinal do mundo e dos teus braços, Minha alma voará como a andorinha. [1.26] Bem hajam, pois, aqueles três olvidados poetas e, mais ainda, Dante e Petrarca, que transmutaram o amor, pelo órgão maravilhoso do soneto, numa sorte de culto, mais humano do que os demais cultos, e converteram a mulher em entidade intangível, posta, todavia, ao alcance das nossas súplicas e dos nossos desejos. [1.27] De feito, Dante Alighiere, nascido em Florença (1265) e morto em Ravenna (1321), na sua obra de juventude "Vita Nuova", e ainda na "Comédia", imortalizou o nome de Beatriz, cuja figura ternamente poética se erige, ainda hoje, como autêntico símbolo de beleza e de amor, na poesia ocidental. Beatriz Portinari, de quem o poeta esperava "dizer o que não se disse jamais de outra mulher", nasceu e morreu na cidade de Florença; não é uma ficção poética. [1.28] Em Francisco Petrarca, nascido em Arezzo, na Toscana, em 1304, e morto em Arcua, perto de Pádua, em 1374, o sentimento daquela poesia caracteristicamente italiana mais se acentuou e apurou. Laura de Noves, a protagonista do drama amoroso do "Canzoniero", é, como Beatriz, musa sedutora, encarnação da suprema beleza, ao olhar do poeta enamorado, em que pese à indiferença e insensibilidade da esquiva provençal. Ainda depois da sua morte, o aperfeiçoador do soneto italiano continuou, na melancólica solidão de Vaucluse, a evocar esse fantasma familiar, como se vê no soneto que para aqui trasladamos: [original de Petrarca] Che fai? Che pensi? Che pur dietro guardi Nel tempo che tornar non pote mai, Anima sconsolata? che pur vai Giugnendo legna al foco ove tu ardi? Le soavi parole e i dolci sguardi Ch'ad un ad un descritti e dipint' hai Son levati da terra: ed é, ben sai, Qui ricordargli intempestivo e tardi. Deh! non rinnovellar quel che n'ancide; Non seguir più pensier vago fallace, Ma saldo e certo ch'a buon fin ne guide. Cerchiamo 'l ciel, se qui nulla ne piace; Ché mal per noi quella belta si vide, Se viva e morta ne dovea tôr pace. (14) [1.29] O idealismo que impregna a lírica petrarquiana incutiu, na poesia dos tempos que se seguiram, o seu caráter primacial: nele se encontra porventura, como se há notado, o sinal de transição entre a Idade-Média e o Renascimento. [1.30] A despeito do abuso de citações que já entremeiam o presente capítulo, aliás requeridas pelo caráter controverso do problema literário cuja elucidação nele se intenta, não podemos deixar de pedir a Fidelino de Figueiredo, preclaro historiador da literatura portuguêsa, algumas linhas de meditada prosa sobre o soneto petrarquiano: "Com o largo cultivo que deste gênero poético fêz - diz êle - Petrarca não só lhe fixou tal estrutura, mas nele imbutiu um ideal literário novo. Pelo soneto petrarquiano entrou na literatura o amor, não já como acessório ou baixamente interpretado, mas expressão suprema de todas as delicadezas d'alma humana, como vida interior, como sacrifício de todos os sentimentos e de toda a meditação a um modelo de beleza perfeito até ao ideal e, como ideal, inatingível. Exumando-o da multidão confusa de mitos, alegorias, concepções metafísicas e materiais prefigurações que sobre ele tinham acumulado Dante e a escolástica medieva, Petrarca purificou o amor e revelou-o. Esse amor, assim largamente compreendido, é todo um vasto mundo de emoções novas, toda uma fecunda seara de novos temas para a imaginação artística e para a meditação subjetiva; esse amor é mesmo uma completa concepção moral, uma interpretação da vida, à qual dava causa e objetivo; segundo ele, só se vivia porque se amava e só se vivia para amar, pois era o amor, com seu conteúdo inexaurível que revelava às almas a sua vida interna e as fazia vibrar. Este alto ideal já não era o realizado pela Beatriz do Dante, símbolo da Beleza e da Perfeição, voz e consciência do Universo, caminho do céu, representação estática da construção lógica da escolástica, essa Beatriz feita de transcendências sutis menos representada nas expressões do poeta que na imaginação ansiosa de a compreender, essa "luce intelletual" e incoercível. Agora a Laura do Petrarca é um ideal mais humano, é a mulher formosa, que ardentemente se ama, é um corpo esculturalmente belo, que irradia beleza que à natureza se comunica a adoçá-la por simpatia e desejo de concordância entre as formas belas. Tem mesmo um modelo, alvo como a neve, olhos serenos e castamente modestos, cabelos de ouro, falar discreto em voz de uma harmonia musical, movimentos lentos de graciosa suavidade". (15). [1.31] Antes de encerrar-se este capítulo, diga-se que o soneto há sido, sobretudo desde Petrarca, a composição lírica por excelência; a ode, a balada, o canto real, o madrigal, o cântico, o epitalâmio, o vilancete, a canção e outras formas líricas jamais lhe sobrelevaram em estima e apreço, nas literaturas novilatinas. O seu caráter subjetivista constituiu, em grande parte, o segredo do seu prestígio e ascendência, e é uma das determinantes dos seus consecutivos triunfos. Motivo sobrado teve Afonso Seché para afirmar que este pequeno poema fora inventado mui especialmente para cantar o amor e os seus arroubos. (16) [1.32] Durante os períodos clássico e romântico, foi essa, em geral, a sua constante missão literária e a sua finalidade; é exato que, mais tarde, com os parnasianos, se alargou um tanto aquele programa, tomando o soneto maior expansão, no atinente à amplitude do seu objeto. Deve levar-se isto à conta da maior cultura dos poetas modernos, da sedução das belezas da natureza mais sabiamente interpretadas e do próprio surto da inspiração pessoal de alguns dos seus cultores. Estes, pedindo meças às restrições consuetudinárias do modelo antigo, ousaram ampliar o círculo dos temas poéticos, passando a solicitar motivos e adereços para os seus poemas à história, às mitologias, às religiões, às lendas, ao céu, ao oceano, numa palavra, à natureza, sem, contudo, ficar-lhes defeso o constante regresso à rica fonte da subjetividade. [1.33] Laura, tanto quanto Beatriz, interpretada como símbolo, constituirá sempre, para o poeta ocidental, como que a personificação daquele "Tu" imaginado por Feuerbach, visto ter inconcusso direito a essa transfiguração. No seu generoso idealismo, há sabido o soneto, historicamente considerado, traduzir esse transfúgio do nosso espírito para as regiões do "au delà" sexual ou do "inconnu féminin", como lhe chamou Edmundo Haraucourt - enigma cativante que não se quer deixar decifrar. Mais do que qualquer outro gênero lírico, há também sido o soneto o intérprete do "sublime estrangeiro", entrevisto por Sully Prudhomme, o qual sempre encontrou, na frágil e delicada arquitetura desse poema, o seu melhor órgão de expressão. [1.34] Certo, não haverá demonstração mais eloqüente do mérito intrínseco desse "glorioso ritmo", na expressão de Emilio Faguet, como composição literária de primeira ordem, do que a presença dos nomes de alguns poetas de renome universal entre os daqueles que constituem, na Europa, o numeroso séquito dos seus cultores. Evidencia isto plenamente a seguinte relação: Dante, Petrarca, Tasso, Ariosto, Miguel Ângelo, Alfieri, Ugo Foscolo, Leopardi, Carducci, Gabriel d'Annunzio e Stecchetti, na Itália; Camões, Rodrigues Lobo, D. Francisco Manuel de Melo, Bocage, Gonçalves Crespo, Conde de Monsaraz, Antônio Nobre, Eugênio de Castro, Afonso Lopes Vieira, Júlio Dantas, Camilo Pessanha, José Régio, Virgínia Vitorino, Florbela Espanca e Fernanda de Castro, em Portugal; Ronsard, Du Bellay, Pontus du Thiard, Maynard, Boileau, Régnard, Voiture, Benserade, Malleville, Ogier de Gombaud, Soulary, Sainte-Beuve, Gautier, Baudelaire, Banville, Leconte de Lisle, Heredia, Verlaine, Mallarmé, Coppée, Sully Prudhomme, Catulo Mendès, Haraucourt, Richepin, Rollinat e Samain, na França; e Santillana, Herrera, Cervantes, Lope de Vega, Garcillaso, Gongora, Quevedo, Boscán, os Argensolas, Zorrila e Salvador Rueda, na Espanha. [1.35] A Inglaterra, por sua vez, conta notáveis sonetistas, entre os quais Shakespeare, Spenser, Milton, Shelley, Drayton, Wordsworth, Coleridge, Swinburne, Dante Gabriel Rosseti, Cristina Rossetti e Elisabete Barrett Browning; a Alemanha, igualmente, apresenta excelentes cultores do soneto: Weckerlin, Schede, Opitz, Bürger, Augusto Schlegal, Arnim, Goethe, Rückert, Platen, Eichendorf, Geibel, Heyse, Hebbel e Redwitz. [1] ORIGEM E FINALIDADE DO SONETO