APONTAMENTOS DE GLAUCO MATTOSO

[1.1] Concordo e acho que é ponto pacífico que o "sonnet" provençal designava genericamente qualquer poema cantável ou musicável, ao passo que o "sonetto" siciliano já restringia o conceito ao poema tetrastrófico de catorze decassílabos, padronizando um formato que, eventualmente, pode ter ocorrido, cá e lá, a algum trovador provençal. Entretanto, se, para mim, a questão já não comporta maiores polêmicas, o próprio Cruz Filho seguiu dividido num falso dilema: admitir que a matriz do soneto é italiana mas deixar-se envolver pela exagerada influência francesa. Ainda que coerente com sua alardeada escolha pela escola (no caso, a parnasiana), a posição francófila do autor esbarra na tradição sonetística lusófona (como veremos em 1.5, 1.9, 2.3, 2.67 e 2.76), vitimando-o, a ele apenas, na contradição. [1.3] Concordo que não há contradição em admitirmos que o soneto tenha origem siciliana e, ao mesmo tempo, considerarmos o toscano Petrarca como seu "inventor". Ocorre que os dois ou três possíveis "inventores" sicilianos (Lentini, Vigne, ou algum outro) eram poetas menores, ao passo que Petrarca não só fixou o formato estrófico-métrico-rimático e o conceito lírico do gênero, como o revestiu de perfeccionismo paradigmático, razão pela qual se pode atribuir ao modelo petrarquiano uma espécie de patente inventiva. [1.5] Não admira que Bilac e Passos ainda insistissem na tese da patente francesa, já que, como o próprio Cruz Filho, pretendiam "alexandrinizar" nossa tendência ao decassílabo camoniano/gregoriano. Este é um, dentre inúmeros outros pontos, em que o tratado bilaquiano se revela obsoleto. [1.9] Marotamente (e não só para trocadilhar com Marot), verifico que Cruz Filho concede a palavra a um teórico francês que, embora reconhecendo a paternidade italiana do soneto, cita apenas poetas franceses na vanguarda de todas as fases de apogeu sonetístico, desconsiderando, convenientemente, a ininterrupta influência ítalo-ibérica ao longo dos séculos. [1.15/17] Os exemplos metapoéticos de Wordsworth e Sainte-Beuve trazem à baila, em senso lato ou estrito, a questão temática examinada em 1.24/26, 2.6, 2.20/34, 2.38/40 e 4.12. Desde logo, quero ressalvar que, além de não se cingir ao pendor lírico, desempenha o soneto, com propriedade, seu papel autocrítico e analítico (ver 2.5), cabendo registrar aqui o que teorizei alhures: [1.15/17.1] O próprio conceito do soneto implica um paradoxo, pois, de um lado, a estrutura rígida cerceia a liberdade criativa do poeta e, de outro lado, essa aparente camisa-de-força estimula a habilidade do sonetista e testa seu domínio vocabular. Não por acaso vários autores tematizam o desafio da composição e a responsabilidade do sonetista em exemplos que poderiam ser chamados de sonetos metalingüísticos, de "metassonetos" ou, quando descrevem a própria construção, "processonetos". Abaixo vão alguns casos de metassoneto e processoneto: ANÁLISE-ZINHA DE UM SONETO [Evaristo da Veiga] Cá recebi, Machado, o teu Soneto, E bem que te agradeço a sã vontade; Como não queres que falte à verdade, Esta Análise-zinha te remeto. Ela há de ir num estilo assim faceto, E meio dorminhoco, que te agrade; Porque um Frade é que gosta doutro Frade, E um Preto na linguagem doutro Preto. As sílabas dos versos mal contaste, Porque uns trazem de mais, outros de menos, E os acentos também d'alguns erraste; Mas pelos grandes ficam os pequenos, Pois creio que por junto é que somaste, E o Soneto não tem, nem mais, nem menos. SONETO DE NATAL [Machado de Assis] Um homem, — era aquela noite amiga, Noite cristã, berço do Nazareno, — Ao relembrar os dias de pequeno, E a viva dança, e a lépida cantiga, Quis transportar ao verso doce e ameno As sensações da sua idade antiga, Naquela mesma velha noite amiga, Noite cristã, berço do Nazareno. Escolheu o soneto... A folha branca Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca, A pena não acode ao gesto seu. E, em vão lutando contra o metro adverso, Só lhe saiu este pequeno verso: "Mudaria o Natal ou mudei eu?" FLOR INCÓGNITA [Celso Pinheiro] Por essas tardes doces de novenas, Tive um sonho de todo imaginário: Fazer das minhas rimas um rosário Para ofertar-te, irmã das açucenas! Tu, que és a inveja viva das morenas E a pérola gentil do meu rimário Guardá-lo-ias, como um relicário, No teu seio de arminhos e de penas... E se fosses ao templo, como agora, Às tuas orações de tanto enlevo, Bendiria este amor Nossa Senhora... Meu Deus, como seríamos felizes! Tu rezando os Sonetos que te escrevo, Eu rezando as palavras que me dizes. O PEQUENO JORNAL [Nóbrega de Siqueira] Sempre que abro e releio o livro do passado, Aos meus olhos avulta um pequeno jornal, Modesto e sem clichês, feio e mal paginado, — Folha do interior, simples, dominical... Nunca teve, por certo, um número esgotado. (Liam-no tão somente os filhos do local) Tratava de "excelência" o juiz e o delegado E abria com um soneto a "Crônica Social". Apesar de modesto, é com enorme saudade Que dele me recordo e também da cidade Pequenina e longínqua onde, há tempos, nasceu... Ruas sem movimento... A escola... Uma igrejinha... A farmácia da esquina... A cidade era a minha. A mais linda do mundo! E o soneto... era meu! AOS VERMES [Luís Delfino] Tendes também espaço no horizonte, Vermes, que o eterno sol redoira e anima; Dou-vos asas, subi: à minha fronte Que sombra escassa e vã lançais por cima!... Eu ato, quando quero, o vale ao monte, O Olimpo ao Céu, e os deuses que a musa intima: E estrela a estrela amarro, e lanço a ponte, Em que anda o grupo harmônico da rima. É um coche de pérola o soneto: E quando dentro dele os mundos meto, A estrofe ala-se, e canta, e canta, e o tira. No caminho saúdam-no as Quimeras: E ao vê-lo, a um tempo, calam-se as Esferas, Aos seios d'oiro atravessando a lira. O SONETO [Cruz e Sousa] Nas formas voluptuosas o Soneto tem fascinante, cálida fragrância e as leves, langues curvas de elegância de extravagante e mórbido esqueleto. A graça nobre e grave do quarteto recebe a original intolerância, toda a sutil, secreta extravagância que transborda terceto por terceto. E como singular polichinelo ondula, ondeia, curioso e belo, o Soneto, nas formas caprichosas. As rimas dão-lhe a púrpura vetusta e na mais rara procissão augusta surge o sonho das almas dolorosas... DEDICATÓRIA [Emílio de Meneses] Não fora o medo de uma rima em igre E, nela, eu moldaria este soneto. Mas vejo o caso preto, mas tão preto, Que a própria tinta preta mais denigre. Eia! Alma à larga! O medo, dela, emigre Pois lá acima, já está, pronto, um quarteto, E eu creio bem que, dando um tom faceto, Alcanço um D. Xiquote e amanso um tigre. Bem! Vou ver se consegue este terceto Que o verbo "denigrar" para ele imigre (O "denegrir" já foi metido a espeto). Que um não denigra e que outro não denigre A intenção de ofertar este folheto Ao talento sem par do Bastos Tigre. TERRIBILIS (SONETO SEM VERBOS) [Monteiro de Barros] Um soneto sem verbos! Que empreitada! Bem difícil trabalho certamente! Eis aí um pedido impertinente, Além de uma grandíssima estopada! Ó alma de Satã, alma danada! — De tal soneto, para toda a gente De juízo, critério, inteligente, Qual o valor? Este, decerto: "nada"! Nesta cruel, difícil, conjuntura, Mente vazia, sem idéia, escura, De tal, capaz só vate verdadeiro. De fato, um caso assim, tétrico, preto, Como o arranjo, sem verbos, de um soneto, Só a vida no Rio sem dinheiro. ÚLTIMA PÁGINA [Júlio César da Silva] Teus os meus versos! Teus! Por mais que laves As mãos culpadas do delito vão De os haver inspirado, ei-los que vão Plumas soltas ao vento, como as aves. De ritmo duro ou de coleios suaves, Porém sinceros, algo mais serão Que o esforçado labor de um tecelão De cesuras, de agudos e de graves. Mais tarde, — porque enfim minha arte inquieta Balbucia somente e nada diz — Nada talvez há de restar do poeta Que um soneto sem cor, falho e infeliz, Mumificado por qualquer seleta Para uso das escolas infantis. SONETO AMANHECIDO [Salvador Novo, traduzido por Glauco Mattoso] O fácil sonetinho cotidiano que minha insônia nutre e desvanece sem tema nem dilema se oferece durante o pesadelo mais mundano. Traçando em pleno vácuo vou meu plano que sobe até o desejo e ao ódio desce. Em linhas decoradas como prece a vida vai por trilho reto e plano. A luz extinguirei, e de manhã já não há trem veloz que me transporte e o fogo consumiu a idéia vã. Soneto, não me escapas! Sou mais forte! Te findo, inda que falte ao meu afã serena perfeição, como a da morte! SONETO E SONO [Aloísio de Carvalho] É pena, mas nem sempre a gente é dono Do seu querer, senhor do seu nariz... Eu, por exemplo, agora: estou com sono Que meu verso fielmente não vos diz! Deixo correr a pena no abandono, O que, afinal, é próprio do país... Sétimo verso... Oitavo eu adiciono; E se fizer catorze, sou feliz. Quero dormir, não posso. Ainda faltam Cinco versos p'ra o termo de um soneto, Cisões, noivados, ruas que se asfaltam... Que mistura! Afinal, só faltam dois! Com sono, tudo serve num terceto... Vou dormir... Boa noite! Até depois! OFICINA IRRITADA [Carlos Drummond de Andrade] Eu quero compor um soneto duro como poeta algum ousara escrever. Eu quero pintar um soneto escuro, seco, abafado, difícil de ler. Quero que meu soneto, no futuro, não desperte em ninguém nenhum prazer. E que, no seu maligno ar imaturo, ao mesmo tempo saiba ser, não ser. Esse meu verbo antipático e impuro há de pungir, há de fazer sofrer, tendão de Vênus sob o pedicuro. Ninguém o lembrará: tiro no muro, cão mijando no caos, enquanto Arcturo, claro enigma, se deixa surpreender. SONETO OCO [Carlos Pena Filho] Neste papel levanta-se um soneto, de lembranças antigas sustentado, pássaro de museu, bicho empalhado, madeira apodrecida de coreto. De tempo e tempo e tempo alimentado, sendo em fraco metal, agora é preto. E talvez seja apenas um soneto de si mesmo nascido e organizado. Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu, pois não sei como foi arquitetado e nem me lembro quando apareceu. Lembranças são lembranças, mesmo pobres, olha pois este jogo de exilado e vê se entre as lembranças te descobres. PARA FAZER UM SONETO [Carlos Pena Filho] Tome um pouco de azul, se a tarde é clara, e espere pelo instante ocasional. Nesse curto intervalo Deus prepara e lhe oferta a palavra inicial. Aí, adote uma atitude avara: se você preferir a cor local, não use mais que o sol de sua cara e um pedaço de fundo de quintal. Se não, procure a cinza e essa vagueza das lembranças da infância, e não se apresse, antes, deixe levá-lo a correnteza. Mas ao chegar ao ponto em que se tece dentro da escuridão a vã certeza, ponha tudo de lado e então comece. SONETO XX [Sílvio Valente] Amo o soneto porque é molde antigo para dizer as cousas sempre novas; porque depois de não sei quantas provas, um pudor virginal guarda consigo. O soneto é mais puro do que as trovas. Sim, Bem-Amada, eu nele apenas digo tudo que é nobre em mim, tudo que aprovas e é meu prêmio na vida, e é meu castigo. É fino e breve, e tem segredos de arte; Uma pureza, enfim, tão cintilante que, quando um dia desejei cantar-te, os teus encantos rútilos, diversos, pus em soneto; e desde aquele instante, só sei rimar-te com quatorze versos. O NASCIMENTO DO SONETO [Eno Teodoro Wanke] Há pouco tive um pensamento estranho: "Que tal se hoje eu fizesse algum soneto?" Estou até de veia... Eis que o tamanho da inspiração já deu para um quarteto! Bobagem continuar, porém. Que ganho? Caiu-me o lápis. Já apontei. É preto. E como faz calor! — Me espera um banho gelado assim termine este soneto. Estou também com sono. Que preguiça! Mas, amanhã é domingo. Irei à missa?! Não sei. Depois, decidirei se vou. Ai, ai... Vou terminar logo em seguida com isto. Estou com sede. Puxa vida! — E o parto do soneto terminou! SONETO VAZIO [Eno Teodoro Wanke] Se este é o primeiro verso de um soneto, eis o segundo do soneto acima. Terceiro verso: Santo Deus, que meto agora aqui no quarto? Desanima! E, lido o quinto verso, lhes prometo um sexto! E atenção, que já termina! No sétimo, reparo que o quarteto acaba neste oitavo. E tome a rima! E aqui, meu nono verso, meus senhores, no décimo, sugiro-lhes paciência, do undécimo habilmente me descarto! Duodécimo: E que tal falar de amores? Mas... Décimo-terceiro! A penitência tem chave de ouro, enfim: décimo-quarto! [1.15/17.2] Ainda a propósito de Wordsworth, seu soneto foi evocado por Manuel Bandeira quando homenageou o filho de Alphonsus de Guimaraens, também sonetista, falecido em 2008 (ver 8.69): A ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO [Manuel Bandeira] Scorn not the sonnet, disse o inglês. Ouviste O conselho do poeta e um dia, quando Mais o espinho pungiu da ausência triste, O primeiro soneto abriu cantando. Musa do verso livre, hoje ela insiste Na imortal forma, da paterna herdando. Todos em louvor dessa que ora assiste Em teu lar, dois destinos misturando. No molde exíguo, onde infinita a mágoa Humana vem caber, como o universo A refletir-se numa gota d'água, Disseste o mal da ausência. E ais e saudades E vigílias e castas soledades Choram lágrimas novas no teu verso. [1.24/26] Concordo que a figura feminina medieval/renascentista tenha evoluído da condição de escrava perante o dono para a condição de dama perante o cavalheiro, mas, se o dono era dominador, o cavalheiro será, ainda e sempre, conquistador. Constatar que houve alguma evolução não soluciona o problema literário; aliás, apenas escamoteia um problema maior por detrás da mera objetificação da mulher: por que condicionar o lirismo à obrigatória idealização duma musa? Que as Beatrizes e Lauras, como as Marílias e Nises, povoem a lenda dos poetas clássicos, nada a criticar. O problema está em exigir, do poeta em geral e do sonetista em particular, que, para se tornar clássico, protagonize em sua obra a mulher amada. A essa questão Cruz Filho não dá resposta cabal (sequer quando, mais adiante, alegará que o parnasianismo teria ampliado o leque temático com abstrações mitológicas, filosóficas, históricas e até científicas), já que o soneto permaneceria, em sua opinião, limitado a temas "nobres" para ser qualificado como poesia "maior". (Ver 4.24/25) [2.3] Ao citar Boileau entre os esticólogos que regularam o soneto, Cruz Filho mais uma vez capitula ante a galicista mania parnasiana. A legitimidade dos franceses para legislar sobre o gênero pouco afeta os demais idiomas novilatinos, a começar pelo fato de que, em seus próprios versos, Boileau emprega o metro alexandrino, alheio à tradição petrarquiana, camoniana e gregoriana. [2.5] Concordo que, desde os primórdios, o soneto teve suas normas de composição questionadas pelos próprios sonetistas, ainda quando as aplicavam rigorosamente. O desafio representado pelo molde tetrastrófico-decassílabo, quando encarado com senso de humor, resultava em casos célebres de "responsoneto" ou de "processoneto" (ver 1.15/17.1), como os de Lope de Vega, na Espanha, e Gregório de Matos, o Boca do Inferno, no Brasil: [2.5.1] Na literatura espanhola, Lope de Vega (1562-1635) tipifica o apuro formal do soneto barroco com este exemplo: EL SONETO [original de Lope de Vega] Un soneto me manda hacer Violante, Que en mi vida me he visto en tal aprieto: Catorce versos dicen que es soneto, Burla burlando, van los tres delante. Yo pensé que no hallara consonante, Y estoy en la mitad de otro cuarteto; Mas, si me veo en el primer terceto, No hay cosa en los cuartetos que me espante. Por el primer terceto voy entrando, Y aun parece que entré con pie derecho, Pues fin con este verso le voy dando. Ya estoy en el segundo, y aun sospecho Que estoy los trece versos acabando: Contad si son catorce, y está hecho. [2.5.2] No Brasil, Gregório de Matos Guerra (1623-1696) reflete sua influência neste soneto: UM SONETO [recriação de Gregório de Matos] Um soneto começo em vosso gabo: Contemos esta regra por primeira, Já lá vão duas e esta é a terceira, Já este quartetinho está no cabo. Na quinta torce agora a porca o rabo; A sexta vai também desta maneira: Na sétima entro já com grã canseira, E saio dos quartetos muito brabo. Agora nos tercetos que direi? Direi que vós, Senhor, a mim me honrais Gabando-vos a vós, e eu fico um rei. Nesta vida um soneto já ditei; Se desta agora escapo, nunca mais; Louvado seja Deus, que o acabei. [2.5.3] Minha versão do problema remete aos dois mestres, variando apenas na ordem dos fatores a fim de não ficar no mero arremedo: SONETO SONETADO [revisitação de Glauco Mattoso] Já li Lope de Vega e li Gregório, pois ambos sonetaram do soneto, seara na qual minha foice meto, tentando fazer algo meritório. Não quero usar o mesmo palavrório, mas pilho-me, no meio do quarteto, montando a anatomia do esqueleto. No oitavo verso, o alívio é provisório. Contagem regressiva: faltam cinco. Mais quatro, e fico livre do problema. Agora faltam três... Deus, dai-me afinco! Com dois acabo a porra do poema. Caralho! Só mais um! Até já brinco! Gozei! Matei a pau! Que puta tema! [2.6] Concordo que Guimarães, o Diplomata, seja um divisor de águas em termos temáticos (aliás positivamente e não "apesar" do emprego extra-lírico do soneto, como adiante se verá em 5.28), mas Cruz Filho o cita aqui para puxar brasa à sua sardinha parnasiana, "pulando" Gregório e lembrando (como quem concede um "vá lá") Cláudio, o Glauceste. [2.7] Concordo que, em seus cíclicos períodos de descrédito ao longo da história, o soneto padecesse de excessiva mediocridade ou pieguice; concordo ainda que a muitos poetas faltem noções elementares de versificação e até de gramática. Mas nem as fases de decadência, nem as carências individuais, servem de justificativa à defesa de quaisquer "regras estatuídas" demasiado rígidas ou subordinadas ao ideário programático desta ou daquela escola. Nada de argumentos capciosos, hem, caro Cruz Filho? [2.8/9] Concordo, ou ao menos compreendo, que Cruz Filho se sentisse incomodado com o oportunismo dos antologistas que, como Laudelino Freire ou o próprio Alberto de Oliveira, pretendessem priorizar, respectivamente, a quantidade ou a qualidade, até porque ele mesmo, Cruz Filho, planejava reunir num "panorama" a sua antologia ideal, parcialmente enfeixada no capítulo [8] desta monografia. Mas a profusão de antologias não pode ser pretexto para desautorizar os pesquisadores que, no propósito de contemplar a diversidade formal ou temática do soneto, incluam aquilo que o autor chama de "mau gosto" e classifica entre os "espécimes do que há de desvalioso no gênero", simplesmente por se tratar de experimentações algo transgressivas do padrão estético vigente em determinado momento ou círculo. Nas incontáveis antologias publicadas desde a de Laudelino, o denominador comum foi e será a pluralidade dentro da unidade, como se verifica, por exemplo, na volumosa "Os mais belos sonetos brasileiros", organizada por Edgard Rezende (Rio de Janeiro: Vecchi, 1946) ou na recente "De Gregório a Drummond", organizada por Napoleão Valadares (Brasília: André Quicé Editor, 1999). [2.10/13] Concordo com toda e qualquer argumentação que demonstre as ideais dimensões do formato, capazes de conciliar concisão com conclusão, ou seja, raciocínio completo dentro de escrínio compacto. Mas, ainda que nem precisasse citar Brunetière e Gautier para ilustrar ataques ou defesas, Cruz Filho foi feliz quando recorreu à cena de "strip-tease" ousadamente aventada por João Ribeiro. Quanto ao reduzido espaço, que diriam os anti-sonetistas dum haicai ou duma trova? Quanto aos "grandes pensamentos", que diriam dum "to be or not to be" ou dum "cogito ergo sum", menores que um só decassílabo? Se uma máxima cabe num único verso mínimo, catorze serão suficientes para abrir e fechar qualquer pensamento com uma dessas chaves de ouro, diria eu. [2.14] O cálculo de Castilho refere-se a um soneto em alexandrinos, visto que o decassílabo resultaria em 140 sílabas, divididas em dois segmentos de 40 e dois de 30. Fica claro que a opinião de Castilho se volta contra o feiticeiro, já que o engenho humano, para não dizer engenho e arte, mais meritoriamente exercerá sua liberdade de expressão se o fizer a despeito das supostas barreiras silábicas. A verdadeira liberdade consiste em pô-la à prova quando nos sentimos presos. [2.15] Se eu fosse português, jamais afirmaria que Bocage foi o único verdadeiro sonetista de Portugal, mas, se Castilho o afirma, forçosamente endossa, inclusive, as obscenidades do Sadino. Tanto melhor. [2.18] Heredia não "foi incontestàvelmente o maior poeta do soneto de todos os tempos", sequer em termos perfeccionistas. Herediano fanático, Cruz Filho o escolheu como ídolo estético, mas temos que dar o devido desconto, da mesma forma que, no Brasil, Bilac teria sido o maior para alguns, enquanto, para outros, seria Augusto dos Anjos ou Cruz e Sousa, ou ainda Luís Delfino, dependendo do critério de avaliação. Na opinião de Manuel Bandeira, por exemplo, Guilherme de Almeida seria o mais perfeccionista; mas poderia sê-lo um Martins Fontes, um Vicente de Carvalho ou um Amadeu Amaral, para ficarmos apenas circunscritos a nomes paulistas. Tudo é questão de crivo pessoal, portanto nada é "incontestável". [2.19] Concordo que, independentemente das preferências pessoais por este ou aquele sonetista, o que resta incontestável é a maioridade do soneto em si, quer em relação a outros gêneros poéticos, quer em relação a novas e sucessivas propostas estéticas, às vezes tratadas como "vanguardas", e a prova disso reside precisamente na longevidade de sete séculos, o que, no efêmero Ocidente, representa muito. [2.20/34] Concordo que, tudo posto na balança, o soneto tem menos rigidez que flexibilidade nas suas normas e formas, desmontando as alegações dos que o repudiam como "formato fixo". Variações - de metro, rima, ritmo, estrofação e tematização - neutralizam quaisquer objeções feitas, hoje em dia, a esta modalidade poética, inclusive as objeções do próprio Cruz Filho contra os sonetistas que desvirtuam, segundo ele, com criações "abstrusas", a perfeição do gênero. [2.34/35] Além do purismo estético, Cruz Filho cede ao puritanismo ético, como a maioria dos esticólogos, quando admite que um Gonçalves Crespo obrigue o soneto a se humilhar à musa, mas não a ponto de explicitar o fetichismo podólatra, como o fez, "menos poeticamente", segundo ele, o Diplomata Guimarães. Já que Cruz Filho concedeu a Crespo a transcrição integral mas não ao Diplomata, faço-o aqui, dando no todo o soneto aludido: A BORRALHEIRA [Luís Guimarães] Meigos pés, pequeninos, delicados, Como um duplo lilás, se os beija-flores Vos descobrissem entre as outras flores, Que seria de vós, pés adorados! Como dois gêmeos silfos animados, Vi-vos ontem pairar entre os fulgores Do baile, ariscos, brancos, tentadores, Mas, ai de mim! como os mais pés, calçados. Calçados como os mais! Que desacato! Disse eu... Vou já talhar-lhes um sapato Leve, ideal, fantástico, secreto... Ei-lo. Resta saber, Anjo faceiro, Se acertou na medida o sapateiro: Mimosos pés, calçai este soneto. [2.38/40] Concordo que o binômio forma/fundo se afigura simplista quando colocado em termos de plasticidade / subjetividade / objetividade / universalidade. A mera subjetividade pode pender mais para a universalidade caso o poeta comunique seu sentimento de forma menos hermética e transmita algo com que o senso comum facilmente se identifique, tal como a frustração amorosa ou o platonismo de Arvers. Por outro lado, a objetividade pende mais para a plasticidade caso o poeta opte por dialogar somente com o restrito círculo dos elitistas que fabricam e comem seu próprio "biscoito fino". Superar tal dilema, aproximando os extremos da plasticidade e da universalidade, eis aqui o supremo obstáculo a ser vencido pelo poeta maior, seja no soneto ou noutro molde. Quero ressalvar, contudo, que no cerne da questão subjetiva/objetiva não cabe crivo moral: assim, pensamentos ou sentimentos menos "elevados" ou "nobres" podem perfeitamente desempenhar o movimento pendular, quer na direção universal, quer na plástica, talvez até equilibrando, como em Bocage ou Aretino, o preciosismo formal e a vulgaridade temática, no caso a pornografia artisticamente elaborada. Porém Cruz Filho, como outros esticólogos, jamais admitiria tal hipótese. [2.41/43] Por falar em pundonor e pornografia, aproveito o comentário de Cruz Filho, acerca da releitura feita por Raimundo Correia dos versos do Abade de Jazente, para trazer à berlinda outra releitura, feita pelo mesmo Abade (ou por Bocage, segundo alguns), dum tema já sonetizado por autor anônimo do século XVII. Trata-se do "Soneto da Porcaria", que, na versão do Abade, passa a ser conhecido como "Soneto Ascoroso": SONETO DA PORCARIA [Anônimo] Que fio de ouro, que cabelo ondado, piolhos não criou, lêndeas não teve? Que raio de olhos blasonar se atreve, que não foi de remelas mal tratado? Que boca se acha ou que nariz prezado aonde monco ou escarro nunca esteve? E de que tal cristal ou branca neve não se viu seu besbelho visitado? Que papo de mais bela galhardia que um dedo está do cu só dividido, não mija e regra tem todos os meses? Se amor é tudo merda e porcaria, e por este monturo andais perdido, cago no amor e em vós trezentas vezes. SONETO ASCOROSO [Abade de Jazente] Piolhos cria o cabelo mais dourado; Branca remela o olho mais vistoso; Pelo nariz do rosto mais formoso O monco se divisa pendurado. Pela boca do rosto mais corado Hálito sai, às vezes bem ascoroso; [pronuncia-se "ascroso"] A mais nevada mão sempre é forçoso Que de sua dona o cu tenha tocado. Ao pé dele a melhor natura mora, Que deitando no mês podre gordura, Fétido mijo lança a qualquer hora. O cu mais alvo caga merda pura: Pois se é isto o que tanto se namora, Em ti mijo, em ti cago, ó formosura! [2.44/50] Concordo que a sedução exercida pelo poder de síntese, quando não pela lei do menor esforço, seja insuficiente para explicar a perenidade do soneto, ou para distingui-lo do haicai e da trova, outros moldes igualmente breves. Mas não me inclino, ao contrário de Cruz Filho quando parafraseia Dorchain, a satisfazer-me com a analogia dramatúrgica, baseada na crescente expectativa pelo desfecho dum enredo. Para mim, a analogia mais plausível se estabelece com o raciocínio filosófico, a exemplo do silogismo, no qual cada termo conduz, dedutiva e progressivamente, à conclusão, ainda que a uma conclusão ilógica ou absurda. São justamente tais termos, quais premissas encadeadas, que, à semelhança dos quartetos e tercetos, fazem do soneto algo distinto do haicai ou da trova, já que nestes o raciocínio não se desenvolve na mesma progressão nem se pauta pelas mesmas pausas lógico-estróficas. Nessa dialética entre condução, concisão e conclusão é que reside o diferencial do soneto em relação a qualquer outro molde poético jamais inventado. [2.51] Concordo que, nos quartetos, calhem melhor as rimas abraçadas (ABBA), mas por razões estéticas, e não por razões "estáticas" ou "dinâmicas, como quer Cruz Filho. Ou seja, o que importa é evidenciar que o soneto é composto de dois quartetos e dois tercetos, e não de uma oitava e uma sextilha. Quanto aos tercetos rimados em CDC/DCD, ainda que se esquematizem cruzadamente como que em sextilha, o que prevalece é a quantidade binária das rimas, ao invés da ternária, donde a conveniência de manter, no todo, o esquema abraçado em quarteto e cruzado em terceto, que, na minha opinião, mais íntegro se afigura e mais fiel ao paradigma petrarquiano ABBA/ABBA CDC/DCD. [2.52] Nos tercetos, as alternativas mais fáceis ao esquema CDC/DCD, que são (1) CCD/EED e (2) CDE/CDE, ainda que geometricamente simpáticas, apresentam alguns inconvenientes. A primeira, por repetir uma seqüência já praticada nos quartetos; a segunda, por transformar cada terceto em estrofe branca. A primeira se justifica quando os quartetos são rimados cruzadamente (ABAB), resultando no esquema total ABAB/ABAB CCD/EED, e a segunda, embora combine indiferentemente com quartetos abraçados ou cruzados, parece mera tentativa de fugir à rotina e de "variar um pouco", como variou Camões no soneto 29 em relação ao 19, este sim um paradigma perfeito das quatro rimas desejáveis ao soneto. Obviamente, as demais variações (CDD/CCD, CCD/DDC ou CDD/DCC) nada acrescentariam aos tercetos, exceto um menor grau de dificuldade (portanto, de mérito), caso ampliassem as rimas de quatro para cinco, como CDE/DCE, CDC/EDE ou CDD/CEE. O mesmo vale para as inócuas variações em ABBA/BAAB ou em ABAB/BABA nos quartetos, que só servem para comprometer a harmonia do conjunto. Piores ainda seriam os esquemas ABAB/CDCD ou ABBA/CDDC, por exemplo, em termos de desequilíbrio, a menos que o poeta pretenda precisamente desequilibrar, o que não se discute. [2.52.1] Em termos paradigmáticos, chamei de "camoniano par" o esquema em quatro rimas, de todos o mais belo e difícil. Quanto menos rimas, mais versos na mesma rima. Portanto, um complicador a mais desafiando a habilidade do poeta. O exemplo mais clássico, em decassílabos, na maioria do tipo heróico puro (acentuado na segunda, sexta e décima sílabas), é o 19 de Camões, rimando em ABBA/ABBA CDC/DCD: SONETO 19 [Camões] Alma minha gentil, que te partiste Tão cedo desta vida, descontente, Repousa lá no céu eternamente E viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente, Que já nos olhos meus tão puro viste. E se vires que pode merecer-te Alguma cousa a dor, que me ficou Da mágoa, sem remédio, de perder-te; Roga a Deus, que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou. [2.52.2] Na mesma linha de raciocínio, chamei de "camoniano ímpar" o esquema em cinco rimas, ligeiramente mais flexível, mas não menos difícil. Nos quartetos a rima continua abraçada (ABBA/ABBA), mas nos tercetos o esquema muda para CDE/CDE (admitindo embaralhamentos destas posições, como CCD/EED ou CDC/EDE ou CDE/DEC); seu paradigma é o 29 de Camões: SONETO 29 [Camões] Sete anos de pastor Jacó servia Labão, pai de Raquel, serrana bela: Mas não servia ao pai, servia a ela, Que a ela só por prêmio pretendia. Os dias, na esperança de um só dia, Passava, contentando-se com vê-la: Porém o pai, usando de cautela, Em lugar de Raquel lhe dava Lia. Vendo o triste pastor que com enganos Assi lhe era negada a sua pastora, Como se a não tivera merecida; Começou a servir outros sete anos, Dizendo: Mais servira, se não fora Para tão longo amor tão curta a vida. [2.62] Concordo que, dentre as experiências "anatômicas" de que o soneto tem sido cobaia, a única menos frankensteiniana foi mesmo a estrambótica, ainda assim uma metamorfose algo teratológica. Mas Cruz Filho poderia ter incluído nesse laboratório a chamada "coroa" de sonetos, cujo resultado final também se constitui num "monstrengo" todo remendado, ainda que o cirurgião plástico possa fazer milagres. [2.62.1] Alhures teorizei que o encadeamento de forma e fundo entre versos e estrofes é tão inerente à estrutura do soneto que alguns poetas se dão ao luxo de compor ciclos onde o décimo quinto soneto é constituído pelas chaves-de-ouro dos outros catorze, cada um dos quais principia pelo verso-chave do que o antecede. A tais ciclos se dá o nome de "coroa" ou "grinalda" de sonetos. Bem rara é a ocorrência de coroas entre sonetistas brasileiros. Geir Campos, por exemplo, exercitou o paradigma mais comum, no qual catorze sonetos se encadeiam por meio de seus versos-chaves, seguidos de um décimo quinto soneto formado pelos catorze versos-chaves. José Peixoto Júnior, por sua vez, praticou modalidade mais sofisticada, na qual, além de ser cada soneto iniciado pela chave-de-ouro do soneto precedente, o 15º soneto é iniciado pela 14ª linha do 14º soneto, seguida pela 13ª linha do 13º soneto, pela 12ª linha do 12º soneto, e assim por diante, até encerrar com a primeira linha do primeiro soneto. De quebra, esse 15º ou "soneto-chave" é um acróstico, que no caso de Peixoto forma o título SERRA DO ARARIPE. A coroa que compus, cujo acróstico forma o título CATORZE QUEIJOS, segue o modelo praticado por Peixoto, mas, enquanto o nordestino canta ecologicamente a serra do Araripe (entre o Ceará e Pernambuco), este paulistano conta gastronomicamente as aventuras amorosas de um poeta urbano, desde a infância à vida adulta. Trata-se, portanto, de requintado malabarismo formal, bem ao gosto de poetas experimentais, sejam eles barrocos ou concretos. [2.64/65] Veja-se o que já apontei em 2.51/52 e ainda o que vai apontado em 2.68/69. [2.66] Concordo que a questão dos versos graves e agudos seja um dos muitos pontos discutíveis no tratado bilaquiano, mas o problema vai além, envolvendo esticólogos até mais metódicos e tecnicistas, como Cavalcanti Proença e Said Ali. Alhures já teorizei que, ainda que minoritários no idioma, os versos masculinos (agudos) são os que impõem a medida do decassílabo ou do alexandrino, razão pela qual não posso concordar com o critério de Said Ali, pelo qual nos obrigaríamos a aceitar que, num mesmo soneto isossilábico, se misturassem decas com hendecas (como no soneto 19 de Camões), ou dodecas com tridecas (como no soneto "No cavalo" de Gilka Machado), hipótese metricamente absurda. Um ou outro hipérmetro é admissível, a título de extravagância do poeta, mas um anisossilabismo habitual não pode ser admitido, apenas porque o esticólogo resolveu tratar igualitariamente versos femininos (graves) e masculinos (agudos). Said Ali, em seu tratado "Versificação portuguesa" (1949), propunha a contagem pelo verso grave, à moda italiana. Cavalcanti Proença mostra-se inclinado a concordar com Said Ali, mas prefiro a postura mais didática dos que seguem a norma de Castilho, que parte do verso agudo para contar até a última tônica, desprezando as postônicas dos versos graves e esdrúxulos. Afinal, nenhum dos três tipos de verso pode ser considerado prioritário no idioma (ainda que o grave seja predominante), já que todos os poetas têm liberdade para compor quaisquer deles, a exemplo de Castro Alves, que em seu "Hino ao Sono" faz uso de todos os três, esdrúxulos, graves e agudos: Ó sono, ó noivo pálido Das noites perfumosas Que sobre um chão de rosas Trilhas pela amplidão [2.67] A suposta beleza do alexandrino fica por conta da preferência pessoal de Cruz Filho, que, contudo, reconhece as tradições petrarquiana, camoniana, gregoriana e bocagiana na formação da cultura sonetística vernácula e, particularmente, brasileira. Quanto aos franceses, alhures recapitulei o que vai abaixo. [2.67.1] Pierre de Ronsard (1524-1585) se divide entre as funções de poeta da corte e chefe da escola poética conhecida como "Plêiade", tanto quanto se divide entre o helenismo e a influência de Petrarca, mas o decassílabo esquematizado em ABBA/ABBA CCD/EED nem sempre se presta ao inocente cortejo duma musa pastora, como se pode verificar neste exemplo: [original de Ronsard] Je te salue, ô merveillette fente, Qui vivement entre ces flancs reluis; Je te salue, ô bienheureux pertuis, Qui rend ma vie heureusement contente! C'est toi qui fais que plus ne me tourmente L'archer volant qui causait mes ennuis; T'ayant tenu seulement quatre nuis, Je sens sa force en moi déjà plus lente. O petit trou, trou mignard, trou velu, D'un poil folet mollement crespelu, Qui à ton gré domptes les plus rebelles: Tous vers galans devraient, pour t'honorer, A beaux genoux te venir adorer, Tenant au poin leurs flambantes chandelles! [tradução de José Paulo Pais] Eu te saúdo, fenda de portentos, A luzir entre dois flancos macios; Saúdo-te, buraco de amavios, Que dás ao meu viver contentamento. Enfim me libertaste dos tormentos Do alado arqueiro e dos meus desvarios; Só quatro noites eu te possuí e o Poder do arqueiro fez-se em mim mais lento. Pequeno furo, furo arteiro, furo Tão bem guardado em matagal obscuro, Que ao mais rebelde domas com presteza: Todo vero galã, para te honrar, Devia de joelhos te adorar, Firme empunhando a sua vela acesa! [2.67.2] François de Malherbe (1555-1628), embora dissidente da "Plêiade", manteve-se tão vaidoso quanto Ronsard na posição de poeta cortesão e chefe de escola. Sua proposta era duma poesia descomplicada, porém disciplinada. No exemplo abaixo, já empregava o alexandrino esquematizado em ABBA/ABBA CCD/EDE, que José Paulo Pais reproduz com ligeira liberdade nos tercetos: [original de Malherbe] J'avais passé quinze ans, les premiers de ma vie, Sans avoir jamais sçeu quel estoit cet effort Où le branle du cu fait que l'âme s'endort, Quand l'homme a dans un con son ardeur assouvie. Ce n'estoit pas pourtant qu'une éternelle envie Ne me fit désirer une si douce mort, Mais le vit que j'avois n'estoit pas assez fort Pour rendre comme il faut une Dame servie. Je travaille depuis, et de jour, et de nuit, A regagner ma perte, et le temps qui s'enfuit, Mais déjà l'Occident menace mes journées... O Dieu! je vous appelle, aydez à ma vertu: Pour un acte si doux, allongez mes années, Ou me rendez le temps que je n'ai pas foutu! [tradução de José Paulo Pais] Quinze anos eu passara, os primeiros da vida, Sem ter sabido nunca o que era esse furor Em que a dança do cu deixa na alma um torpor Após a ânsia viril na cona ser remida. Não que a morte tão doce e tão apetecida Não me impelisse um forte, juvenil ardor, Mas o membro que eu tinha, embora lutador, Não chegava a deixar a Dama bem servida. Trabalho desde então com pertinácia rara Por compensar a perda e o tempo que não pára, Pois o sol no Poente ameaça os meus dias. Oh Deus, venho rogar-te, meu zelo ajudai: Para tão doce agir, meus anos alongai Ou devolvei-me o tempo em que inda eu não fodia! [2.68/69] Alhures teorizei que, além dos paradigmas camonianos, "par" e "ímpar" (ver 2.52.1/2), algumas experimentações mais recentes se configuraram distintamente, com maior ou menor aceitação. Chamei-as de modelos "parnasiano estreito", "parnasiano largo", "moderno branco", "moderno livre", "alternativo parnasiano", "alternativo inglês" e "alternativo redividido", aos quais acrescento ainda o sonetilho. As experiências monossilábicas a que se refere Cruz Filho estariam, assim, enquadradas na categoria do sonetilho minimalista, vizinho do concretismo. (Vejam-se ainda os tópicos 2.77.2 e 5.49.4) [2.68/69.1] Como exemplos do "camoniano par", as brasileiras abaixo variam entre o esquema original e as rimas em ABBA/ABBA CCD/CCD e ABAB/ABAB CDC/DCD. Note-se que as poetisas não resistem à tentação de empregar um ou outro sáfico em meio a alguns martelos, abrindo mão da pureza clássica em favor da feminilidade e da brasilidade: MAL DE AMOR [Ana Amélia de Queirós] Toda pena de amor, por mais que doa, No próprio amor encontra recompensa. As lágrimas que causa a indiferença, Seca-as depressa uma palavra boa. A mão que fere, o ferro que agrilhoa, Obstáculos não são que amor não vença. Amor transforma em luz a treva densa. Por um sorriso amor tudo perdoa. Ai de quem muito amar não sendo amado, E depois de sofrer tanta amargura, Pela mão que o feriu não for curado. Noutra parte há de em vão buscar ventura. Fica-lhe o coração despedaçado, Que o mal de amor só nesse amor tem cura. SONETO MUCUNGO [Florbela de Itamambuca] pernilongo zunindo trás da orelha e o remédio me deixa assim zureta sonho homem mar dor pássaro em caixeta ovelha trás dovelha trás dovelha três filhos e já tô ficando velha canto de ninar xifre de capeta por esses dia as coisa anda tão preta que até pra sonhar tem que olhar disguelha então não sonho muito vô seguindo pra morrer nem precisa de promessa criar meus curumim tá tudo lindo se pensar demais o aço me atravessa no caneco mucungo e tamarindo que o mar mais bravo é dentro da cabeça SONETO DO OLHAR [Auta de Sousa] Tudo o que é puro, santo e resplendente, Neste mundo cruel de desenganos, Toda a ventura dos primeiros anos Num'alma que desbrocha sorridente; Tudo o que ainda vemos de potente Na vastidão sem fim dos oceanos, E da terra nos prantos soberanos Trazidos pela aurora refulgente; Tudo o que desce do infinito ousado: O sol, a brisa, o orvalho prateado, A luz do amor, do bem, das esperanças; Tudo, afinal, que vem do Céu dourado A despertar o coração magoado, - Deus encerrou nos olhos das crianças! OLHOS NUNS OLHOS [Gilka Machado] De onde vêm, aonde vão teus olhos, criança, tão cansados assim de caminhar? dessa tua existência nova e mansa como pode provir um tal pesar? A alma de fantasia não se cansa! nunca existiu tristeza nesse olhar; é que a minha mortal desesperança te olha e nos olhos teus vai se espelhar. Com toda a vista em tua vista presa, penso: uma dor tão dolorosa assim só há na minha interna profundeza... Não me olhes mais, formoso querubim! que vejo nos teus olhos a tristeza dos meus olhos olhando para mim. [2.68/69.2] Como exemplo do "camoniano ímpar", Cecília Meireles demonstra preciosismo nas rimas em "ida", "udo" e "ada" dos tercetos: SOB A TUA SERENIDADE... [Cecília Meireles] Não me ouvirás... É vão... Tudo se espalha pelos ermos de azul... E permaneces sobre o vale das súplicas e preces com solenes grandezas de muralha... Minha alma, sem Te ouvir nem ver, trabalha tranqüila. Solidão... Desinteresses... Por que pedir? De tudo que me desses nada servira a esta existência falha... Nada servira, agora... E, noutra vida, oh! noutra vida eu sei que terei tudo que há na paragem bem-aventurada... Tudo, - porque eu nasci desiludida, e sofri, de olhos mansos, lábio mudo, não tendo nada e não pedindo nada... [2.68/69.3] Como exemplos de parnasiano "estreito", com cinco, seis ou sete rimas, os casos abaixo mantêm o deca camoniano mas invertem as abraçadas no segundo quarteto (ABBA/BAAB), ou não repetem no segundo quarteto as rimas do primeiro (ABBA/CDDC), ou cruzam rimas nos quartetos (ABAB/ABAB ou ABAB/BABA ou ABAB/CDCD), liberando ao máximo o posicionamento nos tercetos. Nestes seis exemplos, há esquemas em ABAB/ABAB CDC/EDE, em ABAB/ABAB CDD/ECE, em ABBA/BAAB CDE/CDE, em ABBA/BABA CCD/EED (cinco rimas), em ABBA/CDDC EEF/EFF (seis rimas) e em ABBA/CDDC EEF/FGG (sete rimas); complementando a exemplificação, meu próprio soneto em ABAB/ABAB CCD/EED: OLHOS TRISTES [Henriqueta Lisboa] Olhos mais tristes inda do que os meus São esses olhos com que o olhar me fitas. Tenho a impressão que vai dizer adeus Este olhar de renúncias infinitas. Todos os sonhos, que se fazem seus, Tomam logo a expressão de almas aflitas. E até que, um dia, cegue à mão de Deus, Será o olhar de todas as desditas. Assim parado a olhar-me, quase extinto, Este olhar que, de noite, é como o luar, Vem da distância, bêbedo de absinto... Este olhar, que me enleva e que me assombra, Vive curvado sobre o meu olhar Como um cipreste sobre a própria sombra. PROH PUDOR! [Cesário Verde] Todas as noites ela me cingia Nos braços, com brandura gasalhosa; Todas as noites eu adormecia, Sentindo-a desleixada e langorosa. Todas as noites uma fantasia Lhe emanava da fronte imaginosa; Todas as noites tinha uma mania Aquela concepção vertiginosa. Ela tinha um furor dos mais soturnos, Agora, há quase um mês, modernamente, Furor original, impertinente... Todas as noites ela, ó sordidez! Descalçava-me as botas, os coturnos E fazia-me cócegas nos pés... PÉRFIDA [Francisca Júlia] Disse-lhe o poeta: "Aqui, sob estes ramos, Sob estas verdes laçarias bravas, Ah! quantos beijos, trêmula, me davas! Ah! quantas horas de prazer passamos! Foi aqui mesmo, - como tu me amavas! Foi aqui, sob os úmidos recamos Desta aragem, que uma rede alçamos Em que teu corpo, mole, repousavas. Horas passava junto a ti, bem perto De ti. Que gozo então! Mas, pouco a pouco, Todo esse amor calcaste sob os pés". "Mas, disse-lhe ela, quem és tu? De certo, Essa mulher de quem tu falas, louco, Não, não sou eu, porque não sei quem és..." NO BAILE [Francisca Júlia] Flores, damascos... é um sarau de gala. Tudo reluz, tudo esplandece e brilha; Riquíssimos bordados de escumilha Envolvem toda a suntuosa sala. Moços, moças levantam-se; a quadrilha Rompe; um suave perfume o ar trescala; E Flora, a um canto, envolta na mantilha, Espera que o marquês venha tirá-la... Finda a quadrilha. Rompe a valsa inglesa. E ela não quer dançar! ela, a marquesa Flora, a menina mais formosa e rica! E ele não vem! Enquanto finda a valsa, Ela, triste, a sonhar, calça e descalça As finíssimas luvas de pelica! SONETO DA PARTIDA [Renata Pallottini] Que golpe decisivo ou força nova arrasta assim um homem para a treva? Que estranho impulso a um mundo estranho o leva que enorme sonho o sonho seu renova? Não é o gélido ouro, nova lava, de excessivos vulcões deusa excessiva, não é o quente amor que prende e priva, nem coroa de ouro excelsa e flava. Morto, se for, será perdido e pobre, vivo, se vier, será tão pouco nobre como se não partira e não tornara. Que força, então, seus membros nus recobre, que o faz surgir como uma estátua rara e enche de luz sua pupila clara? PRIMEIRO SONETO DE MEDITAÇÃO [Vinícius de Morais] Mas o instante passou. A carne nova Sente a primeira fibra enrijecer E o seu sonho infinito de morrer Passa a caber no berço de uma cova. Outra carne virá. A primavera É carne, o amor é seiva eterna e forte; Quando o ser que viveu unir-se à morte No mundo uma criança nascerá. Importará jamais por quê? Adiante O poema é translúcido, e distante A palavra que vem do pensamento Sem saudade. Não ter contentamento. Ser simples como o grão de poesia. E íntimo como a melancolia. SONETO DA QUINTA RIMA [Glauco Mattoso] Camões pôs, no quarteto, o ABBA, esquema insuperável para a rima. Contudo, outros esquemas haverá capazes de cair na minha estima... Mais visto em Portugal do que por cá, o velho ABBA já deu-me o clima propício. ABAB também mo dá: seu passo da quadrinha se aproxima... Em vez de CDC e de DCD, terceto em CCD mais EED segredo é do riquíssimo arremate... Porém o decassílabo prossegue, pois tem valor igual, não há quem negue, ao cravo na sonata de Scarlatti... [2.68/69.4] Já o parnasiano "largo", com cinco a sete rimas, esquematiza-se optativamente nas mesmas condições do modelo "estreito" precedente, trocando apenas o decassílabo pelo dodecassílabo (alexandrino). Abaixo, três exemplos, com esquemas em ABAB/ABAB CCD/EED, em ABAB/BABA CCD/EED (cinco rimas) e em ABAB/CDDC EFE/FGG (sete rimas): NO CAVALO [Gilka Machado] Belo e heróico, agitando as veludosas crinas, meu árdego animal, tens a sofreguidão do infinito - o infinito haures pelas narinas - e, sem asas obter, buscas fugir do chão. Domino-te; entretanto, és tu que me dominas. É um desejo que espera a humana direção a tua alma, e, transpondo os valos e as campinas, meu sentimento e o teu se compreendendo vão. Amas o movimento, o perigo, as distâncias; meigo, sentimental, tens arrojadas ânsias, em tuas veias corre um férvido calor. Quando em teu corpo forte o frágil corpo aprumo eu me sinto disposta a lançar-me, sem rumo, às conquistas da Glória e às conquistas do Amor! SER MULHER [Carmen Cinira] Ser mulher não é ter nas formas de escultura, No traço do perfil, no corpo fascinante, A beleza que um dia o tempo transfigura E um olhar deslumbrado atrai a cada instante... Ser mulher não é só ter a graça empolgante, O feitiço absorvente, a lascívia e a ternura; Ser mulher não é ter na carne provocante A volúpia infernal que arrasta e desfigura... Ser mulher é ter na alma essa imortal beleza De quem sabe pensar com toda a sutileza E no próprio ideal rara virtude alcança... É ter, simples e pura, os sentimentos francos, E ainda no fulgor dos seus cabelos brancos, Sonhar como mulher, sentir como criança! SONETO DA MULHER AO SOL [Vinícius de Morais] Uma mulher ao sol - eis todo o meu desejo Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz A flor dos lábios entreaberta para o beijo A pele a fulgurar todo o pólen da luz. Uma linda mulher com os seios em repouso Nua e quente de sol - eis tudo o que eu preciso O ventre terso, o pêlo úmido, e um sorriso À flor dos lábios entreabertos para o gozo. Uma mulher ao sol sobre quem me debruce Em quem beba e a quem morda e com quem me lamente E que ao se submeter se enfureça e soluce E tente me expelir, e ao me sentir ausente Me busque novamente - e se deixa a dormir Quando, pacificado, eu tiver de partir... [2.68/69.5] Quanto ao "moderno branco", a ausência de rima é contrabalançada pela rigidez métrica. Exemplo em deca heróico, no qual a simetria é quebrada por dois sáficos, evidenciando que também no verso branco o ritmo acompanha a métrica: ARMORIAL (XIV) [Paulo Bomfim] Nordestes holandeses que procuro Nas casas-grandes que hoje trago na alma, Socorros mamelucos desfilando, Em calçadas de seda e porcelana. Ruivos combates, retiradas brancas, Sangue perdido sobre canaviais, Calções de couro entre chapéus de pluma, Saudades altiplanas em recifes. Nordestes do meu sul irremediável, Senhor de dois mil arcos fui outrora, Socorrendo as olindas senhoriais... Hoje sou só. Trezentos desenganos Cobriram de ferrugem meus guerreiros. E empurraram sobrados sobre mim. [2.68/69.6] Quanto ao "moderno livre", a ausência de metro e rima, ou só de metro, parece facilitar, mas deve ser compensada pela extrema destreza da poetisa ou do poeta ao trabalhar cada palavra. Exemplos em que, além do metro, também a posição dos quartetos e tercetos é irregular, no caso de Cecília, ou em que apenas a disposição entre quartetos e tercetos dá consistência ao soneto, caso de Murilo: CANÇÃOZINHA DE NINAR [Cecília Meireles] O mar o convalescente mira. - Que pena, que pena no seu mirar! - Como quem namora, suspira, e quem tem medo de se enamorar. Água, que pareces um ramo de flores, o nome dos humanos amores mora na espuma do mar... O céu o convalescente mira. - Que pena, que pena no seu mirar! - Como quem vai morrer, suspira e quem tem medo de ressuscitar. Nuvem, que pareces um ramo de flores, o nome dos humanos amores mora no hálito do ar... O FILHO PRÓDIGO [Murilo Mendes] À beira do antiuniverso debruçado Observo, ó Pai, a tua arquitetura. Este corpo não admite o peso da cabeça... Tudo se expande num sentido amargo. Lembro-me ainda que me evocaste Do teu caos para o dia da promessa. O fogo irrompia das mulheres E se floria o sol de girassóis. Uma única vez eu te entrevi, Entre humano e divino inda indeciso, Atraindo-me ao teu íngreme coração. Para outros armaste o teu festim: E da tua música só vem agora O soluço da terra, dissonante. [2.68/69.7] Quanto ao "alternativo" parnasiano, foge ele ao parnasiano convencional ("estreito" ou "largo"), tem cinco a sete rimas, e poder-se-lhe-ia aplicar, no posicionamento estrófico, a mesma liberdade experimentada no posicionamento das rimas. Assim, em lugar de dois quartetos seguidos de dois tercetos (4/4/3/3), teríamos outras disposições: 3/3/4/4, 3/4/3/4, 4/3/4/3, 3/4/4/3, 4/3/3/4. Se a tal redivisão somarmos as licenças modernas (verso branco ou livre) amplia-se o campo experimental (e com isso o risco de desfigurar demais o soneto). No caso de Cecília Meireles (acima) temos um exemplo em 4/3/4/3 e, abaixo, exemplos de experiência parnasiana em 3/3/4/4 e respectiva reciclagem pós-moderna, ambas preservando a integridade do soneto e o alto padrão poético: ORGULHO [Luís Delfino] Hebe, a deusa dos braços cor de neve, Leda, que o cisne, por tão branco, engana, Tétis, que tem um pé pequeno e leve, Como um raio de luz, enfim Diana, Rival de Vênus, que somente deve, De um Deus, que a trai, a ver-lhe a soberana Forma, à noite, no lago ao banho, e a custo; A Afrodite na vaga, que murmura De pé na concha, o flanco amplo e robusto, Delas nenhuma, Amor, mais graça apura, Não! nenhuma te ganha em formosura: Fez-te de um cipo de granito augusto Um artista divino por ventura: Tu te orgulhas de ti, Helena: - é justo. SETE ESTUDOS PARA A MÃO ESQUERDA (III) [Paulo Henriques Britto] Sou uma história, a voz que a conta, e o imenso desejo de contar outra diversa, que porém não deixasse de ser essa. Palavra que não digo e que não penso e no entanto escrevo - eu sou você? (Mas não era isso o que eu ia dizer, e sim uma outra coisa, obscura e bela, que sei, com uma certeza visceral, ser a verdade última e total - e só por isso já não creio nela, pois a certeza, tal como a memória, é por si só demonstração sobeja da falsidade do que quer que seja -) Mas isso já seria uma outra história. [2.68/69.8] Quanto ao "alternativo" inglês, na verdade tradicionalíssimo naquele idioma mas estranho ao nosso, tudo é questão de cultura e nomenclatura. Se, ao invés de dividir (ou redividir) o soneto em dois quartetos e dois tercetos, redistribuirmos os catorze versos em 4/4/4/2, temos o chamado "modelo inglês" (consagrado por Shakespeare), pouco praticado no Brasil ou em Portugal. Abaixo vão três exemplos, o primeiro com esquema de rima em ABABABABCDCDEE e o segundo em ABABCDCDEFEFGG, ambos no decassílabo, e o terceiro em ABBACDDCEFFEGG, este com elasticidade métrica e rima toante: DIVISAMOS ASSIM O ADOLESCENTE [Mário Faustino] Divisamos assim o adolescente, A rir, desnudo, em praias impolutas. Amado por um fauno sem presente E sem passado, eternas prostitutas Velavam por seu sono. Assim, pendente O rosto sobre o ombro, pelas grutas Do tempo o contemplamos, refulgente Segredo de uma concha sem volutas. Infância e madureza o cortejavam, Velhice vigilante o protegia. E loucos e ladrões acalentavam Seu sono suave, até que um deus fendia O céu, buscando arrebatá-lo, enquanto Durasse ainda aquele breve encanto. SONETOS DE VILA REAL, VII [Renata Pallottini] Há um mar entre esse porto e o nosso porto, um mar de olvido e de distância, um mar que faz o esposo sombra, o filho morto, e da esposa e da mãe, o recordar. Há nesta terra o ardor dos frutos verdes, não espereis de volta o vosso irmão; se o amais, consolai-vos de o perderdes que ele é conquista e planta deste chão. Se permitis que se desligue o laço, (se o permites, Antonio) que se corte a potência comum do vosso braço, contai que está desfeita a antiga sorte: distantes do renovo que vos deixe, tereis áspero o fruto e amargo o peixe. SONETO DOS LAMENTOS EM "I", EM "U" E EM "A" [Rita Moutinho] O lamento em "i" é o apito de um trem. Febril, atrevido, vívido, grito de ira, vem pela manhã quando o sol a pino indica que no dia-a-dia não vive em mim meu bem. O lamento em "u" é o apito de um vapor. Surdo, rouco, soturno, úmido soluço, vem de noitinha quando com duas mãos cubro os olhos para apagar vulto do meu amor. O lamento em "a" é o verdadeiro gemido. Arfado, inconsolável, abafado, som da alma, chega de madrugada quando o real fala que só em espaço abstrato tenho o meu querido. Quisera eu que lamentos fossem só vogais. Elas não sentem dores. Eu as sinto demais. [2.68/69.9] Quanto ao "alternativo redividido", a estrofação neste caso sofre maior metamorfose. Se, ao invés de quatro estrofes, fragmentarmos o soneto em mais tercetos ou dísticos, a experimentação ganha novos horizontes. O importante é preservar algum critério, métrico ou rimático, para evitar a desintegração conceitual do poema, cuja proposta temática deve se articular à estrutura formal. Entre outras possíveis redistribuições estróficas, a solução abaixo foi difundida por Paulo Henriques Britto em sete rimas e pesquisada por mim, que a compactei em cinco rimas. Um dos quartetos é substituído por dois dísticos (abrindo e fechando o soneto), enquanto os tercetos se separam para intercalar o quarteto restante no centro do poema: 2/3/4/3/2. Em Britto o esquema rimático fica AA/BCB/CDED/FEF/GG; em Mattoso, AA/BCB/DEED/BCB/AA: [de Paulo Henriques Britto] Tão limitado, estar aqui e agora, dentro de si, sem poder ir embora, dentro de um espaço mínimo que mal se consegue explorar, esse minúsculo império sem território, Macau sempre à mercê do latejar de um músculo. Ame-o ou deixe-o? Sim: porém amar por falta de opção (a outra é o asco). Que além das suas bordas há um mar infenso a toda nau exploratória, imune mesmo ao mais ousado Vasco. Porque nenhum descobridor na história (e algum tentou?) jamais se desprendeu do cais úmido e ínfimo do eu. SONETO SENSORIAL [Glauco Mattoso] Sensíveis todos somos, mais ou menos, mas seres sensitivos, só os pequenos. Sentir é propriedade material. A gente sente a forma, o peso, a cor, aromas e calores, doce ou sal. Filósofos entendem que a verdade não passa de ilusão. Pensamos nela apenas como quem aspira, anela: delírios dum recluso atrás de grade. Sentir é perceber o que é real, mas é também querer, seja o que for, alguém ou algo, intenso, especial. Se somos sensuais, quem sabe é Vênus. Serão sentimentais somente os plenos. [2.68/69.10] Quanto ao sonetilho, ocorre que, de hábito, o soneto tem verso de dez ou doze sílabas, sendo os metros curtos (geralmente redondilhas) próprios da trova, da glosa ou de outros gêneros mais populares (mais fáceis de transmitir oralmente), como a poesia de cordel. Entretanto, nada impede que o sonetista adote o verso de pequeno fôlego, desde que sua criatividade supere a limitação. Abaixo dou dois exemplos de sonetilho em redondilha, mas também se encontram sonetilhos em metros diferentes: hexa, octo e eneassílabos, principalmente. No "Panorama" do capítulo [8] adicionei exemplos em tetrassílabo (Vinícius), em heróico quebrado (Drummond), em redondilha maior (Emílio) e em octossílabo (Bandeira). BONS TEMPOS ou "SAUDOSA MALOCA..." [Leila Míccolis] Namoro antigo: titia na sala bordava um pano, tomava conta, e ainda havia entre nós dois... um piano... Pra se mostrar, a vigia tocava um rondó cigano, tão mal, que ela enrubescia, se rias de algum engano... Por fim, como despedida, a mais ousada bravata: um beijo na minha tez. E após a tua saída, eu, titia e mais a gata, surubávamos as três... SONETO DA REDONDILHA REDUNDANTE [Glauco Mattoso] Da nojeira e da meleca eu jamais me desvencilho. Mas fugir posso do deca e sujar o sonetilho. De quem mija e quem defeca a falar sempre me pilho. Mas a fonte às vezes seca, perde a estrela o próprio brilho. Por que não obrar num verso mais curtinho e num diverso molde estrófico cagar? À sujeira não me furto: também, pois, farei do curto sonetilho seu lugar. [2.70/71] Concordo que a má vontade de Cruz Filho com relação ao que chamo de"moderno livre" ou de "alternativo redividido" (na forma), ou ainda de "sensoneto" (na linguagem) tenha, freqüentemente, sua razão, dada a quantidade avassaladora de sonetos desse tipo, cuja inferior qualidade se deve menos ao espírito moderno que à baixa escolaridade ou falta de aptidão do versificador. Contudo, os exemplos de Cassiano Ricardo e Mallarmé, apresentados pelo autor, nada têm de "abstruso" nem de "deturpado", já que o nonsense revestido de lirismo figura entre as aventuras literárias em quaisquer idiomas e épocas. O problema está na inversão dos valores a ponto de converter-se em regra aquilo que, pela natureza experimental e vanguardeira, deveria ser exceção, justamente para que seu tempero exótico se mantenha estimulante ao paladar acostumado à culinária convencional. Mas, diante de qualquer "novidade", quem consegue conter a natural tendência ao modismo e à banalização? Esse comportamento "epidêmico" faz parte da psicologia coletiva, contra a qual nada pode o mau humor de Cruz Filho. [2.72] Concordo que o exemplo de Soror Violante corrobora o que acaba de ser dito, acerca da ocorrência, em todas as línguas e épocas, de "gongorismos", "surrealismos" e outros artificialismos que subvertam, morfológica ou semanticamente, a fatura dum poema. Mas o simples fato de que a poetisa teve seu círculo de cultores basta para legitimar seu estilo no seio da ilimitada diversidade poética. Pelo visto, a tolerância não tem lugar entre as virtudes cultivadas por Cruz Filho. [2.74] Concordo que nada ganha o soneto com a alteração na ordem das estrofes, praticada por Delfino (ver 2.68/69.7), exceto se o próprio conceito de quartetos e tercetos for redimensionado, tal como na estrofação palindrômica a que me referi em 2.68/69.9. [2.75] Concordo que o estrambote não passe de "inestético penduricalho", mas Cruz Filho omite, pudicamente, o nome de Aretino para não ter de exemplificar com um soneto "imoral". Ao menos ilustra com Camões, mas aqui sano a lacuna graças à impecável (embora pecaminosa) tradução que José Paulo Pais empreendeu do famoso ciclo dos "Sonetos luxuriosos" de Aretino. [2.75.1] Pietro Aretino (1492-1556) tem, entre seus sonetos, dezesseis que se destacam pelo cunho fescenino, compostos em 1525 para os desenhos pornográficos de Giulio Romano. No Brasil, foram magistralmente recriados por José Paulo Pais, a exemplo deste que, ao esquema rimático petrarquiano (ABBA/ABBA CDC/DCD), acrescenta um estrambote em DEE, procedimento que não permaneceu em voga após o século XVI: [original de Aretino] Questo cazzo vogl'io più che un tesoro! Questo è quel ben, che mi può far felice! Or questo sì che è ben da Imperatrice! Questa gemma val più d'un pozzo d'oro! Ohimè, mio cazzo, aiutami ch'io moro. Questo si trova il fondo alla matrice; Insomma un cazzo piccolo disdice Se nella potta vuol serbar decoro. Padrona mia, voi dite ben il vero, Che chi piccolo ha il cazzo e 'n potta fotte Merta aver di fresc'acque un bel cristero. Chi poco n'ha in cul fotta il dì e la notte, Ma chi l'ha, com'io l'ho, spietato e fiero, Si sbizzarrischi sempre nelle potte. L'è ver, noi siamo ghiotte Del cazzo tanto e tanto ci par lieto Che lo torremmo al pari avanti e drieto. [tradução de José Paulo Pais] Este caralho é mais do que um tesouro! É o bem que pode me fazer feliz! Este sim é que é bem de Imperatriz! Vale esta gema mais que um poço de ouro! Acorde-me, caralho, que eu estouro! Vê se encontras o fundo da matriz; Um caralho pequeno se desdiz Quando na cona quer guardar decoro. Estás dizendo a verdade, ó mulher; Quem caralho pequeno em cona enfia Merece, de água fresca, um bom clister. Esses devem foder cu, noite e dia. Já quem o tem, como eu, brutal, feroz, Somente na boceta se sacia. — Sim, é verdade, mas O caralho nos dá tanta alegria Que nossa gula o quer na frente e atrás. [2.76] Quanto ao estrambote francês que Cruz Filho acha mais interessante, prefiro nem comentar. Muito puxa-saquismo francófilo para o meu gosto. [2.77] Concordo que o soneto composto unicamente de versos duros, bem como o emprego de outros artifícios engenhosos, pode representar uma perigosa tentação do engenho pelo engenho e da arte pela arte, transformando o poema num mero jogo de palavras. Por outro lado, quando o poeta consegue aliar o lúdico ao lúcido e brinca com as palavras sem perder de vista a comunicabilidade do conteúdo, temos, desde o barroco até o concretismo, magníficos casos de ourivesaria verbal. Eu próprio não me fiz de rogado ao pilhar-me envolvido com tais filigranas do sonetismo. O resultado dessas aventuras barrocas pode ser exemplificado nestes casos. [2.77.1] Sobre efeitos fonéticos e suas implicações métricas, léxicas e semânticas, intimamente interrelacionadas, estes sonetos fazem a ponte entre o lúdico infantil e o lúcido intelectual: SONETO SOLETRADO [Glauco Mattoso] Decifre um abecê no abracadabra. Deduza o delta errado do programa. A fórmula se grafa com o gama. Viado tem hiato na palavra. John Kennedy deu bode; o Lampe é cabra. Mamãe amamentando, o nenê mama. Do opíparo quitute o aroma chama. O russo arreda o rico e a roça lavra. Um esse se assemelha ao saxofone. O tu, segundo o verbo, é uma pessoa. Vê dábliu é rei plebeu, sem quem destrone. O xis parece a cruz, que se abençoa. Tem cara de forquilha o pissilone. O zê ziguezagueia, zurze e zoa. SONETO TATIBITATE [Glauco Mattoso] A aranha arranha a aranha, e o rato rói a roupa rococó do rei de Roma. Três tristes tigres trepam em Sodoma. A plebe aplaude o pleito do playboy. Mamão maduro mancha a mão que o mói. A dama do masoca o soca e doma. Glaucomatoso é o globo com glaucoma. O dedo do detento é duro e dói. Bilu, tetéia, pinto, pingulim. Escubidu, Banzé, Pluto, Capeto, Esnupe, Rintintim, Milu, Tintim. Só sinto sono se me sai soneto. Pirlimpimpim pra mim é pó marfim, pois o peito do pé do Pedro é preto. SONETO PARONOMASTIGADO [Glauco Mattoso, dedicado a Augusto de Campos] A tal língua do P, quando a interpreto, me soa algo que diz: "língua no pé". Lobato acha que nestes termos é "limpinguapá nopo pepé" correto. Qualquer que seja a gíria ou dialeto, ninguém o termo tem para "chulé". "Shoeless" até tentaram ver se fé ganhava como um étimo indireto. Inútil: no cigano está o suposto vocábulo do cheiro que mais sinto, mas falta um som que lhe defina o gosto. No P talvez se encontre o mais distinto: "chupulepepempentopo", composto chupado e repelente como um pinto. [2.77.2] Sobre as paradoxais proximidades entre sonetismo e concretismo, além do que vai registrado no tópico 5.49.4, estes casos são exemplares: SONETO SOBRE A FALTA DA MALFADADA [Glauco Mattoso] Tormento indescritível é compor soneto sem emprego do primeiro dos signos do Ocidente, o tempo inteiro fugindo se ele surge, esse opressor! O cérebro se espreme, sente dor... No esforço, o desespero eu, tenso, beiro: nem quero ser do molde prisioneiro, nem posso me eximir desse fervor. O mínimo dos dedos, o que escreve no ponto extremo e esquerdo em que eu digito, se omite do serviço, entrou em greve... Concordo, é bem difícil ser bonito um simples verso, sem o limpo, leve som dentro, porém nisso é que eu me excito... SONETO SOBRE OUTRA DUPLA IDENTIDADE [Glauco Mattoso] Bem vão: têm chão. Sem mão, quem são? Nu, tu és, pois, dois pés! [2.77.3] Sobre um suposto "eixo" ótico na espacialização dum poema concreto, o soneto abaixo satiriza este e outros aspectos da poesia visual: SONETO EXPERIMENTAL [Glauco Mattoso] Vejamos: se o concreto segue um eixo poético que desce a vertical e espaça cada sílaba, que tal se um filho original parir me deixo? Talvez eu faça assim: no centro enfeixo as sílabas em I; na marginal esquerda, em A; na proporção igual, em U na destra, à parte algum desleixo. Beleza! Até que o quadro fica ao gosto do artista visual mais exigente e pode numa mostra ser exposto! Que título darei? Visto de frente, parece o que pôs diante do meu rosto o médico que mede minha lente... [2.77.4] Sobre o eixo vertical formado a partir da tônica heróica na sexta sílaba, este soneto satiriza a rigidez levando ao extremo a fixação fonética da sílaba, "bloqueada" na "tecla" "té": SONETO MONÓTONO ou SONETO EM TÉ MAIOR [Glauco Mattoso] Remédio contra o tédio não existe. No máximo uma tela de cinema, a sopa, um banho tépido, um enema, o jogo, um livro tétrico, um bom chiste. Bater na mesma tecla é muito triste. Ninguém agüenta, eterno, um só sistema, mas homem que seu término não tema é raro nesta terra quem aviste. Que fiz, como arquiteto dos meus dias, a fim de com estética ocupá-los, exceto obrar até pornografias? Virei felador técnico de falos. Fui pródigo em matéria de manias. Agora cuido, em tese, só dos calos. [2.79] Concordo que algumas experiências com novos esquemas de rima podem ser enriquecedoras, mas Cruz Filho não convence quando as aquilata com dois pesos e duas medidas, ora saudando um caso como "bem-vindo", ora tachando outro de "abstruso". Ou bem as "heresias" são salutares, ou mal calham em qualquer caso. Pessoalmente sou simpático aos hereges. [2.80] Concordo que também as incursões no verso bárbaro são uma estimulante transgressão, à qual os mais disciplinados parnasianos não se furtam, mas convém ressalvar que estamos falando de casos excepcionais, deliberadamente cometidos, e nunca de desavisada prolixidade métrica, como ocorre modernamente. Alhures teorizei que, acima de doze sílabas (dodeca), os versos são chamados "bárbaros" (trideca, tetradeca, etc.). Como o número catorze empata a quantidade de sílabas com a de versos, perfazendo a quadratura 14/14, não se usa sonetar em versos maiores que tal polissílabo, mas nada impede que algum poeta experimente algo hipertrófico a esse ponto. Resta ver se a qualidade justifica o recorde. [2.80.1] Exemplo de treze sílabas (tridecassílabo): SONETO BARBARIZADO [Glauco Mattoso] Já se disse: sete é conta de mentira e lenda. Também dizem que de azar o treze é cifra certa. Isso explica a redondilha como porta aberta no cantar dos repentistas, na feroz contenda, à bazófia descarada, onde é melhor a emenda que o soneto decassílabo, no qual se enxerta entre termos eruditos a falácia esperta, lei de todo bom poeta que seu peixe venda. Outrossim, também se explica por que nunca é visto um soneto alexandrino, mas de pé quebrado: este, a cuja tentação do treze não resisto. Vou chamá-lo "aleijadinho", pois, em vez de errado, tem caráter de obra-prima, pelo menos nisto: completar catorze versos sem ficar quadrado! [2.80.2] Exemplo de catorze sílabas (tetradecassílabo): NUTRISCO ET EXTINGUO (divisa de Francisco I) [Martins Fontes] A Salamandra, quando a fogueira ferve e flameja, Dentro da noite, negra e silente, no quiriri, Valsa nas chamas, brinca e delira, cor de cereja, Cor de ametista, cor de topázio, cor de rubi! E o Fogo exalta-se e, endoidecido pela peleja, Um potro imita, parece um galo, lembra o saci! Lambe-a, saltando, dá gargalhadas, e a aperta e beija! E amante jovem, demônio alegre, canta e sorri! E a Salamandra, tendo mil cores, toda amarela, Ou verde toda, rola nos braços do seu senhor, E tresvaria na ronda ardente da tarantela! E ao se estreitarem, com tanta freima, tanto furor, Ele, demonstra sentir-se amado, mas só por ela, E ela que vive somente dele, tal qual o Amor! [2.81] Concordo que o universo temático do soneto extrapola sua primitiva função lírica, mas, uma vez admitida a pluralidade de sua aplicação, não mais caberá qualquer restrição de caráter censório, como a tentativa esboçada por Cruz Filho quando qualifica alguns empregos do soneto como mais "aberrativos" que outros. [2.82] Concordo que o exemplo escolhido por Cruz Filho seja um perfeito caso de soneto descritivo, mas faço questão de ilustrar essa modalidade com um caso menos ameno, ainda que de autor parnasiano: A BARATA [Gustavo Teixeira] Nas fendas e desvãos, em lar humilde ou nobre, Fora da luz, se esconde a tímida barata. Se sai do esconderijo e humano olhar descobre, Prestes foge, e o pavor mais a acelera e achata. Raro espalma num vôo as asas cor de cobre. A farejar com a tromba, em tudo põe a pata. Ladra voraz, não poupa o negro pão do pobre, Tisna as cartas de amor, mancha o cristal e a prata. Múmia escamosa, o odor que exala causa nojo. Cauta, vive a espreitar do fundo do seu fojo A lesma que rasteja e o pássaro que voa. Mas raia uma hora azul também em sua vida: De branco, um dia, acorda! E é bela, assim vestida, Como a noiva que o amor ao pé do altar coroa... [2.83] De novo Cruz Filho nos vem com essa mania de achar os franceses insuperáveis. Mas eu prefiro recorrer às nossas próprias letras para escolher um típico caso de soneto filosófico: SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO [Augusto dos Anjos] Para desvirginar o labirinto Do velho e metafísico Mistério, Comi meus olhos crus no cemitério, Numa antropofagia de faminto! A digestão desse manjar funéreo Tornado sangue transformou-me o instinto De humanas impressões visuais que eu sinto, Nas divinas visões do íncola etéreo! Vestido de hidrogênio incandescente, Vaguei um século, improficuamente, Pelas monotonias siderais... Subi talvez às máximas alturas, Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras, É necessário que inda eu suba mais! [2.84] Concordo que o soneto político pode facilmente ser subutilizado para fins panfletários, mas há casos notáveis em nossa literatura, como este: ESCRAVOCRATAS [Cruz e Sousa] Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio manhosos, agachados — bem como um crocodilo, viveis sensualmente à luz dum privilégio na pose bestial dum cágado tranqüilo. Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas ardentes do olhar — formando uma vergasta dos raios mil do sol, das iras dos poetas, e vibro-vos à espinha — enquanto o grande basta O basta gigantesco, imenso, extraordinário — da branca consciência — o rútilo sacrário no tímpano do ouvido — audaz me não soar. Eu quero em rude verso altivo adamastórico, vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico, castrar-vos como um touro — ouvindo-vos urrar! [2.88] Concordo que o soneto humorístico tem campo bem mais amplo que o do epigrama monostrófico em formato de trova, glosa ou "limerick", já que explora a comicidade com maior espaço de manobra, no qual o poeta pode contar uma anedota servindo-se de todos os ingredientes necessários e preparatórios à surpresa do desfecho, tal como no exemplo que Cruz Filho foi buscar em Bastos Tigre, parceiro à altura de Emílio de Meneses no uso hilário da poesia. Só não concordo que o soneto humorístico, particularmente em suas vertentes satírica e paródica, seja subestimado e tratado como obra "menor". Nesse sentido de resgatar a tradição jocosa na poesia vernácula, louve-se a preciosa antologia organizada por Idel Becker, "Humor e humorismo" (São Paulo: Brasiliense, 1961), que inclui paródias de poemas famosos. [2.91/92] Concordo que Gregório seja lembrado sempre que se alude à poesia satírica, mas convém insistir no aviso de que o Boca do Inferno merece lugar entre os poetas maiores justamente por sua verve implacável e impagável, e não como mero representante duma fase histórica ou duma faceta histriônica. O mesmo vale para outros nomes citáveis no terreno da risonha crítica de costumes, lembrados ou não por Cruz Filho. Não menos digna de consideração é a vertente que une a veia cômica à cena erótica, resultando na modalidade dita "fescenina", que obviamente Cruz Filho nem se permite lobrigar, exceto quando atribui a "grosseria erótica" ao comportamento "lunático" dos psicopatas. [2.96/98] Concordo que um suposto desequilíbrio mental seja excelente pretexto aos desvarios poéticos e às licenças mais licenciosas que as conveniências "civilizadas", mas reputo mais interessante exemplificar o desvario com casos como o de Zé Limeira, o Poeta do Absurdo, a quem se atribui um pendor para o nonsense que, segundo alguns pesquisadores, ensejaria inclusive certas liberdades à libertinagem. Apócrifo ou não, vale ilustrar este parágrafo com um caso de Limeira. [2.96/98.1] O lendário repentista paraibano utilizava, como de praxe na tradição oral e na literatura de cordel, a redondilha maior em que são compostas as décimas para glosar motes correntes. O insólito nonsense de Limeira ensejou ao conterrâneo Braulio Tavares a idéia de adaptar a escalafobética comicidade do "limerick" inglês ao clima brasileiro, donde o trocadilho "limeirique" criado por Braulio para o tipo de epigrama cujo molde em quintilha também pratiquei. Menos conhecida, porém, é a habilidade de Limeira no decassílabo, bem como sua faceta sonetística, comprovada por vários pesquisadores que lhe recolheram amostras do gênero. Tratando-se de cultura popular, é natural que de alguns sonetos houvesse variantes, tanto quanto nomes de terceiros (como outro paraibano, chamado Stilon Wanzek) disputando com Limeira a autoria deste ou daquele poema. Prefiro seguir a política de atribuir a César o que já é creditado a César. Vejamos como o estapafúrdio estilo limeiriano é nitidamente reconhecível nestes exemplos: MULHER ADÚLTERA [Zé Limeira] Cinco touros brincavam no quintal; Dez galinhas brincavam no terreiro; Três navios no Rio de Janeiro Navegavam pensando em Portugal. Recordando a viagem de Cabral, De Colombo e de um tal de Omar Kaiã, Um cachorro às três horas da manhã Trafegava do Rio à capital. Fidel Castro, o maior mandão de Havana, Zangando-se, agarrou uma cigana E mandou que a botassem na prisão! E Getúlio dizia a Salazar: Nós agora podemos processar Virgulino Ferreira Lampião. [2.96/98.2] O soneto acima tem noutras fontes a seguinte variante: OS TRÊS PODERES [Zé Limeira] Quatro vacas brincavam no quintal, Cinco burros dançavam no terreiro. Dez navios no Rio de Janeiro Navegavam pensando em Portugal... Recordando a viagem de Cabral, De Lumumba, Kruchove e Mubutu, Iracema, banhando-se no Ipu, Não pensava morrer de morte tal. Lá nas margens do velho Rio Doce, Um macaco tarado deu um coice E Getúlio atirou no coração. E Kruchove dizia a Salazar: Nós agora podemos processar Virgulino Ferreira, Lampião. [3.8] Concordo que todo tradutor, na prosa como na poesia, priorize a fidelidade e só a sacrifique quando, no nosso caso, a integridade formal dum soneto (estrófica, métrica, rítmica ou rimática) estiver ameaçada. Mas "máxima fidelidade" jamais poderá ser "exigência", muito menos para a poesia, na qual o sentido figurado, de um lado, e a estrutura plástica, de outro, alargam as distâncias léxicas, semânticas e sintáticas entre os idiomas. [3.11] Tudo aquilo que Cruz Filho chama de "deturpações", "fugas aos originais" e "interpretações pouco felizes" não passa de idiossincrasia, uma vez que a própria intradutibilidade impede que um soneto vertido pareça espelho do original. Que seria da adaptação que Monteiro Lobato fez de Lewis Carroll se ele não escapasse dos anglicismos no momento de repensar os jogos verbais? Uma versão ao pé da letra de "Alice no País das Maravilhas" ou de "Alice no País do Espelho" estaria duplamente condenada, pois nem seria especular, nem estetacular. Em termos poéticos, a faceta mais transparente dessa independência intelectual do tradutor está nas letras da música popular, que mais nitidamente evidenciam a liberdade lírica quando são vertidas em tom de paródia, como nas canções "In the Mood", de Joe Garland e Andy Razaf (que na versão de Aloísio de Oliveira, interpretada por Elza Soares, virou "Edmundo") ou "Chattanooga Choo Choo", de Warren e Gordon, na versão do mesmo Aloísio, interpretada por Carmen Miranda. [3.13.3] Os "defeitos" que Cruz Filho viu na tradução de Raimundo Correia ("omissões", "translações forçadas" e "fugas ao original") são discutíveis. E toda a discussão em torno da "fidelidade" ou da "transcriação", da "preservação do sentido" ou da "integridade formal" resulta em controvérsia estéril, com enorme desperdício de munição intelectual, quando a reduzimos a um singelo e elementar conceito, que se define em duas palavras: mote e glosa. Basta esta analogia, equiparando o original ao mote e a tradução à glosa, e toda essa polêmica se esvazia. De minha parte, se o sentido original se mantiver preservado, tanto melhor. Caso contrário, nada obsta que uma "interpretação feliz" o seja exatamente por "fugir" à idéia original. Portanto, opino que Correia está certíssimo, até porque o trabalho do tradutor não é mero rodapé, mera legenda, nem anotação à margem: é um poema autônomo, é um novo soneto, e seu criador (ou recriador) tem todo o direito de assiná-lo. Que o digam José Paulo Pais e Augusto de Campos, para não falar em causa própria. [3.19.1] Já que Cruz Filho dignou-se a lembrar Baudelaire, transcrevo aqui uma de minhas traduções favoritas, a de Ivan Junqueira para o soneto "Les Aveugles". Charles Pierre Baudelaire (1821-1867) foi anticonvencional em tudo: processado por obscenidade, usuário e apologista da droga, satanista imitado mundo afora (inclusive no Brasil, por Teófilo Dias), transitou entre temáticas violentamente românticas e formas esmeradamente parnasianas, no que abre caminho aos meandros simbolistas. LES AVEUGLES [original de Baudelaire] Contemple-les, mon âme!; ils sont vraiment affreux! Pareils aux mannequins; vaguement ridicules; Terribles, singuliers comme les somnambules; Dardant on ne sait où leurs globes ténébreux. Leurs yeux, d'où la divine étincelle est partie, Comme s'ils regardaient au loin, restent levés Au ciel; on ne les voit jamais vers les pavés Pencher rêveusement leur tête appesantie. Ils traversent ainsi le noir illimité, Ce frère du silence éternel. Ô cité! Pendant qu'autour de nous tu chantes, ris et beugles, Éprise du plaisir jusqu'à l'atrocité, Vois! Je me traîne aussi! Mais, plus qu'eux hébété, Je dis: Que cherchent-ils au Ciel, tous ces aveugles? OS CEGOS [tradução de Ivan Junqueira] Contempla-os, ó minha alma; eles são pavorosos! Iguais aos manequins, grotescos, singulares, Sonâmbulos talvez, terríveis se os olhares, Lançando não sei onde os globos tenebrosos! Suas pupilas, onde ardeu a luz divina, Como se olhassem à distância, estão fincadas No céu; e não se vê jamais sobre as calçadas Se um deles a sonhar sua cabeça inclina. Cruzam assim o eterno escuro que os invade, Esse irmão do silêncio infinito. Ó cidade! Enquanto em torno cantas, ris e uivas ao léu, Nos braços de um prazer que tangencia o espasmo, Olha! também me arrasto! e, mais do que eles pasmo, Digo: que buscam estes cegos ver no Céu? [3.24.1] Já que Cruz Filho dignou-se a pedir licença aos franceses para introduzir ao menos um italiano, permito-me substituir Giosué Carducci por Giuseppe Gioachino Belli (1791-1863), considerado caso patológico: autor compulsivo de milhares de sonetos (formalmente rigorosos porém "desqualificados" por causa do vulgar dialeto das ruas romanas), dedicou-se às temáticas fesceninas e morreu arrependido por ter sido porta-voz do demônio. Em português teve, entre seus tradutores, Augusto de Campos e José Paulo Pais, como nestes exemplos: L'INCISCIATURE [original de Belli] Che sscenufreggi, ssciupi, strusci e ssciatti! Che ssonajjera d'inzeppate a ssecco! Iggni bbotta, peccrisse, annava ar lecco: Soffiamio tutt'e ddua come ddu' gatti. L'occhi invetriti peggio de li matti: Sempre pelo co ppelo, e bbecc'a bbecco. Viè e nun vieni, fà e ppijja, ecco e nnun ecco; E ddajje, e spiggne, e incarca, e striggni e sbatti Un po' ppiú cche ddurava stamio grassi! Ché ddoppo avé ffinito er giucarello Restassimo intontiti com'e ssassi. È un gran gusto er fregà! ma ppe ggoddello Più a cciccio, ce voría che ddiventassi Giartruda tutta sorca, io tutt'uscello. A EMBOCADURA [tradução de José Paulo Pais] Que esfregações, gemidos, desbaratos! Que arremessos a seco, numa enfiada! Todos no alvo, por Cristo, desde a entrada: Ficam bufando os dois como dois gatos. Olhos vidrados, pior que de insensatos: Pêlo com pêlo, boca a boca atada, E enfia e empurra e bate sem parada; Vai e vem, põe e tira num só ato. Descalabro se um pouco mais durasse! Chegada a brincadeira ao seu final, Ficamos feito pedras, inconscientes. É muito bom foder! Mas o ideal Seria nos tornarmos realmente Gertrudes toda cona e eu todo pau. ER PADRE DE LI SANTI [original de Belli] Er cazzo se pò di radica, uscello, Cischio, nerbo, tortore, pennarolo, Pezzo de carne, manico, scetrolo, Asperge, cucuzzola e stennarello. Cavichio, canaletto e criavistello, Er gionco, er guercio, er mio, nerchia, pirolo, Attacapanni, moccolo, brugnolo, Inguilla, torciorechio e manganello. Zeppa e batocco, cavola e turaccio, E maritozzo e canella e pipino, E salame, e sarciccia, e sanguinaccio. Poi scaffa, canochiale, arma, bambino: Poi torzo, crescimano, catenaccio, Mannola e mi'-fratello-piccinino. O PAI DOS SANTOS [tradução de Augusto de Campos] O membro pode ser careca e anão Estaca espada espeto espiga falo Pavio bordão bengala pinto e galo Palmito vara vassoura pilão Mangalho manivela ou aguilhão Ferro fumo porrete mastro malho Lança-perfume fósforo caralho Espingarda cacete obus canhão Piroca pênis pau e pica e piça Priapo prego porra pito e pino Pirolito pistola pão rabiça Mandioca nabo pimentão pepino Banana macarrão peru lingüiça Maçaranduba e mano pequenino [3.25.1/2] O raro termo "sarta", no original de Santos Chocano, literalmente traduzido por Faustino Nascimento, obriga-me a evocar a tradução que fiz, dentre os sonetos do mexicano Salvador Novo, daquele alusivo à prostituição masculina: [original de Salvador Novo] Leoncio ayer, Carlos hoy — ¿a quién mañana dedicará mi amor su pensamiento? ¿Quién con su ausencia me dará el tormento de esta esperanza dulce, pero vana? Salvaje en uno, me embriagó la sana y cálida caricia de su aliento. Amo en el otro, príncipe de cuento, la mirada magnífica y lejana. Aceite de mi lámpara, que ensartas en rosarios de tiempo duradero ilusión y fragancia de sus cartas. No te daré mi amor, casual viajero, pero mi lecho es amplio; y cuando partas, te llevarás un poco de dinero. SONETO REMUNERADO [recriação de Glauco Mattoso] Ontem Leo, hoje Carlos... E amanhã? A quem dedicarei meu pensamento? De quem terei saudade, enquanto esquento o leito, nesta espera eterna e vã? Estopa neste, noutro seda e lã: variam as carícias e o momento. Um, príncipe; outro, bruto e truculento. Um, sátiro; outro, efebo; outro, titã. Azeite em minha lâmpada, que ensartas mais contas no rosário, mais um cheiro de sonho a perfumar futuras cartas! Amor não te darei, que és passageiro, mas cama e mesa. E mais: tão logo partas, terás no bolso um pouco de dinheiro. [3.27.1/2] Concordo que Cruz Filho inclua algum de sua própria lavra entre os exemplos de sonetos traduzidos, pois também o faço, como qualquer antologista apaixonado pela matéria que colige. Mas, se há uma coisa que abomino, é o puxa-saquismo poético daqueles cortesãos interessados em bajular autoridades (geralmente monarcas e membros da família real ou imperial) a fim de obter favores ou de retribuí-los. E Cruz Filho me vem traduzir logo um soneto dedicado a um rei espanhol? Ora, vá puxar ao menos o saco de Pedro II, que aliás era monumental, a julgar pelas telas dos pintores apadrinhados pelo imperador... [3.30.1] Considerando que as traduções poéticas sejam análogas à glosa, e considerando que as paródias também o são, aproveito o parágrafo dedicado ao soneto de Machado para resgatar o que dele fizeram outros poetas locais, inclusive pela vertente macarrônica, que não deixa de ser uma versão dialetal e, portanto, uma transcriação idiomática. CÍRCULO VICIOSO [Machado de Assis] Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume: "Quem me dera que eu fosse aquela loura estrela, Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!" Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme: "Pudesse eu copiar-te o transparente lume, Que, da grega coluna à gótica janela, Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!" Mas a lua, fitando o sol com azedume: "Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela Claridade imortal, que toda a luz resume!" Mas o sol, inclinando a rútila capela: "Pesa-me esta brilhante auréola de nume... Enfara-me esta azul e desmedida umbela... Por que não nasci eu um simples vaga-lume?" CIRCUITO BICIADO [Furnandes Albaralhão] Guiando um vonde, g'mia inquieto maturnâiro: — "Ah! Si eu fosse u fiscale aqui dessa miléca... De prazeire, nain sai, tumaba uma quiméca..." Mas u fiscale ulhando u vurro du dinhâiro Du chefe du iscritório: — "Imbejo-te, parçâiro, Si eu fosse como tu, câ farra! Câ panquéca! Cumia tanto, qui rivintaba a cuéca!" Mas u chefe a fitaire a pança de bendâiro Du supirintendente: — "Eu não ser mais maióre, Não têre u qui tu tains! Não têre u teu dinhâiro!..." I u supirintendente a limpare o suóre: — "Iscrêbo como um vurro! É a noute! É u dia intâiro! Entra sóle, sai sóle! Não há coisa pióre! Ah! Caim déra qui eu fosse um simples maturnâiro!" CÍRGOLO VIZIOSO [Juó Bananére] O Hermeze un di aparlô: — Se io era aquilla rosa che está pindurada Nu gabello da mia anamurada, Uh! che bô! A rosa tambê scramô, Xuráno come un bizerigno: — Se io era aquillo gaxorigno!... Uh! che brutta cavaçó! I o gaxorigno pigô di dizê: — Se io fossi o Piedadô, Era molto maise bô! Ma o Garonello dice tambê Triste come un giaburu: — Che bô si io fosse o Dudu! [3.31.1] Também este soneto de Raimundo Correia foi objeto de inúmeras paródias, algumas das quais transcrevo aqui. AS POMBAS [Raimundo Correia] Vai-se a primeira pomba despertada... Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas De pombas vão-se dos pombais, apenas Raia sangüínea e fresca a madrugada... E à tarde, quando a rígida nortada Sopra, aos pombais de novo elas, serenas, Ruflando as asas, sacudindo as penas, Voltam todas em bando e em revoada... Também dos corações onde abotoam, Os sonhos, um por um, céleres voam, Como voam as pombas dos pombais; No azul da adolescência as asas soltam, Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam, E eles aos corações não voltam mais... OS VOTOS [Ângelo Bitu (pseudônimo, entre outros, de Bilac)] Vai-se a primeira votação passada... Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas De votos vão-se da Assembléia, apenas A sessão começou da bordoada! Sopra sobre Ele a rígida nortada... Que saudades das épocas serenas Em que Ele e os outros, aparando as penas, Tinham apurações de cambulhada! O seu bom-senso todos apregoam... Afastando-se d'Ele, os votos voam, Como voam as pombas dos pombais... As esperanças o seu vôo soltam... E Ele vê que aos pombais as pombas voltam, Mas esses votos não lhe voltam mais! AS POMBIGNA [Juó Bananére, P'ru aviadore chi pigó o tombo] Vai a primiéra pombigna dispertada, I maise otra vai disposa da primiéra; I otra maise, i maise otra, i assi dista maniera Vai s'imbora tutta pombarada. Pássano fóra o dí i a tardi intêra, Catáno as furmiguigna ingoppa a strada; Ma quano vê a notte indisgraziada, Vorta tuttos in bandos, in filêra. Assi tambê o Cícero avua, Sobi nu spaço, molto alê da lua, Fica piqueno uguali d'un sabiá. Ma tuttos dia avua, allegre, os pombo!... Inveis chi o Muque, desdi aquílio tombo, Nunga maise quis sabê di avuá. A REVOADA [Lisindo Coppoli] O primeiro ministro lá vai indo; Outro o segue, outro mais, enfim o bando Inteiro solta as asas azulando, Antes que a demissão os vá impelindo. Também as pombas do soneto lindo, Na rósea madrugada, vão deixando O ninho amigo, ao qual irão voltando, Ansiosas, quando a tarde for caindo. Mas aqui não há pombas nem pombais: Há ministros que partem em surdina, Certos de não voltarem nunca mais. Deixam o ministério sem alarde; E o povo que lhes deve a triste sina, Olhando o vôo, suspira: — Já vão tarde! AS MINHAS NOTAS [Zé Fidélis] Bai-se a primãira pomba dispertada, I, após iéla, oitra, mais oitra i oitra mais! Aimfim, uma purçãon bai indo aim buarada, Nunca bi uma squadrilha aim prupurções tais! Lá bão iélas! Pra longe, pra bãim longe até! Talbêz quêir na farra, num pumbal distante, Vrincare, guzare a bida qui bãim curta ié! I pra bultare nãon prucisam di sistãite... Tambãim, como as tais pombas du Reimundo, Sai u dinhãiro buando du meu volso fundo. Cada notinha linda, cada p'lega nóba! Mas as pombas boltam logo qu'anoitece, Que ficare nu sireno não lhis ap'tece E as minhas notas, essas... boltam uma óba!... [3.32.1] Outro soneto de Correia bastante parodiado, como atestam os exemplos abaixo. MAL SECRETO [Raimundo Correia] Se a cólera que espuma, a dor que mora N'alma, e destrói cada ilusão que nasce, Tudo o que punge, tudo o que devora O coração, no rosto se estampasse; Se se pudesse, o espírito que chora, Ver através da máscara da face, Quanta gente, talvez, que inveja agora Nos causa, então piedade nos causasse! Quanta gente que ri, talvez, consigo Guarda um atroz, recôndito inimigo, Como invisível chaga cancerosa! Quanta gente que ri, talvez existe, Cuja ventura única consiste Em parecer aos outros venturosa! MAL DISCRETO [Bastos Tigre] Se a prontidão, a pinda, a quebradeira E os vários males desta mesma classe, Tudo o que punge a tísica algibeira, Sobre o rosto do "pronto" se estampasse; Se se pudesse a crise financeira Ler "através da máscara da face", Quanta gente, talvez, que da primeira Fila, então, para a última passasse... Quanta gente nós vemos, quanta gente, Cuja gravata, cautelosamente, Uma camisa enxovalhada esconde!... Quanto moço elegante e perfumado Que anda, imponente, de automóvel... fiado, Porque lhe faltam níqueis para o bonde! MAL SICRETO [Furnandes Albaralhão] S'a cólera que põe danada a gente, Distrói a paz da bida disijada, Tudo o que nos vilisca intiriormente Suvisse à nossa cara, qu'istupada!... Si si pudesse, a ialma padicente, Bêre pur trás de muita guergalhada, Canta gente a se rire vestamente, Que era muito milhóre estar calada! Canta gente só ri pra disfarçare Um turco à porta que lhe bem cuvrare A quemisa, a ciloira, a maia, u cinto... Cantos há nesse mundo a três por dois, Que tendo à janta só cumido arroz, Arrotam p'ru, laitão e binho tinto! SUNETTO FUTURÍSSIMO [Juó Bananére] Si a gólere lhe spuma come vigno Tenia gaido inzima da gabeza du Hermeze Fonseca Uguali come a garnesega Na boca do mio gaxorigno; Si també na gabeza du Pinhêro Tenia gaido un furacó... Evvivo o Piedadó Chi non tê dinhêro! Quanta gente che ri, tarveiz ti scriva Non iva Dizê p'ro Hermeze come o Lencaro; Xirósa griatura! Bunita gavargatura!! O gapino stá molto caro. [3.36.1] O mais célebre soneto de Bilac não poderia escapar aos parodistas, de cujas troças vão abaixo alguns exemplos. OUVIR ESTRELAS [Olavo Bilac] "Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto... E conversamos toda a noite, enquanto A Via Láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: "Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?" E eu vos direi: "Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas." OUVIR ESTRELAS [Bastos Tigre] Ora, direis, ouvir estrelas! Vejo Que estás beirando a maluquice extrema. No entanto o certo é que não perco o ensejo De ouvi-las nos programas de cinema. Não perco fita; e dir-vos-ei sem pejo Que mais eu gozo se escabroso é o tema. Uma boca de estrela dando beijo É, meu amigo, assunto pra um poema. Direis agora: — Mas enfim, meu caro, As estrelas que dizem? que sentido Têm suas frases de sabor tão raro? — Amigo, aprende inglês para entendê-las, Pois só sabendo inglês se tem ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas. UVI STRELLA [Juó Bananére] Che scuitá strella, né meia strella! Vucê stá maluco! e io ti diró intanto, Chi p'ra iscuitalas moltas veiz livanto, I vô dá una spiada na gianella. I passo as notte acunversáno co'ella, Inguanto che as otra lá d'un canto Stó mi spiano. I o sol come un briglianto Nasce. Oglio p'ru céu: — Cadê strella?! Direis intó: — Ó migno inlustre amigo! O chi é chi as strellas ti dizia Quano illas viéro acunversá contigo? E io ti diró: — Studi p'ra intendela, Pois só chi giá studô Astrolomia, É capaiz de intendê istas strella. OUVIR O MESTRE [Eno Teodoro Wanke] "Ora (direis) ouvir o mestre... Certo perdeste o senso!" — Eu vos direi, no entanto, que, para ouvi-lo, muita vez desperto no meio da aula, pálido de espanto! E como fala o homenzinho, enquanto meu relógio não anda... É que, decerto, parou! Sacudo. Escuto. Não... E, em pranto, comprovo quanto o início ainda está perto. Direis agora: "Tresloucado amigo! E esse teu professor... Oh, que sentido tem o que diz?..." Mas eu nem ligo, e vos direi: "Pois queira ser doutor! — Só quem tal quer, consegue ter o ouvido capaz de suportar um professor!" [3.45] O paciente exercício poliglótico de Pétion de Vilar, costurando um idioma diferente para cada verso do soneto, guarda, por seu turno, semelhança com outro procedimento de colagem e releitura, paralelo à recriação bilíngüe, que vem a ser o "centão". Nesse recurso de "colcha de retalhos" que é a composição centônica, cada verso é tirado dum poema alheio, como fez Augusto de Campos no exemplo abaixo, que mistura versos de autores clássicos a versos de sambas tradicionais, num dos mais perfeitos centões já compostos no decassílabo lusófono: SONETERAPIA 2 [Augusto de Campos] tamarindo da minha desventura não me escutes nostálgico a cantar me vi perdido numa selva escura que o vento vai levando pelo ar se tudo o mais renova isto é sem cura não me é dado beijando te acordar és a um tempo esplendor e sepultura porque nenhuma delas sabe amar somente o amor e em sua ausência o amor guiado por um cego e uma criança deixa cantar de novo o trovador pois bem chegou minha hora de vingança vem vem vem vem vem sentir o calor que a brisa do brasil beija e balança [3.45.1] Cabe ressalvar que o centão não é uma inovação vanguardista na trajetória do soneto: já muito utilizado no barroco, como parte dos jogos verbais a que os poetas se entregavam, voltou a ser empregado na esteira da fértil onda sonetística parnasiana, quando se reacendeu a tentação de "pesquisar" as recorrências rimáticas e estilísticas entre os poetas vernáculos. Um dos resultados mais curiosos é este soneto de Narciso Nery, composto por versos, respectivamente, de Raimundo Correia, Moreira de Vasconcelos, Paulo de Arruda, Alberto de Oliveira, Alexandre Fernandes, Fontoura Xavier, Venceslau de Queirós, Olavo Bilac, Hermeto Lima, Alphonsus de Guimaraens, Arnaldo Damasceno, Luís Delfino, Luís Guimarães e B. Lopes: Contemplativa e lânguida, à janela, Daí vê despertar a luz da aurora; Rescendem flores na amplidão sonora, Tudo palpita com a presença dela. Primavera que anima e revigora, Como em meio das belas a mais bela, Na alma o candor imáculo da estrela E o sol do amor que não entrava outrora. Olhos meigos e bons, serenamente São duas asas a ensaiar adejos De cores, de perfumes e de arpejos. E então, de dia, em rosa abre o seu riso, Esse raio auroral do Paraíso, Na boca em flor da carne pubescente. [4.12] Concordo que pouco importa se foi mesmo Sá de Miranda ou se foi Pedro de Alfarrobeira o introdutor do soneto em Portugal. Seja como for, Cruz Filho não tem o direito de se referir aos sonetos mirandianos como "triviais", "antipáticos", "defeituosos" e "inestéticos", apenas porque não tematizam uma musa, como convinha à poesia lírica, mas sim a natureza, filosoficamente descrita. Afinal, é o próprio Cruz Filho quem comemora o fato de ter o soneto parnasiano ampliado os horizontes temáticos e de ter-se tornado mais "descritivo". O exemplo dado por Cruz Filho vem a ser, coincidentemente, o mesmo que parafraseei - razão pela qual transcrevo o que teorizei alhures. [4.12.1] Francisco de Sá de Miranda (1495-1558) leva uma dupla fama que, na língua portuguesa, não tem paralelo: de um lado, precedeu o próprio Camões na "descoberta" do decassílabo, na inauguração do soneto e na introdução do classicismo em Portugal; de outro, foi considerado tão vernáculo, tão rigorosamente lusófono, que nenhum estrangeiro poderia entender sua poesia. Mesmo assim, foram, ironicamente, os franceses, italianos e alemães que aclamaram um dos sonetos mirandianos como o mais perfeito do mundo. Seria exagero dos admiradores? Intrigado com essa história, resolvi recriar o tal soneto, para ver se era, mesmo, tão hermético e lapidar. [4.12.2] Durante os anos em que esteve na Itália, Sá de Miranda pegou gosto pelo verso de Petrarca, aquele tipo de decassílabo heróico que Camões imortalizaria nos "Lusíadas". Fidelino de Figueiredo, na sua calhamaciça "História literária de Portugal", atesta: "O soneto de Sá de Miranda não é amoroso; tem como tema predominante o desengano da vida terrena, com seu ceticismo, que ensina a vacuidade de tudo, com o desconsolo de que, depois de uma ilusão desfeita, uma nova ilusão venha ludibriar o experimentado senso comum." Visto que, ao contrário de Camões, ele não foi protótipo do poeta lírico, concluo que seu soneto deve ser interpretado pelo lado friamente filosófico. Assim, transcrevo aquela polêmica obra-prima, seguida da minha leitura na mesma linha cética "ma non troppo" ou "pero no mucho" do mestre. Por falar em mestre, reparem só como ele já lançava mão, sem a menor cerimônia, da licença poética ao grafar, por força da rima, "mudaves" em vez de "mudáveis": [original de Sá de Miranda] O sol é grande; caem co'a calma as aves, Do tempo em tal sazão que sói ser fria. Esta água que cai do alto, acordar-me-ia Do sono não, mas de cuidados graves. Ó coisas todas vãs, todas mudaves! Qual é o coração que em vós confia? Passando um dia vai, passa outro dia, Incertos todos, mais que ao vento as naves. Eu vi já por aqui sombras e flores, Vi águas e vi fontes, vi verdura(s), As aves vi cantar todas d'amores. Mudo e seco é já tudo, e de mistura Também fazendo-me eu fui, de outras cores: Se tudo o mais renova, isto é sem cura. SONETO SADEMIRANDADO [Glauco Mattoso] É sábia a Natureza! A chuva passa e tudo se renova: a fauna, a flora... Parece que nasceram logo agora que o sol nos deu o arzão da sua graça... Também eu redescubro algo que faça valer a pena a vida, muito embora mais fraca seja a fé que revigora, menor seja a esperança que renasça... Depois do que passei e tenho visto, me sobra cada vez menos motivo plausível de que penso e de que existo. Se for indubitável que estou vivo, melhor é o "sim" que o "não" e, certo disto, de nada mais me omito nem me privo. [4.15/20] Concordo com as críticas observações de Cruz Filho quanto aos mais arcaicos sonetos lusitanos, mas é preciso ressalvar que as características hoje indicadoras de "dureza da metrificação", de "rimas forçadas" ou de "tibieza na construção" eram, na época, fenômenos naturais ao idioma e à poesia. Nenhuma rima é "forçada" em si mesma, na sua forma ou sonoridade, mas sim quando o vocábulo por ela terminado foi mal empregado no contexto. Afinal, nem todas as rimas são consoantes, nem ricas, e sua escolha cabe unicamente ao poeta, não à crítica. Ademais, nem toda metrificação é defeituosa quando atentamos para as particularidades da pronúncia corrente naquele tempo ou espaço. Basta notar que "com as" se contrai em "co'as" no soneto mirandiano, e, no de Ferreira, "espírito" soa como "esp'rito" e "juízo" como "j'izo", sem o menor problema. [4.22] Chega a ser engraçada a petulância com que historiadores do naipe de Fidelino de Figueiredo apontam "deslizes" métricos em Camões - tal como Garrett fez reparos em Bocage - como se a métrica (e com ela toda a versificação) não fosse praticamente inventada pelos próprios poetas - e só posteriormente codificada pelos esticólogos. Causa riso a facilidade com que certos autores - mesmo os que nem são poetas - querem "catar pulgas no leão", garimpando supostos cochilos em quem jamais os cometeria e, quando os comete, fá-los cabeludos, tão intencionalmente quanto cometo este cacófato. Chamar de "claudicante" quem faz malabarismos numa corda bamba, ou ver "rimas forçadas" em quem só faz força quando está sentado no vaso, é deplorável, se não for hilário. [4.24/25] Se a personagem de Natércia é lenda literária ou não, pouco importa. O que me causa espécie é essa pretendida imprescindibilidade (Que belo termo, hem?) da musa encarnada em mulher, que se identifique com o grande amor da vida de todo poeta. Nada contra, repito, o papel representado pelas Beatrizes, Lauras, Marílias ou Nises, mas nada de estender essa "musocracia" a qualquer poeta que se queira "maior", até porque o próprio Camões se imortalizou na poesia épica, mais que na lírica. O problema literário, ao que se vê, reside precisamente no soneto, que, se dependesse de determinadas vertentes da crítica e da historiografia, jamais se libertaria do lirismo platônico à moda de Arvers. (Ver 1.24/26) [4.32] Concordo que o gongorismo, em seus aspectos mais postiços e supérfluos, seja levado à conta de degenerescência do barroco, mas nenhuma hipertrofia pode servir de pretexto para impugnar, em bloco, a poética e a poesia barrocas. O perigo, implícito nesse repúdio generalizado, consiste em desmerecermos, no Brasil, a obra de ninguém menos que Gregório. Chamar de "sobriedade" e de "discreta elegância" a poesia arcádica, por oposição à "perversão do bom gosto" e à "decadência retórica" atribuídas maldosamente ao barroco, equivale a sonegar o devido tributo à obra gregoriana e à de seus referenciais espanhóis (a exemplo do caso que citei em 2.5). Ainda que seja compreensível, por razões históricas, a malévola aversão dos portugueses àquela influência espanholista, temos que separar as coisas e, com visão panorâmica, reconhecer que o sonetismo floresceu com qualidade naquele período áureo. [4.39] Ainda a propósito de Gregório, nada casual é a "semelhante dessemelhança", tipicamente antitética (portanto barroca) entre o soneto de Rodrigues Lobo e o que abaixo transcrevo, aliás musicado até por Caetano. Veja-se ainda o que vai anotado no parágrafo 5.4. TRISTE BAHIA [Gregório de Matos] Triste Bahia! ó quão dessemelhante Estás e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vi eu já, tu a mi abundante. A ti trocou-te a máquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando, e tem trocado, Tanto negócio e tanto negociante. Deste em dar tanto açúcar excelente Pelas drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sagaz Brichote. Oh se quisera Deus, que de repente Um dia amanheceras tão sisuda Que fora de algodão o teu capote! [4.47] Concordo que este, ao lado de outros bem escolhidos sonetos bocagianos, mereça especial destaque por "renegar" os prazeres mundanos, revelando a faceta do "poeta arrependido" que, saciado da carnalidade, se reespiritualiza. Também o famoso soneto ditado na agonia final (a seguir transcrito) envereda por essa "regeneração", mas convém assinalar que, se o próprio Bocage afirma ter sido "outro Aretino", não menos importante seria estudarmos em sua obra a faceta obscena e fescenina, que muitos teóricos descartam ou subestimam. Abaixo transcrevo um exemplo inigualável. [original de Bocage] Já Bocage não sou!... À cova escura Meu estro vai parar desfeito em vento... Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento Leve me torne sempre a terra dura. Conheço agora já quão vã figura Em prosa e verso fez meu louco intento. Musa!... Tivera algum merecimento, Se um raio da razão seguisse, pura! Eu me arrependo; a língua quase fria Brade em alto pregão à mocidade, Que atrás do som fantástico corria: "Outro Aretino fui... A santidade Manchei... Oh!, se me creste, gente impia, Rasga meus versos, crê na Eternidade!" [SONETO DO PAU DECIFRADO] [Bocage] É pau, e rei dos paus, não marmeleiro, Bem que duas gamboas lhe lobrigo; Dá leite, sem ser árvore de figo, Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro. Verga, e não quebra, como zambujeiro; Oco, qual sabugueiro tem o umbigo; Brando às vezes, qual vime, está consigo; Outras vezes mais rijo que um pinheiro. À roda da raiz produz carqueja; Todo o resto do tronco é calvo e nu; Nem cedro, nem pau-santo mais negreja! Para carvalho ser falta-lhe um U; Adivinhem agora que pau seja, E quem adivinhar meta-o no cu. [4.47.1] Entretanto, tenhamos cuidado para que a mítica figura do Sadino não ofusque, como tem ofuscado, a de outros mestres do soneto que, contemporâneos a ele, incursionavam com brilhantismo na mesma seara fescenina. Um destes, o Lobo da Madragoa, até precedeu Bocage; outro, Pedro José Constâncio, foi vítima das "desapropriações" que favoreceram a lenda bocagiana, já que alguns de seus sonetos aparecem hoje como sendo da lavra do Sadino. [4.47.2] Mais até que Bocage, é o Lobo da Madragoa típico representante do chamado "lirismo negro" (como em Portugal se designa a poesia fescenina), já que sua obra é exclusivamente satírica. Antônio Lobo de Carvalho (1730-1787) nasceu em Guimarães, mas morreu numa água-furtada na rua lisbonense que lhe valeu o apelido de Madragoa. É duvidoso que tenha se bacharelado pela Universidade de Coimbra ou que tenha se refugiado em Macau, mas o certo é que, perseguido pelas "malhas da justiça" devido a suas "ofensas", viveu algum tempo no Porto, onde produziu parte da poesia. Regressando à capital, foi várias vezes preso por seu "gênio turbulento" e pelas queixas dos que se sentiam desonrados em verso. Lobo não poupava sequer seus mecenas e amigos, entre os quais João Xavier de Matos. Segundo Natália Correia, que inclui o poeta em sua "Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica", "Muito embora fosse contemporâneo da Arcádia Ulissiponense, vivendo em Lisboa ao tempo em que aquela confraria literária ainda subsistia (...), o seu nome não aparece entre os Árcades em cuja assembléia destoaria o estro popular e a desbragada incomplacência (...) Enquanto vivo, gozou de grande popularidade, sendo as suas produções, quase todas sonetos, avidamente decoradas e sucessivamente copiadas. Uma vez morto, e desaparecidas as personagens que a sua desapiedada chacota convertia em 'fábulas do povo', o seu nome foi esquecido, até que em 1852 o valioso pecúlio poético (...) é reunido e publicado integralmente pela primeira vez em volume intitulado 'Poesias joviais e satíricas' (...)". A circunstancialidade da sátira obscureceu sua obra perante o lirismo de Bocage, mas a posteridade já resgata sua importância, inclusive pela rede virtual. Abaixo, dois exemplos. [a certa moça, chamando velho ao autor, que ainda se não tinha por tal] Não te escondo a guedelha encanecida, Nem da rugosa fronte a cor já baça; Conheço que o meu lustre, a minha graça Foi por duros Janeiros destruída. Confesso, 'inda, que é já bem conhecida, Que a idade minha dos cinquenta passa; Mas juro que 'inda tenho grossa maça, Qual teso mastaréu a pino erguida. Se és hidrópica mestra fodedora, Daquelas que procuram com trabalho Lanzuda porra, porra aterradora: Minhas cãs não te sirvam de espantalho; Põe à prova o teu cono, e sem demora Verás então se é velho o meu caralho. [a certa Messalina dos nossos tempos] Essa altiva mulher, cara de borra, Alta, magra, amarela, tola e feia, Casada c'um ourives que laureia, Tênue dote comendo à tripa forra; Também ninguém duvida que lhe escorra Pelas pernas humor de gonorréia; É tão puta, que diz à boca cheia Que jamais se acolheu farta de porra. Se a não fartou do Braga um caralhote De vinte, nem de arrobas um caralho, Nem outras porras mil, todas de lote; Como há de saciá-la o seu paspalho, Que, tendo uma barriga como um pote, Tem a piça menor que um dente d'alho? [4.47.3] Alguns dos sonetos mais sexualmente descritivos e desreprimidos de Bocage foram achados num caderno onde, segundo algumas fontes, constava o nome de Pedro José Constâncio, cuja biografia ainda não figura nas enciclopédias e compêndios literários. Muito parca é a informação sobre esse meu xará de cuja obra Bocage teria se "apropriado". Irmão dum prestigiado escritor (Francisco Solano Constâncio, autor, entre diversos tratados, duma "História do Brasil"), o Pedro que também foi Podre morreu, sem completar seus quarenta, antes de 1820 e viveu marginalmente, entre a putaria e a loucura. Ou, como se cita, "Enfermidades geradas pelos excessos venéreos a que se dava, sem escolha nem reserva, o levaram a um estado valetudinário, atrofiando-lhe as faculdades, e tornando-o incapaz de toda a aplicação." Filho dum cirurgião da corte de D. Maria I, chegou a bacharelar-se em cânones pela Universidade de Coimbra, mas só se tem notícia de seu convívio com os poetas contemporâneos (entre os quais Bocage e José Agostinho) justamente porque estes costumavam interceder em seu favor quando era perseguido e punido pelo comportamento anti-social, ou seja, quando era preso por se exibir pelado em público ou por escrever poemas como o soneto abaixo, que, segundo denúncia ao intendente da polícia, era "licencioso" e alusivo à "fornicação dos cães dentro das igrejas". Entre os poucos poemas de Constâncio que apareceram impressos está o soneto transcrito mais abaixo, o qual foi (1812) incluído "por engano" pelo editor das obras de Bocage e excluído (1820) na reedição. Fundamentada ou não, a polêmica sobre os sonetos bocagianos ou constancianos permanece secundária diante do inesgotável "veio subterrâneo" (como dizia José Paulo Pais) da poesia vernácula: o filão fescenino, obra coletiva e comunitária de todos os poetas libertinos e libertários. [SONETO DA CÓPULA CANINA] [Pedro José Constâncio, atribuído a Bocage] Quando no estado natural vivia Metida pelo mato a espécie humana, Ai da gentil menina desumana, Que à força a greta virginal abria! Entrou o estado social um dia; Manda a lei que o irmão não foda a mana, É crime até chuchar uma sacana, E pesa a excomunhão na sodomia: Quanto, lascivos cães, sois mais ditosos! Se na igreja gostais de uma cachorra, Lá mesmo, ante o altar, fodeis gostosos: Enquanto a linda moça, feita zorra, Voltando a custo os olhos voluptuosos, Põe num altar a vista, a idéia em porra. [SONETO DO NINHO] [Pedro José Constâncio] Para iludir o suspirado encanto, Por quem debalde há longo tempo ardia, "Um ninho achei, ó Lésbia (eu lhe dizia) Como é dos pais delicioso o canto!" Assim doloso me expressava, em quanto Um alegre alvoroço em Lésbia eu via: "Ah! onde o deparaste?" (ela inquiria) "Vem (lhe torno) comigo ao pé do acanto": Por um bosque me fui co'os meus amores, Pergunta aos ramos pelo implume achado, E respondendo só vão meus furores. Conhece... quer fugir ao laço armado, Na encosta a vergo, que afofavam flores, Beijo-lhe as iras... fique o mais calado. [4.54] Concordo que a poesia quentaliana seja inclassificável sob algum "ismo" coletivo ou escolástico, mas exatamente pelo fato de não se filiar a uma estética parnasiana é que Cruz Filho lhe faz restrições quanto à perfeição da forma ou quanto à clareza do discurso. Pondo de parte, porém, a puxação de brasa e as particulares sardinhas, fica evidente que Antero, depois de Bocage, vem a ser a principal figura do sonetismo português. [4.54.1] Antero Tarqüínio de Quental (1842-1891) foi mais revolucionário na política que na poética, mas, mesmo sem ter deixado Camões para trás, deixou sua marca pessoal como sonetista. Dele é este exemplo, cujo tema interpreto à minha maneira: METEMPSICOSE [original de Antero de Quental] Ardentes filhas do prazer, dizei-me!, vossos sonhos quais são, depois da orgia? Acaso nunca a imagem fugidia do que foste em vós se agita e freme? Noutra vida e outra esfera, aonde geme outro vento, e se acende um outro dia, que corpo tínheis? que matéria fria vossa alma incendiou, com fogo estreme? Vós fostes, nas florestas, bravas feras, arrastando, leoas ou panteras, de dentadas de amor um corpo exangue... Mordei, pois, esta carne palpitante, feras feitas de gaze flutuante... Lobas! leoas! Sim, bebei meu sangue! SONETO INCORPORADO [Glauco Mattoso] Em outra encarnação, acho que estive na pele dum cachorro vira-lata: não sou nenhum mascote duma gata riquíssima ou bonita, que o cative. Não tenho alguém que, sádico, me prive do pão, da liberdade, ou que me bata, porém, do modo como me maltrata, meu dono acorda o escravo que em mim vive. O cara simplesmente tira a bota e manda-me lamber seu pé fedido, de cuja sola sujo suor brota! Com nojo, eu a princípio me intimido, mas logo me recordo da remota missão: lambendo, engulo meu ganido. [4.56] Pelo visto, o lirismo personalíssimo de Quental, inquieto e perturbador, incomoda especialmente aos parnasianos, que repelem qualquer poesia subjetivista como sendo uma "confissão pública das angústias da alma". Ora, ainda bem que os portugueses não se deixaram levar tão extremamente, como no Brasil, por aquele parnasianismo oco e meramente exibicionista de "cultura histórica", no caso a erudição mitológica, helênica ou bíblica, que só se prestava à pintura ou à escultura de neutras telas verbais ou estátuas discursivas, sem a mínima preocupação introspectiva ou confessional do poeta. [4.62/73] Concordo que, ao listar sonetistas mais recentes nas letras lusas, Cruz Filho inclua algumas figuras femininas, mas poderia ter incluído muitas mais. Basta, contudo, a menção de Florbela Espanca para que seu inventário não perca a validade. Todavia, esqueceu-se o autor de citar Cesário Verde entre as figuras masculinas. Já que, de nenhum dos dois, Cruz Filho mostraria algum soneto mais cru, faço-o aqui, dando um exemplo de cada (além do transcrito em 2.68/69.3), para contrastar o feminismo daquela com o machismo deste, ainda que ambos se revelem anticonvencionais até como representantes do feminismo ou do machismo. CRUCIFICADA [Florbela Espanca] Amiga... noiva... irmã... o que quiseres! Por ti, todos os céus terão estrelas, Por teu amor, mendiga, hei-de merecê-las Ao beijar a esmola que me deres. Podes amar até outras mulheres! - Hei-de compor, sonhar palavras belas, Lindos versos de dor só para elas, Para em lânguidas noites lhes dizeres! Crucificada em mim, sobre os meus braços, - Hei-de poisar a boca nos teus passos Pra não serem pisados por ninguém. E depois... Ah! Depois de dores tamanhas Nascerás outra vez de outras entranhas, Nascerás outra vez de uma outra Mãe! LÁGRIMAS [Cesário Verde] Ela chorava muito e muito, aos cantos, Frenética, com gestos desabridos; Nos cabelos, em ânsias desprendidos, Brilhavam como pérolas os prantos. Ele, o amante, sereno como os santos, Deitado no sofá, pés aquecidos, Ao sentir-lhe os soluços consumidos, Sorria-se cantando alegres cantos. E dizia-lhe então, de olhos enxutos: "Tu pareces nascida de rajada, Tens despeitos raivosos, resolutos; Chora, chora, mulher arrenegada; Lacrimeja por esses aquedutos... Quero um banho tomar de água salgada". [4.65] A despeito do interesse parnasiano de Cruz Filho, cabe vasculhar, na obra de Gonçalves Crespo, exemplos mais curiosos que este soneto. De minha parte, incluo o que se segue: O CAMARIM [Gonçalves Crespo] A luz do Sol afaga docemente As bordadas cortinas de escumilha, Penetrantes aromas de baunilha Ondulam pelo tépido ambiente. Sobre a estante do piano reluzente Repousa a "Norma", ao lado uma quadrilha; E do leito francês nas colchas brilha De um cão de raça o olhar inteligente. Ao pé das longas vestes, descuidadas Dormem nos arabescos do tapete Duas leves botinas delicadas. Sobre a mesa emurchece um ramilhete, E entre um leque e umas luvas perfumadas Cintila um caprichoso bracelete. [4.66] Concordo que, independentemente de ser ou não simpático aos parnasianos (até por empregar o metro alexandrino), Monsaraz, o Conde, interessa, como neste exemplo, por razões bem diversas, mais próximas do sadomasoquismo assexuado ou bissexuado, tema pouco explorado na sonetística universal. [4.68] Também Eugênio de Castro foi justamente lembrado por Cruz Filho neste exemplo um tanto masoquista, que nada fica devendo ao caso anterior. [5.1/3] Apesar de sua manifesta má-vontade com relação ao seiscentismo, parece que Cruz Filho se deixou seduzir momentaneamente pelo título do livro de Botelho, para, logo em seguida, lembrar-se de que não poderia rotular o baiano com maior benevolência além das expressões "obscuro poeta" ou "carência de inspiração poética e de sentimento". Por mim, acho que valeria a pena ao menos exemplificar algo do poeta, como faço aqui: A UMA CAVEIRA [Manuel Botelho de Oliveira] Esta, que vês Caveira pavorosa! este, que vês assombro denegrido! este que vês retrato carcomido! esta que vês pintura dolorosa! Esta que vês batalha temerosa! este que vês triunfo repetido! este que vês Castelo destruído! esta que vês Tragédia lastimosa! Esta enfim te apregoa a desventura com o mudo pregão de teus enganos pera buscar a vida mais segura: Se olhos não tem, nem língua em breves anos, nesta cegueira vês tanta loucura, ouves neste silêncio os desenganos. [5.4] Seria previsível que Cruz Filho endossasse a crítica que pune Gregório por ter cão e por não ter. Se, na qualidade de "fundador" da nossa literatura, atribui-se ao Boca do Inferno maior responsabilidade pela poesia lírica, vem um José Veríssimo dizendo que "a parte séria das suas composições é genuinamente do pior seiscentismo"; se, na qualidade de menestrel maldito, reconhecem em Gregório o maior talento, vem um Manuel Bandeira dizendo que, apesar de tudo, "não foi um grande poeta", como se a sátira fosse poesia menor. O pior é quando Bandeira acusa Gregório de plágio. Por esse caminho, jamais chegaremos a achar algo criativo na poesia. Afinal, se Camões pode impunemente imitar Petrarca, por que não poderia Gregório imitar Camões e Rodrigues Lobo? Quanto a este, veja-se o parágrafo 4.39; quanto a Camões, segue o que teorizei alhures. Na seqüência, discorro sobre a trajetória do soneto no Brasil. [5.4.1] Nosso barroco, tipificado por Gregório de Matos, introduz fielmente o modelo camoniano, que perdura através do arcadismo até o romantismo. O soneto gregoriano segue freqüentemente o primeiro paradigma de Camões (soneto 19, parágrafo 2.52.1), mas, quando parodia o segundo paradigma (soneto 29, em 2.52.2), Gregório mantém até o esquema rimático (CDE/CDE) dos tercetos: SETE ANOS [Gregório de Matos] Sete anos a nobreza da Bahia Servia a uma pastora Indiana bela, Porém servia a Índia e não a ela, Que à Índia só por prêmio pretendia. Mil dias na esperança de um só dia Passava, contentando-se com vê-la, Mas frei Tomás usando de cautela, Deu-lhe o vilão, quitou-lhe a fidalguia. Vendo o Brasil, que por tão sujos modos Se lhe usurpara a sua Dona Elvira, Quase a golpes de um maço e de uma goiva: Logo se arrependeram de amar todos, E qualquer mais amara, se não vira Para tão limpo amor tão suja noiva. [5.6] Concordo que a história do soneto brasileiro data de Gregório e que, como tudo em nossa literatura, o soneto tenha sido pivô de correntes e escolas importadas, mas Cruz Filho deixa claro que, à exceção de Cláudio, o Glauceste, e do triunvirato Bilac-Correia-Oliveira, praticamente ninguém merece menção. Aos poucos, porém, Cruz Filho vai revendo seu mal-humorado conceito e admite a existência dum Guimarães, o Diplomata, dum Delfino, o Senador, dum Augusto dos Anjos, o Poeta da Podridão, dum Cruz e Sousa, o Negro, ou dum Emílio de Meneses, o Gordo. Não podia ter chegado até o Cego, mas podia ter mencionado muitos outros, mortos ou vivos. Em todo caso, aproveito aqui para transcrever o que teorizei alhures. [5.6.1] Além do verificado em Gregório, outros esquemas de tercetos figuram, com menor freqüência, na fase que vai do barroco ao romantismo, como CDE/DCE (na obra do próprio Gregório) ou CDC/EDE (em Gonçalves Dias, por exemplo) ou CDD/CEE (em Álvares de Azevedo, por exemplo). Com o parnasianismo o modelo camoniano ganha mobilidade, possibilitando rimas cruzadas (em duas ou quatro ordens) nos quartetos (ABAB/BABA ou ABAB/CDCD) e três ordens de rimas, em todas as posições possíveis, nos tercetos: CDC/EDE, CCD/EED, CDC/DEE, CDD/CEE, etc. Além da flexibilização do molde, os parnasianos experimentaram rupturas canônicas, influenciados por Baudelaire: tercetos antepondo-se ou intercalando-se aos quartetos, metrificação irregular, desordenação ou reordenação de rimas, a exemplo de Raimundo Correia ou Machado de Assis. [5.6.2] Abundante no barroco e no arcadismo, escasso no romantismo, o soneto atinge a saturação no parnasianismo e se mantém cultivado no simbolismo. Com o modernismo seu uso parece a princípio abolido, mas, se rareia em Mário, ressurge em Bandeira e Drummond, voltando a florescer (ou tendo florescido, cedo ou tarde) com Jorge de Lima, Murilo Mendes, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Mário Quintana, Mário Faustino, Dante Milano, Abgar Renault, Augusto Meyer... além, é claro, do sempre lembrado Vinícius; sem falar na Geração de 45 (Afonso Félix de Sousa, Alphonsus de Guimaraens Filho, Domingos Carvalho da Silva, Geir Campos, Ledo Ivo, Paulo Bomfim, Paulo Mendes Campos, Péricles Eugênio da Silva Ramos, entre outros), sob cuja coletiva influência muitos modernistas revisitam o molde mais canônico. Bandeira chega até a praticar o modelo inglês. Péricles Eugênio da Silva Ramos até traduz Shakespeare. Geir Campos chega ao requinte de compor uma coroa de sonetos. Paralelamente, processos pouco convencionais como o verso livre ou o decassílabo branco passam a ter emprego indiscriminado, dando a impressão de que bastaria um agrupamento de catorze linhas em duas estrofes de quatro e duas de três versos para se caracterizar um soneto. Poucos praticam tais licenças sem perder de vista a integridade do gênero, como o próprio Drummond, Augusto Frederico Schmidt ou, presentemente, Cajazeira Ramos. [5.6.3] Mesmo branco, sem acento heróico ou sáfico, o decassílabo tem predominado entre os sonetistas brasileiros, exceto durante o parnasianismo (quando o alexandrino teve seu apogeu) e no pós-concretismo (quando proliferam experiências métricas em torno do sonetilho e do monossílabo), mas em todas as correntes e períodos pontificam exímios praticantes: no barroco, Gregório e Manuel Botelho de Oliveira; no arcadismo, Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga; no romantismo, Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias e Castro Alves; no parnasianismo, Bilac, Correia, Alberto de Oliveira, Vicente de Carvalho, Emílio de Meneses e Luís Delfino, além de todo o elenco da evolução da escola, que vai de Guimarães, o Diplomata, a Francisca Júlia; no simbolismo, Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens, Costa e Silva, B. Lopes, Emiliano Perneta, Alceu Wamosy e outros; num pré-modernismo (entre paraparnasianos e transimbolistas), Raul de Leoni, Hermes Fontes, Martins Fontes, Augusto dos Anjos, Gilka Machado, Auta de Sousa, José Albano e Pedro Kilkerry; num pós-modernismo, representantes de diversas tendências (mais, ou menos ortodoxas) como Carlos Pena Filho, Ruy Espinheira Filho, Carlos Nejar, Renata Pallottini, Gastão de Holanda, Gilberto Mendonça Teles, Marcus Accioly, Walmir Ayala, Ivan Junqueira, Eno Teodoro Wanke, Paulo Henriques Britto, Antônio Cícero, Adriano Espínola, Bruno Tolentino, Alexei Bueno ou, para reciclar o barroco na contracultura, eu mesmo, reencarnando Gregório em meu "barrockismo". [5.11] Concordo que os sonetos do Glauceste, até pela quantidade na qualidade, o coloquem no mesmo pódio de Camões e Bocage, merecedor dum honroso bronze, já que o ouro é disputado pelos dois portugueses. Mas Cruz Filho faz praça da postura classicista de Cláudio para se contrapor aos tais "vícios" seiscentistas, quando, na verdade, o arcadismo também se viciou na cena bucólica e no monótono diálogo entre o pastor e sua pastora - cena que, em terras tropicais, assumia feição tão ridícula quanto a preferência dos nossos parnasianos tupiniquins pelas divindades gregas ou pelas personalidades bíblicas. Resta a triste conclusão de que foi mesmo uma pena que o nosso período romântico houvesse abandonado o sonetismo, do contrário seria em catorze versos que o indianismo brilharia ainda mais. Quanto ao Glauceste, para provar que, pessoalmente, valorizo-o apesar do ramerrão pastoril, destaco aqui dois casos de minha preferência: [PODEMOS COMPETIR] [Cláudio Manuel da Costa] Eu ponho esta sanfona, tu, Palemo, Porás a ovelha branca, e o cajado; E ambos ao som da flauta magoado Podemos competir de extremo a extremo. Principia, pastor; que eu te não temo; Inda que sejas tão avantajado No cântico amabeu: para louvado Escolhamos embora o velho Alcemo. Que esperas? toma a flauta, principia; Eu quero acompanhar-te; os horizontes Já se enchem de prazer, e de alegria: Parece, que estes prados, e estas fontes Já sabem, que é o assunto da porfia Nise, a melhor pastora destes montes. [ELE OU EU] [Cláudio Manuel da Costa] Não te cases com Gil, bela serrana; Que é um vil, um infame, um desastrado; Bem que ele tenha mais devesa, e gado, A minha condição é mais humana. Que mais te pode dar sua cabana, Que eu aqui te não tenha aparelhado? O leite, a fruta, o queijo, o mel dourado; Tudo aqui acharás nesta choupana: Bem que ele tange o seu rabil grosseiro, Bem que te louve assim, bem que te adore, Eu sou mais extremoso, e verdadeiro. Eu tenho mais razão, que te enamore: E se não, diga o mesmo Gil vaqueiro: Se é mais, que ele te cante, ou que eu te chore. [5.15] Por falar em quantidade na qualidade, Cruz Filho desdenha da "reduzida estatura" dos oitocentos sonetos de José Maria do Amaral, mas não desdenhará dos mais de mil assinados por Delfino. Verdade é que em Delfino a fatura é mais bem-acabada, mas ninguém compõe oitocentos sonetos, de forma paradigmática, para merecer apenas duas linhas de comentário, meramente na condição de "precursor". Por mais desinteressante que possa parecer a temática, a opulência duma obra próxima do milhar deve ser digna de maior respeito. Detenhamo-nos, portanto, no soneto amaraliano, ainda que de passagem. MOESTUS SED PLACIDUS [José Maria do Amaral] Tristezas de minh'alma tão sentidas, Que sois doces memórias do passado, Do tempo já vivido, e tão lembrado, Inda me dais as horas já perdidas! Horas de tanto bem, tão bem vividas, Quando vivi feliz e descuidado, Sejam ao coração desenganado Sonhos que enganem dores tão gemidas. Tem hoje o meu viver tal agonia, Que é doçura a tristeza da saudade, E a saudade do tempo é poesia. Flores da quadra sois da mocidade, Minha velhice em vós se refugia, Tristezas de minh'alma em soledade. [5.16] A propósito dessa erudita e mimética vertente classicista, que chega por vezes a "restaurar" o estilo e até a grafia arcaica da era camoniana, vale lembrar os nomes de Guilherme de Almeida e de Abgar Renault. O primeiro arremedou o Caolho no ciclo "Camoniana"; o segundo, no livro "Sonetos antigos", dos quais exemplifico, abaixo, com um espécime de cada. CAMONIANA [Guilherme de Almeida] Alma que de meu corpo te apartaste, Corpo que de minh'alma te partiste, E que dest'arte em dois me repartiste, E numa só desdita a ambos juntaste: Qual vida é igual à morte que inventaste? Qual morte mais do que tal vida é triste? Que humano ser tão desumano existe Que haja sua igualdade em tal contraste? Ante a razão porque a razão cativa No próprio cativeiro acha conforto, E às vezes se abandona, outras se esquiva, Chego a quedar-me ante mim mesmo absorto, Alma sem corpo, que não sei se é viva, Corpo sem alma, que não sei se é morto. SONETO ANTIGO [Abgar Renault] Senhora, aqui me heis que, arrependido, De giolhos ao castigo me offereço, E que espero, Senhora, sem gemido, Por meu crime pagar a grave preço. Se tanto amaro travo hei já eu tido, Tanto menos de mi me compadeço; Pois que, 'té mais soffrendo que hei soffrido, Não soffrêra por vós quanto mereço. Dae-me, Senhora, móres soffrimentos N'outro fado mais diro & mais imigo; E os danos todos que me fôrem dados, Tresdobrae-os em novos pungimentos, Que inda assi não terei assás castigo Da graveza sem fim de meus peccados. [5.20] Concordo que, durante o romantismo, nosso soneto tenha hibernado, mergulhado no desuso e no descaso. Corroboram tal impressão os fraquíssimos exemplos de Gonçalves Dias e de Castro Alves, que entretanto são poetas maiores em outros gêneros. Não deixa de ser curioso, contudo, o uso muito pessoal e confessional que Álvares de Azevedo fez do soneto, ainda que o tenha composto bissextamente. Dou aqui dois exemplos reveladores do comportamento boêmio daqueles jovens amantes do vício e da devassidão, travestidos de bons moços perante a ala conservadora da história. SONETO DOS MOÇOS PERDIDOS [Álvares de Azevedo] Um mancebo no jogo se descora, Outro bêbedo passa noite e dia, Um tolo pela valsa viveria, Um passeia a cavalo, outro namora. Um outro que uma sina má devora Faz das vidas alheias zombaria, Outro toma rapé, um outro espia... Quantos moços perdidos vejo agora! Oh! não proíbam pois ao meu retiro Do pensamento ao merencório luto A fumaça gentil por que suspiro. Numa fumaça o canto d'alma escuto... Um aroma balsâmico respiro, Oh! deixai-me fumar o meu charuto! SONETO DA PREGUIÇA [Álvares de Azevedo] Ao sol do meio-dia eu vi dormindo Na calçada da rua um marinheiro, Roncava a todo o pano o tal brejeiro Do vinho nos vapores se expandindo! Além um Espanhol eu vi sorrindo, Saboreando um cigarro feiticeiro, Enchia de fumaça o quarto inteiro... Parecia de gosto se esvaindo! Mais longe estava um pobretão careca De uma esquina lodosa no retiro Enlevado tocando uma rabeca! Venturosa indolência! não deliro Se morro de preguiça... o mais é seca! Desta vida o que mais vale um suspiro? [5.22] Dois dos nomes listados por Cruz Filho merecem especial menção: Laurindo Rabelo, o Poeta Lagartixa, e Moniz Barreto - o primeiro por ter sido discípulo do segundo no cultivo da vinha fescenina. Verdade é que o repentismo barretiano, tipicamente nordestino, se refletiu mais nos motes glosados que nos sonetos, mas em ambos os autores o vinho da orgia produziu algum grau de embriaguez sonetística, como se pode aquilatar nos exemplos abaixo. BAHIA [Moniz Barreto, glosando Gregório] À religião, às leis nenhum respeito; Ufano o vício, o mérito escondido; Favoneado o crime, e não punido; Muitas sociedades sem proveito; Para cabalas cada vez mais jeito; Em juiz qualquer zote convertido; Austero e violento o corrompido Nos mais notando o mínimo defeito; Por aqui, por ali, casas roubadas; Carne muito barata em teoria; Todas as coisas úteis mal paradas; Ruim prosa nos jornais, ruim poesia; Francesas contradanças já cansadas: "Eis aqui a cidade da Bahia". SONETO [Laurindo Rabelo] A fêmea capixaba deu entrada No seu leito ao monarca brasileiro, Que nos gozos de amor, hábil, matreiro, A sujeita deixou logo emprenhada. Um jumento pariu! (Pobre coitada!) Tem do Mattoso o rosto traiçoeiro, Do Monte Alegre as patas, e o traseiro É a cara do Olinda retratada. Tem do Torres a força inteligente, Do Manoel Felizardo a prenda brava, Com que raivoso vinga-se da gente. Quando Jobim, parteiro, o apresentava Todo o povo dizia geralmente Que de tal pai, tal filho se esperava. [5.22.1] Quanto a Pedro II, se seus próprios sonetos ainda têm a definitiva autenticidade posta em dúvida, que dirão os impertinentes críticos acerca dos sonetos psicograficamente atribuídos ao imperador? Vale recapitular aqui o que já comentei alhures. [5.22.2] Não sou de mesa branca nem de terreiro, mas sou bruxo, e "que las hay, las hay"... Portanto, não poderia deixar de registrar neste ponto alguns exemplos tirados do famoso livro "Parnaso de Além-Túmulo" (1932), creditado à mediunidade de Chico Xavier. É claro que não posso concordar que um Bocage, o maior autor de sonetos sacanas em língua portuguesa, tenha-se arrependido e, no célebre soneto ditado na agonia final, feche com a chave "Rasga meus versos, crê na eternidade!": ora, para crer na eternidade não é preciso rasgar nada, nem deixar de fazer versos! Pelo contrário: é mais confortador criar sabendo que a obra pode perdurar indefinidamente. Acho, pois, muito estranho que não se publiquem sonetos sacanas psicografados (sequer no caso de Emílio de Meneses), o que me cheira a censura doutrinária. Pessoalmente, depois de morto pretendo continuar a compor meus versos desbocados, e quero transmiti-los para o lado de cá sem necessidade dum "nihil obstat". Mas isso tem tempo, já que não espero morrer tão cedo. Deixo, por enquanto, minha resposta em soneto aos "arrependidos" e minha homenagem aos imortais falecidos, junto com meu respeito aos crentes divergentes e a devida gratidão aos psicógrafos, sem os quais, etc. Benditos sejam! NO EXÍLIO [D. Pedro II, psicografado por Chico Xavier] Pode o céu do desterro ser tão belo, Quanto o céu do país em que nascemos; Nada faz com que o nosso desprezemos, Acalentando o sonho de revê-lo. Todo o nosso ideal pomos no anelo De regressar, e voando sobre extremos, Com o pensamento ansioso percorremos Nosso amado rincão, lindo ou singelo. Jaz no desterro a plaga da amargura, De acerba pena ao pobre penitente, De amaro pranto da alma torturada; A alegria no exílio é desventura, É a saudade na ânsia mais pungente De retornar à pátria idolatrada. BANDEIRA DO BRASIL [D. Pedro II, psicografado por Chico Xavier] Bandeira do Brasil, símbolo da bonança, Enquanto a guerra estruge indômita e sombria, Sê nos planos de luta o sinal de harmonia, Espalhando no mundo as bênçãos da Esperança. Assinalas, na Terra, o país da Alegria, Onde toda a existência é um hino de abastança, Guardas contigo a luz da bem-aventurança, És o florão da paz, marcando um novo dia. Nasceste sob a luz de um bem, alto e fecundo, Nunca te conspurcaste aos embates do mundo, Buscando iluminar as lutas, ao vivê-las... É por isso que Deus, que te ampara e equilibra, Deu-te um corpo auri-verde onde a paz canta e vibra, E um coração azul, esmaltado de estrelas. [5.28] Concordo que o Diplomata seja festejado como inaugurador do soneto parnasiano local, mas o que reputo notável nesse poeta é a versatilidade temática num momento ainda tateante (ou, em termos podólatras, num momento em que nossa poesia ainda pisava em ovos) com relação ao emprego extra-lírico do gênero. Observe-se como, a despeito da atmosfera sempre sentimental, o Diplomata arrisca procedimentos ficcionais precocemente realistas: O FILHO [Luís Guimarães] A vida dele era uma gargalhada, A vida dela um pranto. Ela chorava Sob o cruel trabalho que a matava, Ele ria na tasca enfumaçada. Jamais nos lábios dela a asa doirada De um sorriso passou; jamais na cava E horrenda face dele resvalava Sequer de um pranto a pérola nevada. Mas Deus, que deu à entranha de Maria O redentor dos homens, Deus lhes fez Uma esmola: - Deus fê-los pais um dia; E, enfim, beijando ao filho os níveos pés, Pela primeira vez ela sorria E ele chorou pela primeira vez. A PRIMEIRA ENTREVISTA [Luís Guimarães] Ela não tarda. Disse-me que vinha: Mas quem sabe! Se acaso acontecesse Qualquer cousa imprevista, e não viesse! Oh! Deus do céu! que situação a minha! E este relógio vil que não caminha! E o tempo! — uma hora apenas e parece Noite fechada já! Ah! se chovesse!... Mas, não: alguém tocou a campainha, Alguém subiu veloz a minha escada: Ouço um rumor de seda machucada E uns miudinhos, uns nervosos passos... Duvido ainda! Espreito delirante: Abro a tremer — e toda palpitante Ela cai a sorrir entre os meus braços. [5.31] Quanto ao Senador, hoje se tem real noção do que representa a "incalculável" quantidade de sonetos por ele compostos, estimados em cerca de mil e trezentos e reunidos num único volume como parte da "Poesia completa", organizada por Lauro Junkes (Florianópolis: Academia Catarinense de Letras, 2001). Não deixa de nos provocar um sorriso irônico a "abstrusa" impressão manifestada por Cruz Filho diante do que ele tenta descrever como "alguma coisa de estranho ou insólito" nos sonetos delfinianos - certamente porque a podolatria e outras obsessões do poeta (como a pintura) são imagens recorrentes. Alguns exemplos: EXTRA MUROS [Luís Delfino] A tarde de ontem!... Longe da cidade, Eu a esperava à porta do Passeio: Quando via ir chegando um carro: — há de, Pensava, ser o carro em que ela veio. Não era. — Então ficava em novo enleio: Cada momento era uma eternidade; E entre a esperança, a dúvida, o receio, Que inquietação, que angústia, que ansiedade! Mas de repente o rápido ginete Estaca, o faéton pára, as longas crinas Sacode o pônei fino e cor de leite: Sai a deusa: o sol ri, e das colinas Rola-lhe aos pés a luz, como um tapete Quando ela esgarça na ponta das botinas... UM DEUS DE RASTO [Luís Delfino] Foras minha sultana favorita, Mas em ti só eu tendo o meu serralho Sendo de todas sempre a mais bonita, Não me deras na escolha algum trabalho. Em teu cálix de neve o branco orvalho Bebera, ó lírio, que esta terra habita: Vales os sóis da abóbada infinita, E o pó, que pisas, para ti não valho... Fosse eu um Lear, rei inda que louco, Vulcano, um deus inda que coxo, a troco Do que tenho a viver; — rei, deus, sim! eu De rasto, humilde, curvo, ao chão bem rente, Tu me negaras desdenhosamente O lamber-te um dos pés, como um lebreu... A SULTANA [Luís Delfino] Foi festa, e grande, em toda a Cachemira Quando chegou, montada no elefante... Viu-se em leve sandália de safira O seu pé de uma alvura deslumbrante; Colhendo as sedas, sua mão ferira Com luz nevada a multidão, diante Da qual o rosto apenas descobrira Na sombra do riquíssimo turbante; Mas quando viram seus nevados seios, Brancos, riscados de azulados veios, C'roados de uma auréola de cabelos, — Tênues fios de estrela que irradia... Para não ofendê-la à luz do dia Fugiram dela ao trote de camelos. [5.34] Também em Raimundo Correia se podem encontrar - ainda que esparsamente - exemplos fetichistas em que o pé exerce papel de destaque. Selecionei estes espécimes: LUBRICUS ANGUIS [Raimundo Correia] Quando a Mulher perdeu a deleitosa Paz e os jardins da habitação primeva, Chata a cabeça inda não tinha a seva Serpente que a seus pés silva raivosa; Mas a língua trissulca que na treva Falaz vibra, é a mesma venenosa Língua que à luz puríssima e radiosa Do Paraíso, outrora, enganou Eva... Bendita a planta da Mulher, que a esmaga! Bendita! A este vil monstro, de ora avante, Ninguém mais sobre a terra desconheça! E ele a marca indelével sempre traga Do rijo calcanhar firme e possante, Que lhe achatou, impávido, a cabeça! CONCHITA [Raimundo Correia] Adeus aos filtros da mulher bonita; A esse rosto espanhol, pulcro e moreno; Ao pé que no bolero... ao pé pequeno, Pé que, alígero e célere, saltita... Lira do amor, que o amor não mais excita, A um silêncio de morte eu te condeno; Despede-te; e um adeus, no último treno, Soluça às graças da gentil Conchita: A esses, que em ondas se levantam, seios Do mais cheiroso jambo; a esses quebrados Olhos meridionais de ardência cheios; A esses lábios, enfim, de nácar vivo, Virgens dos lábios de outrem, mas corados Pelos beijos de um sol quente e lascivo. PRIMAVERIL [Raimundo Correia] Despertou; e ei-la já, fresca e rosada, Na várzea em flor, que se atavia e touca Da primavera ao bafo, e onde é já pouca A neve, ao sol fundida e descoalhada... E em sua trêmula, infantil risada, A boca abrindo, patenteia, a louca, Rico escrínio de pérolas da boca. Na pequenina concha nacarada... Voa, as papoilas esflorando e as rosas... Passa entre os jasmineiros que se agitam, Às vezes célere e pausada às vezes... E, sob as finas roupas vaporosas, Seus leves pés, precípites, saltitam, Pequenos, microscópicos, chineses... [5.36] Em Alberto de Oliveira sobressai, além de outros méritos, a já repisada quantidade na qualidade. Um de seus mais populares sonetos é o grotesco exemplo abaixo, do qual dou a seguir uma paródia macarrônica. De minha parte, parafraseei outro soneto, menos jocoso: A VINGANÇA DA PORTA [Alberto de Oliveira] Era um hábito antigo que ele tinha: Entrar dando com a porta nos batentes. — "Que te fez esta porta?" a mulher vinha E interrogava... Ele, cerrando os dentes: — "Nada! Traze o jantar." — Mas à noitinha Calmava-se; feliz, os inocentes Olhos revê da filha e a cabecinha Lhe afaga, a rir, com as rudes mãos trementes. Uma vez, ao tornar à casa, quando Erguia a aldraba, o coração lhe fala: — "Entra mais devagar..." Pára, hesitando... Nisso nos gonzos range a velha porta, Ri-se, escancara-se. E ele vê na sala A mulher como doida e a filha morta. A BINGANÇA DA PORTA [Furnandes Albaralhão] Era um custume vesta que ele tinha Intrar vatendo a porta: — "Antão, Manéle! Lhe dizia a mulhére, que papéle! Não me faças romôre! Olha a bizinha!" E todo dia era essa ladainha! Sujaito desumano, pai cruéle, Dizia-lhe: — Si tains amôre à pele Daixa-me sussigado, ó mulherzinha!" Uma noite em que bâiu desse jaito, A pinitrar cum falta de ruspaito Na casa em que amvos eles dois residem, Avrindo a porta a punta-pés, zangado, Biu pulo chão, uma de cada lado, A mulhére inguiçada e a filha idem! ENFIM [Alberto de Oliveira] Enfim... Nas verdes pêndulas ramadas Cantai, pássaros! Vinde ouvi-lo! Rosas, Abri-vos! Lírios, recendei! Medrosas Miosótis e acácias perfumadas, Prestai-me ouvido! Saibam-no as cheirosas Balças e leiras úmidas plantadas; Aves e flores, flores e alvoradas, Alvoradas e estrelas luminosas, Saibam-no, saiba o céu com a esfera toda — Que, enfim, sua mão, enfim, sua mão de leve... Borboletas, que pressa! Andais-me em roda! Auras, silêncio! Enfim, sua mãozinha, Sua mão de jaspe, sua mão de neve, Sua alva mão pude apertar na minha! SONETO SUPLANTADO [Glauco Mattoso] Até que enfim! Estoure-se a pipoca! Badalem sinos! Flores abram já! As aves corram todas para cá! Meu júbilo a atenção geral convoca! Estrelas resplandeçam! Que a fofoca se espalhe desde o Pampa ao Amapá! Que estampem os jornais! Que o blablablá por tema tenha o que meu lábio toca! O céu saiba de tudo, e toda a esfera, que, enfim, seu pé... no olhar se me agiganta... Até a periquitada se aglomera! Silêncio, cachorrada! Enfim, me canta a vida! Enfim, depois de tanta espera, senti no lábio, em cheio, a plana planta! [5.37] Em Bilac não é a quantidade que importa, mas a qualidade, já que, concordando com Cruz Filho, verifico que nenhum de seus sonetos paira abaixo do nível mais elevado, exceto por um detalhe irrelevante: sua tendência ao metro alexandrino, aliás próprio da influência francesa que presidiu a corrente parnasiana. Não por acaso seu nome completo - Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac - é didaticamente citado como exemplo de alexandrino perfeito. Neste metro, meus favoritos são "Inania verba" e "Só" e, no decassílabo, "Língua portuguesa" (que parodiei) e "Nel mezzo del camin". LÍNGUA PORTUGUESA [Olavo Bilac] Última flor do Lácio, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela... Amo-te assim, desconhecida e obscura. Tuba de alto clangor, lira singela, Que tens o trom e o silvo da procela, E o arrolo da saudade e da ternura! Amo o teu viço agreste e o teu aroma De virgens selvas e de oceano largo! Amo-te, ó rude e doloroso idioma, Em que da voz materna ouvi: "meu filho!", E em que Camões chorou, no exílio amargo, O gênio sem ventura e o amor sem brilho! LÍNGUA PUTANHEIRA [Glauco Mattoso] A língua deflorada, puta bela, a um tempo é despudor e compostura. Menina virgem, sim, porém impura: tem cabacinho mas caralhos fela. Quero-te assim, cu doce e pica dura, carícia, ato de amor, curra barrela, que tens o dom e o vício da donzela e o ardor da crueldade e da tortura! Amo teus bardos, anjos de Sodoma, bastardos de olho vivo e de ânus largo! Amo-te, ó grosso e doloroso idioma, em que o Pai me chamou "da puta filho" e em que eu choro a cegueira e canto o encargo de usar-te a lamber botas, dando um brilho! [5.38] No caso de Valentim Magalhães, o próprio Bilac inclui no seu tratado um exemplo bastante forte, a ponto de merecer inclusão em qualquer antologia sadomasoquista da literatura brasileira. AÇOITADA [Valentim Magalhães] Ante a mesquita de áureos minaretes Açoitam dois telingas a traidora; As vergastas, sutis como floretes, Sibilam sobre a carne tentadora. À vibração das varas, estremecem Seus níveos membros, firmes, delicados, E, nos espasmos do sofrer, parecem Das contorsões do gozo eletrisados. Geme aos golpes, que as carnes lhe retalham, E, aberta a rósea boca, os olhos belos Pérolas vertem, que seu peito orvalham; Dobram-se as curvas, soltam-se os cabelos, E do alvo colo, amargurado e exangue, — Como esparsos rubis — goteja o sangue. [5.39] Concordo que, à falta de melhor rótulo, Cruz Filho classifique muitos sonetistas entre os parnasianos, mas essa mania de apenas listar nomes, interminavelmente, não compensa a omissão numa amostragem antológica. Portanto, faço aqui, além do que vai em aditamento ao "Panorama" do capítulo [8], meu próprio mostruário, composto de casos tematicamente amplos, do subjetivo ao narrativo, lembrando que Cruz Filho poderia ter seguido algum critério cronológico ou alfabético, ao invés de listar ao correr da pena, e que alguns daqueles nomes poderiam ser citados como simbolistas e até como modernistas, o que já configura outra questão. Meu critério aqui é meramente alfabético: BOM INIMIGO, BOA VINGANÇA [Amadeu Amaral] Nada é inútil, no entanto: um inimigo não é o oposto do amigo que convém; é, voltado do avesso, um bom amigo, e podemos até querer-lhe bem... A amizade, alimento que bendigo, freqüentemente a maus excessos vem, e põe, não raro, a gente como um figo, a arrebentar do miolo que contém. O inimigo, ao contrário, rói e suga; de humores doentes minha carne enxuga; e, nessa eucaristia singular, enquanto do meu ser ele se nutre, vingo-me, em paz, do inofensivo abutre, indo lá no seu sangue circular. IRONIA DIVINA [Artur de Sales] Na silenciosa catedral vetusta Penetrei; religioso e solitário, Numa concentração de missionário Sublimizado numa fé robusta. De um Cristo macilento e funerário, Braços abertos sobre a cruz adusta, Vinha uma doce claridade augusta, Que iluminava todo o santuário. Aos pés da imagem do Crucificado Chorei, por muito tempo, ajoelhado; Mas, quando o olhar ergui, tremi de espanto: Do altar, por entre as sombras, fugidias, — Oh! ironia atroz das ironias! — Aquele Cristo ria do meu pranto... ORGULHOSA [Azevedo Cruz] Teu desdenhoso olhar, de deusa desterrada Da olímpica mansão das almas soberanas, É a muralha em que esbarra a alcatéia esfaimada Das humanas paixões, das misérias humanas! Na diluência sutil de uma chuva dourada, Serenamente escorre através das pestanas, E interdito às visões e às miragens profanas, Olha, e é debalde que olha — esse olhar não vê nada... Passas. Sôfrego logo, inquieto logo, ansioso, Procuro o teu olhar, busco a tua pupila, Como o nauta um farol, sobre o mar tenebroso... E em vão nos cílios teus, ávido, o olhar mergulho! Somente uma ou outra vez, na retina tranqüila, Passa um clarão fugaz de desprezo e de orgulho! PROPAGANDA ELEITORAL [Belmiro Braga] Meu caro Coronel Martins Ferreira, Candidato extrachapa a deputado Ao congresso da Câmara Mineira, Desejo ser aí o mais votado. A minha fé de ofício é de primeira. Vale por um programa o meu passado, E no congresso não direi asneira Todas as vezes... que ficar calado. Fui caixeiro, depois fui negociante, E do torrão natal, representante, Agora aspiro a ser como escrivão; E, eleito, espero, mas que maravilha! Ser pai da Pátria e receber da filha Todo o subsídio, quer trabalhe ou não... MÃE EVA [Carlos Gondim] Mãe Eva! anjo misérrimo e execrado, O delito que um Deus te não perdoara, Nunca fora maior, se não vingara, Sobre a terra, a delícia do pecado. Foste um raio de sol que iluminara As trevas do planeta, lado a lado... Foste a enxada, a charrua, a foice, o arado E a sementeira de fecunda seara. De ti o Amor nasceu, libérrimo, entre Hosanas mil, para ser grande (Vedem Embora, as parras clássicas, teu ventre). E se rolaste pelo abismo fundo, Dando incentivo ao mal — perdeste um Édem, Glorificando o Amor — ganhaste um mundo! SONETO MUDADO [Constâncio Alves] Eras em plena mocidade, quando Da nossa casa, um dia, te partiste; E eu, coitado, sem mãe, pequeno e triste, Fiquei por esta vida caminhando. Assim — no meu amor teu rosto brando Do tempo à ação maléfica resiste, E o meu é, hoje, como nunca o viste, Tanto o passar da idade o foi mudando. Tão velho estou, que já me não conheces; Nem poderias ver no que te chora Esse a quem ensinaste tantas preces. E tão moça ainda estás que (se memora A saudade o teu vulto) — me apareces Como se fosses minha filha agora. TAÇAS [Fausto Cardoso] Deslumbrado, cheguei, chorando, à terra, um dia! E, do lauto festim da vida, achei-me à mesa; Sempre libei, cantando, a taça da alegria, Embebedou-me sempre o vinho da tristeza. Esplêndidas visões trouxeram-me, à porfia, As ânforas do amor. E, de volúpia acesa, Minha boca, de boca em boca, um mosto hauria, Que de tédio me encheu por toda a natureza! Dá-me a velhice a taça. Eu das paixões prescindo. E, ébrio, ascendo a espiral de um sonho delicioso, No vinho da saudade achando um gosto infindo! Parece-me o passado um rio luminoso, Onde vogo a rever pelas margens, florindo, A dor que, ao longe, tem as seduções do gozo! SANTA [Hermeto Lima] Essa que passa por aí, senhores, De olhos castanhos e fidalgo porte, É a princesa ideal de meus amores E a mais franzina pérola do Norte. Contam, que numa noite de esplendores, A essa que esmaga o coração mais forte, Hinos cantaram e jogaram flores As estrelas em mágico transporte. Acreditais talvez ser fantasia, Eu vos direi que não... Em certo dia, Quando Ela entrou na festival Capela, Eu vi a Virgem mergulhada em pranto, E o Cristo de marfim fitá-la tanto Como se fosse apaixonado dela. ODALISCAS [Leôncio Correia] O céu azul e transparente... um vago, Suave olor de rescendentes rosas Por tudo, em tudo um morno e doce afago: Dos ninhos às campinas silenciosas. O vento passa, de amoroso, — gago Por entre as ramarias sonorosas Bailam os raios do luar no lago Como trêmulas sombras vaporosas. Soluça no luar um doidejante arpejo Voluptuoso, febril, lascivo, ardente Tal como o ruído de um primeiro beijo. E as estrelas no céu cercam a lua: — Odaliscas guardando eternamente Alva sultana eternamente nua. O MAR [Maranhão Sobrinho] Ouve! O mar, escarpando as rochas, na agonia Do sol, parece ter na voz o humano acento De dor! Reza, talvez. Vai recolher-se. O dia Se ajoelha e a tarde, em sonho, abraça o firmamento! Como nós, pode ser que a tristeza e a alegria O mar sinta também; precisa, em movimento, Trazer um coração... Quem sabe o que irradia, No seu íntimo, em doce e azul recolhimento! Escuta! Uma onda vem beijar-te os pés. Não há de Calma os seios rasgar sobre os basaltos. Quérulas As ondas todas são. Ouve-lhe a voz. Piedade! O mar leva-me a crer que tem paixões mortais Em que rolam, brilhando, as lágrimas das pérolas E palpita, fervendo, o sangue dos corais... O AFRICANO [Mário de Alencar] Costuma estar ao sol, de pé, junto à porteira Da fazenda, onde, escravo, arrastou toda a vida. De um dos olhos é cego, e já do outro a cegueira Lhe vai grudando à face a pálpebra caída. Do corpo seminu, sob a pele entanguida Se esboça a secular ossada quase inteira. E a aparência ele tem, esguia e denegrida, De um tronco solitário em queimada clareira. Dizem que ensandeceu de dor no mesmo dia Em que morreu seu dono; outros, de nostalgia; Outros, que é feiticeiro e simula mudez, Porque, às vezes, lhe vem súbita vida estranha, E ele pula e descanta e risos arreganha, E ágil ginga no jogo ao batuque dos pés. HORA DE TÉDIO [Oscar D'Alva] Quando a sós na existência meditando Triste, revivo malogrados dias, Ao recordar mais dores que alegrias, O coração se sente miserando. Punge-me n'alma fundas agonias De uma vida passada o bem pregando Em toda a parte, e apenas encontrando Insolências, insultos, ironias... Os gozos são efêmeros fulgores Que minha alma lembrando hoje revive; O mais são mágoas, lutos, dissabores... Então sinto — ao pensar que não gozei — Saudade de prazeres que não tive, Esperança de bens que não terei! TRISTEZAS [Paulo de Arruda] Há saudades que pungem docemente Como as lembranças de um feliz passado, Quando se vive ainda acalentado Pelos sonhos de gozos do presente. Mas, se da vida no areal candente Para o vigor perdido, e abandonado Volve aos céus da ventura o olhar magoado Como a saudade, então, é atroz, pungente! E, ah! feliz do que em meio aos dissabores Da alma ainda achar nos íntimos refolhos Um mar de prantos que lhe afogue as dores! Pois sofre mais quem desolado e exangue, Não tendo nunca lágrimas nos olhos, Tem dentro da alma lágrimas de sangue. LÁGRIMAS DE CERA [Raul Machado] Quando Estela morreu, choravam tanto! Chovia tanto nessa madrugada! — Era o pranto dos seus, casado ao pranto Da Natureza — mãe desventurada! Ninguém podia ver-lhe o rosto santo, A fronte nívea, a pálpebra cerrada, Que não sentisse, logo, em cada canto Dos olhos, uma lágrima engastada! Ai! não credes, bem sei, porque não vistes! Mas quando ela morreu, chorava tudo! Até dois círios, lânguidos e tristes, Acendidos à sua cabeceira, Iam chorando, no seu pranto mudo, Um rosário de lágrimas de cera! OUVINDO BEETHOVEN [Rodrigo Otávio] Quando os teus dedos hábeis do teclado Ebúrneo arrancam as celestes notas Dessa música estranha, eu sou levado De um triste sonho às regiões ignotas; Deixo o mundo; só tu vens a meu lado, Tu somente, e, deixando em baixo grotas, Serras, cidades — fujo, ascendo, alado, Da fantasia pelas ínvias rotas; E vejo um sol na tela purpurina Do ocaso, e subo ainda, penetrando, Alfim, do Céu, no páramo profundo; E então escuto, pávido, a argentina Voz das estrelas trêmulas, falando Sobre as cousas tristíssimas do mundo... DE OUTRO TEMPO [Teotônio Freire] Essa arruinada estância foi outrora Nobre castelo de esforçados pares; Hoje montão de pedras, onde a aurora Põe tons de treva e sombras singulares. O tojo cresce e os paredões colora A esverdinhada grama; sobre os lares A poeira e, além, nos robles seculares Do parque, o deus do isolamento chora. Alta noite, porém, torvos, ferinos, Batendo escudos com as agudas lanças, Surgem das ruínas bravos paladinos, E austeros, graves, frontes levantadas, Passam, jurando mortes e vinganças, Com a mão na cruz das rútilas espadas. ASPIRAÇÃO [Zeferino Brasil] Ser pedra! não sofrer nem amar, ó que ventura! Excelsa aspiração que merece um poema! Ser pedra e ter da pedra a consistência dura Que resiste do tempo à corrupção extrema. Alma! sopro de luz que me anima e depura, Antes tu fosses pedra: um diamante, uma gema Não te seria a vida esta insana loucura Do eterno aspirar à perfeição suprema! Homem, não mudarás! És homem, serás homem; Lama vil animada, onde vive e onde medra A venenosa flor das mágoas que consomem. Homem sempre serás, imperfeito e corruto... E melhor é ser pedra e viver como pedra Que ser homem assim e viver como um bruto!... [5.46] Concordo que a imagem individual de Cruz e Sousa é maior que a corrente de adeptos formada em torno dela. Tal como o "caso" Augusto dos Anjos (que, distintamente do Negro, permanece isolado e mais nítido, ou pelo contrário, ainda mais obscuro), Cruz e Sousa fascina como sonetista e como "eu lírico", cuja "voz poética" se confunde com a lenda do "gênio injustiçado" ou do "autor maldito", com a qual eu próprio me identifico. O soneto que se segue dá idéia de como até o tema podólatra se transfigura na mão do Negro. PÉS [Cruz e Sousa] Lívidos, frios, de sinistro aspecto, como os pés de Jesus, rotos em chaga, inteiriçados, dentre a auréola vaga do mistério sagrado de um afeto. Pés que o fluido magnético, secreto da morte maculou de estranha e maga sensação esquisita que propaga um frio nalma, doloroso e inquieto... Pés que bocas febris e apaixonadas purificaram, quentes, inflamadas, com o beijo dos adeuses soluçantes. Pés que já no caixão, enrijecidos, aterradoramente indefinidos geram fascinações dilacerantes! [5.47] Vale o mesmo critério do parágrafo 5.39 para o rótulo de simbolista, donde a amostragem abaixo, lembrando que a obra de Rosas e de Kilkerry foi trazida à baila por um concretista, Augusto de Campos. IGUAÇU [Emiliano Perneta] Ó rio que nasceu onde nasci, ó rio Calmo da minha infância, ora doce, ora má, Belo estuário azul, espelhado e sombrio, Quanto susto me deu, quanto prazer me dá! Quantas vezes eu só, nestas manhãs de estio, Ao vê-lo deslizar, pomposamente, lá, Pálido não fiquei, tão majestoso vi-o, Orgulho do Brasil, glória do Paraná! Companheiro ideal! Durante toda a viagem, Foi o espelho fiel a refletir a imagem, Dos mantos e dos céus, discorrendo através Da floresta, ora assim como um cão veadeiro, A fugir, a fugir alegre e alvissareiro, Ora deitado aqui quase a lamber-me os pés! MELANCOLIA [Emílio Kemp] Vão-se os dias passando e cada dia Que chega, traz consigo as mesmas cores Desta perene e atroz melancolia Que me prende num círculo de horrores! Se desta dor que tanto me crucia, Busco esquecer-me, procurando amores, Neles, somente, encontro — que ironia! — Novos motivos para novas dores!... E assim vivendo, eu vou como um precito Que por estradas lúgubres caminha, Rasgando os pés em pontas de granito. Que importa a mim que a luz do sol se ria, Se é tão profunda esta tristeza minha Que eu já nem sei se fui alegre um dia! A GLÓRIA A CONSTELAR... [Ernâni Rosas] A glória a constelar de vitória em vitória, Como um poente, que à luz anoiteceu mais cedo, E fora a cravejar de rubis a memória Do teu cio sangrento às lajes dum degredo... Sinto-me a errar n'alguém, da sombra indefinida, No esquecer dos teus pés, assim como um segredo, A bailar como o olor na névoa adormecida, Duma dança que tem espasmos como o medo! No interlúnio da noite, incompreendido e lindo, Como um sonho febril, pela carne perdido, Que pelo olhar sem fim vai friamente ungindo... Pelo fluido lilás dessa penumbra intensa A silhueta de alguém, num gesto adormecido, Caminha pelo azul que as estrelas incensa... DOR SUPREMA [Mário Pederneiras] Que esta Suprema Dor que minh'Alma envelhece, Que tanto me acabrunha e tanto desalenta, Que repele a Ilusão, como o Sonho afugenta, Que não cede ao clamor, como não cede à prece; Que esta Suprema Dor que me prende e acorrenta À mágoa de esperar o que nunca aparece, Que se entranha na Vida e se alarga e que cresce E de encontro à Alegria em lágrimas rebenta, Seja o meu calmo abrigo, o meu sereno asilo Onde minh'Alma vá, toda branca e alquebrada, Pedir o Pouso e a Paz para um viver tranqüilo. E que exsurja da Treva em que agora ando imerso, Para eterna viver aqui — marmorizada — Na tristeza imortal da Lágrima e do Verso. AD VENERIS LACRIMAS [Pedro Kilkerry] Em meus nervos, a arder, a alma é volúpia... Sinto Que Amor embriaga a Íon e a pele de ouro. Estua, Deita-se Íon: enrodilha a cauda o meu Instinto Aos seus rosados pés... Nyx se arrasta, na rua... Canta a alâmpada brônzea? O ouvido aos sons extinto Acorda e ouço a voz ou da alâmpada ou sua. O silêncio anda à escuta. Abre um luar de Corinto Aqui dentro a lamber Hélada nua, nua. Íon treme, estremece. Adora o ritmo louro Da áurea chama, a estorcer os gestos com que crava Finas frechas de luz na cúpula aquecida... Querem cantar de Íon os dois seios, em coro... Mas sua alma — por Zeus! — na água azul doutra Vida Lava os meus sonhos, treme em seus olhos, escrava. [5.49] Concordo que o modernismo se desmereça ao olhar parnasiano de Cruz Filho, mas seria inexato afirmar que o movimento "não interessa" ao estudioso do soneto, ainda que o sonetismo de Guilherme de Almeida, Bandeira, Drummond, Jorge de Lima ou Vinícius possa ser estudado como "recaída" parnasiana. Não se trata, porém, de nenhum retrocesso: os tempos são outros, e não será porque alguém pratica o sonetismo com rigor formal, ou com hermética temática, que estará condenado a receber, eternamente, os rótulos de parnasiano ou simbolista. Como sustenta o próprio Cruz Filho, o soneto sobrevive, através dos séculos, a todas as transformações culturais, o que me autoriza a adotar, simultaneamente, os rótulos de "pornosiano" e de "barrockista". A propósito da modernidade, teorizei alhures o que segue. [5.49.1] Stéphane Mallarmé (1842-1898) é parnasiano no rigor formal, simbolista no hermetismo e modernista na antecipação das experiências novecentistas. Sua proposta poética dá um passo em direção às vanguardas e passa a bola a Apollinaire. No Brasil, consegue até a proeza de levar Augusto de Campos a retrabalhar o soneto a fim de transcriá-lo. [5.49.2] As vanguardas cubista, futurista, dadaísta e surrealista repercutem entre as artes plásticas e a poesia, com inevitáveis conseqüências na forma do poema. Guillaume Apollinaire (1880-1918) foi um dos responsáveis pela antecipação dessas rupturas na poesia francesa. Um de seus sonetos foi recriado em português desta maneira: HERCULE ET OMPHALE [original de Apollinaire] Le cul D'Omphale Vaincu S'affale. — Sens-tu Mon phalle Aigu? — Quel mâle!... Le chien Me crève!... Quel rêve!... .. Tiens bien! Hercule L'encule. HÉRCULES E ÔNFALE [tradução de José Paulo Pais] O cu Onfálico (Vão cu!) Cai rápido. — Vês tu Quão fálico? — Taful! Priápico! Que sonho Medonho!... Segura!... E a fura O hercúleo Acúleo. [5.49.3] O modernismo variou, em cronologia e terminologia, entre a Europa e as Américas (espanhola e portuguesa), mas coincidiu na desconstrução do soneto, que temporariamente perdeu sua integridade estrutural ou foi substituído pelo experimentalismo branco e livre. Mas não tardou para que os modernistas de primeira hora (ultraístas nos países latino-americanos) restaurassem o molde canônico, a fim de que a "revolução" se consumasse menos na forma que no conteúdo. Além dos brasileiros Bandeira, Drummond e Vinícius, um mexicano desempenhou papel de liderança, análogo (até na homossexualidade) ao de Mário de Andrade entre nós: trata-se de Salvador Novo (1904-1974), de quem traduzi os sonetos mais confessionais e eróticos. [5.49.4] Enfim, o soneto sobreviveu à revolução modernista, prestando-se às novas experiências de Umberto Saba, Rilke, Juan Ramón Jiménez, Miguel Hernández, e dos discípulos ingleses do precursor Gerard Manley Hopkins. No Brasil, três exemplos de soneto (pós) concretista são estes de José Lino Grünewald, Nelson Ascher e Glauco Mattoso: o primeiro é um mosaico de chavões retóricos e protocolares; o segundo, um experimento tetrassilábico sináfico, cortando uma palavra a fim de explorar, a um tempo, a exatidão métrica e a rima intravocabular (Ascher chega a enjambar pulando uma linha, correspondente ao verso entre parênteses); o terceiro equaciona termos hipoteticamente incompatíveis: estrofação quartética/tercética, espacialização gráfica, subjetividade confessional e impessoalidade verbivocovisual. (Vejam-se também os tópicos 2.68/69 e 2.77.2) SONETO BUROCRÁTICO [José Lino Grünewald] Sálvio melhor juízo doravante, Dessarte, data vênia, por suposto, Por outro lado, maximé, isso posto, Todavia deveras, não obstante Pelo presente, atenciosamente, Pede deferimento sobretudo, Nestes termos, quiçá, aliás, contudo Cordialmente alhures entrementes Sub-roga ao alvedrio ou outrossim Amiúde nesse ínterim, senão Mediante mormente, Oxalá quão Via de regra tê-lo-ão enfim Ipso facto outorgado, mas porém Vem substabelecido assim, amém. VOZ [Nelson Ascher] [Ninguém jamais regeu tão extra- (pois sem rivais) vagante orquestra como a que destra- vando os umbrais com chave-mestra - cordas vocais - propõe que além da canção, com elas, a mente aprenda (mais do que vê-las sem qualquer venda) a ouvir estrelas. CARNE QUITADA [Glauco Mattoso] da vi vi da vida vi solvi da a dí vida que di vi di na que da da quebradi ça psique [6.4] Concordo que o caso Arvers ainda suscite discussão, menos em torno do episódio em si que da questão temática (o platonismo, a desilusão amorosa, o adultério, o fatal triângulo afetivo-conjugal - assuntos tratados de maneira a granjear ampla solidariedade ou cumplicidade e, portanto, consagração universal), mas, já que Cruz Filho recapitula cabalmente o problema, limito-me a transcrever o que registrei alhures. [6.4.1] Caso peculiar é o de Félix Arvers (1806-1850), dramaturgo francês que, em verso, ficou famoso como "poeta de um poema só" (tal como o nosso Coelho Neto, hoje esquecido como romancista mas lembrado como autor do célebre soneto "Ser mãe"), cujo soneto único (em alexandrinos, naturalmente) virou mito literário, e já foi tão traduzido e parodiado, que minha versão decassílaba bem que pode ser a última: SONETO IRRECONHECÍVEL [recriação de Glauco Mattoso] Segredos todos temos, mas o meu somente é misterioso para alguém que sabe do meu fraco, porém nem suspeita que é seu pé meu camafeu. Será que quem me vê, nesse meu breu perdido, não notou que seu pé tem das solas a mais chata e que, também, mais curto é seu dedão não percebeu? Duvido! Está fazendo que não nota, fingindo que me pisa sem querer, que sente pena, enquanto faz chacota! E mesmo quando, um dia, resolver deixar que, enfim, eu lamba sua bota, irá negar que teve algum prazer! [6.4.2] Inversamente ao caso Arvers foi o caso Wanke, alusivo ao poeta paranaense que viveu no Rio. Eno Teodoro Wanke (1929-2001), incansável compilador de versos alheios (especialmente trovas), publicou vários volumes de seus próprios poemas, como "O acendedor de sonetos". Sua obra mais curiosa é o livro "Apelo", no qual o soneto pacifista que lhe dá título figura em todas as páginas, vertido para 95 idiomas. Ainda que se critique a pieguice demagógica do tema (mas grandes parnasianos foram nessa linha, como Bastos Tigre em "O excelso invento" e Martins Fontes em "Povo") ou a iniciativa do próprio autor no contato internacional, o fato é que a façanha de Wanke não tem paralelo em português. Veja-se a obra original: APELO [Eno Teodoro Wanke] Eu venho da lição dos tempos idos e vejo a guerra no horizonte armada. Será que os homens bons não fazem nada? Será que não me prestarão ouvidos? Eu vejo a Humanidade manejada em prol dos interesses corrompidos. É mister acabar com esta espada suspensa sobre os lares oprimidos! É preciso ganhar maturidade no fomento da paz e da verdade, na supressão do mal e da loucura... Que a estrutura econômica da guerra se faça em pó! E que reinem sobre a terra os frutos do trabalho e da fartura! [6.5] Quanto ao caso Blanco/White, a questão temática é mais abstrata, já que envolve crença e misticismo. Nesse tocante, prefiro transcrever o que registrei a propósito de outro poeta anglófono, Milton, também envolvido, inclusive em razão da cegueira, em questões de fé. [6.5.1] Tal como sucedera a Sá de Miranda, John Milton (1608-1674) retornou da Itália para introduzir em seu país a influência renascentista: no caso, a que recebeu de Giovanni Della Casa. O soneto abaixo, composto no mesmo ano em que perdeu a visão (1652), segue o esquema do 29 camoniano, mas minha releitura foi pautada no paradigma do 19, que é mais difícil por ter menor variedade de rima. Sua filosofia reflete o puritanismo cristão do autor, que preferi neutralizar na simples contingência da criatura face ao criador: [original de Milton] When I consider how my light is spent, Ere half my days, in this dark world and wide, And that one talent which is death to hide, Lodged with me useless, though my soul more bent To serve therewith my Maker, and present My true account, lest he returning chide; Doth God exact day-labor, light denied? I fondly ask. But patience to prevent That murmur, soon replies, God doth not need Either man's work or his own gifts; who best Bear his mild yoke, they serve him best; his state Is kingly. Thousands at his bidding speed And post o'er land and ocean without rest: They also serve who only stand and wait. SONETO DA CEGA DEVOÇÃO [recriação transversa de Glauco Mattoso] Questiono-me se usei com bom proveito, enquanto pude vê-la, a luz que agora me falta, pelo imenso mundo afora, e quanta obra podia, então, ter feito. Ainda que falível e imperfeito, me resta algum talento, e quem adora um ente superior, como quem ora, à sina de servi-lo está sujeito. Se todos têm missão, eu tenho a minha: fazer da dor poemas que comprovem o quanto me humilhei em cada linha. Fiéis outros lhe são, montanhas movem em seu louvor. Já dei tudo que tinha: meus olhos, que esbanjei quando era jovem. [6.6] Já no que concerne à questão das idéias "copiadas", literal ou indiretamente, consciente ou involuntariamente, cabe ainda algum registro, além do que foi comentado nos parágrafos 2.5.1/2, 2.41/43 e 4.39: [6.6.1] Francesco Petrarca (1304-1374) é quem, dentre os estilonovistas italianos, mais marca a história poética universal, já que a ele se deve, pelos cerca de trezentos sonetos que deixou à musa Laura de Noves, a matriz do esquema estrófico ABBA/ABBA CDE/CDE que, com a variante CDC/DCD nos tercetos, iria moldar nosso cânone camoniano. Luís Vaz de Camões (1517, 1524 ou 1525-1580) deixou pouco mais de duzentos sonetos (ou pouco menos, segundo algumas fontes mais rigorosas), conquanto Bilac lhe atribua, inexplicavelmente, uma quantidade superior a quinhentos. O importante é que Camões fixou os dois moldes básicos de Petrarca, com quartetos em ABBA e tercetos em CDC/DCD ou CDE/CDE, paradigmados nos sonetos 19 e 29, respectivamente, que nos tópicos 2.52.1/2 são analisados. Comparem-se, aliás, o soneto 31 de Petrarca e o 19 de Camões quanto ao argumento, e restará bastante evidente, mais que a coincidência, a reincidência: SONETO 31 [original de Petrarca] Questa anima gentil che si diparte, Anzi tempo chiamata a l'altra vita, Se lassuso è quanto esser dê gradita, Terrà del ciel la piú beata parte. S'ella riman fra 'l terzo lume et Marte, Fia la vista del sole scolorita, Poi ch'a mirar sua bellezza infinita L'anime degne intorno a lei fien sparte. Se si posasse sotto al quarto nido, Ciascuna de le tre saria men bella, Et essa sola avria la fama e 'l grido; Nel quinto giro non habitrebbe ella; Ma se vola piú alto, assai mi fido Che con Giove sia vinta ogni altra stella. [6.6.2] Se Petrarca foi reciclado por Camões, também eu me senti autorizado a ensaiar uma reciclagem, ou releitura, como alguns chamam a transcriação. O escolhido foi este: Soneto 192 [original de Petrarca] Stiamo, Amor, a veder la gloria nostra, Cose sopra natura altere et nove: Vedi ben quanta in lei dolcezza piove, Vedi lume che 'l cielo in terra mostra, Vedi quant'arte dora e 'mperla e 'nostra L'abito electo, et mai non visto altrove, Che dolcemente i piedi et gli occhi move Per questa di bei colli ombrosa chiostra. L'erbetta verde e i fior' di color' mille Sparsi sotto quel' elce antiqua et negra Pregan pur che 'l bel pe' li prema o tocchi; E 'l ciel di vaghe et lucide faville S'accende intorno, e 'n vista si rallegra D'esser fatto seren da sí belli occhi. SONETO INGLÓRIO [recriação inversa de Glauco Mattoso] Revejo, a sós comigo, o meu fracasso, que pela lei do Além tive por pena. Amarga-me o sabor, e me envenena, das trevas, às quais tantos versos faço. Artífice me torno, e meu espaço não passa do soneto, embora a pena dedique-se ao louvor de quem tem plena visão e me espezinhe a cada passo. Folhagens verdes, flores coloridas destinam-se aos que podem, rindo, vê-las: aqueles cujos pés, num par de Adidas, passeiam-me na língua, enquanto pelas surradas solas sejam as lambidas mais ávidas que um olho a ver estrelas. [6.7] Inúmeros outros exemplos poderiam ser aventados para ilustrar a inexplicável (ou, por outra, facilmente compreensível) popularidade de certos sonetos. Destaco aqui dois casos distintos: o primeiro (Coelho Neto), análogo ao de Arvers ou de Machado, no sentido de que o autor desfrutava de renome em outros campos da literatura e só excepcionalmente se dedicava ao soneto, sendo, portanto, ainda mais fortuito e emblemático o fato de ter produzido uma obra-prima; o segundo (Vinicius), típico caso de sonetismo abundante e de alto nível que, necessariamente, teria que resultar na feliz fama obtida por pelo menos um dentre tantos excelentes poemas líricos. SER MÃE [Coelho Neto] Ser mãe é desdobrar fibra por fibra O coração! Ser mãe é ter no alheio Lábio, que suga, o pedestal do seio, Onde a vida, onde o amor cantando vibra. Ser mãe é ser um anjo que se libra Sobre um berço dormido; é ser anseio, É ser temeridade, é ser receio, É ser força que os males equilibra! Todo o bem que a mãe goza é bem do filho, Espelho em que se mira afortunada, Luz que lhe põe nos olhos novo brilho! Ser mãe é andar chorando num sorriso! Ser mãe é ter um mundo e não ter nada! Ser mãe é padecer num paraíso! SONETO DE FIDELIDADE [Vinicius de Morais] De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. [7.1] Concordo que Cruz Filho, modestamente, manifeste dúvida quanto ao mérito de seu ensaio, mas é óbvio que prestou inestimável serviço aos poetas e esticólogos, filtrando imensa massa de informações desencontradas e dispersas para canalizar sua tese, ainda que pelo viés parnasiano, em claro e bom vernáculo, particularmente em termos brasileiros - o que já é muito, considerando a indigência bibliográfica deste país dito desmemoriado. [7.7] Permito-me discordar de Cruz Filho quanto aos apelos negativos que o século XX teria feito no sentido de desestimular o sonetismo. Acredito, por experiência própria, que tudo quanto ele enumera - guerras devastadoras e genocidas, os revisionismos sócio-culturais, a acelerada evolução (ou involução, dependendo do ponto de vista) dos costumes, os modismos e consumismos cada vez mais descartáveis, as alternativas contraculturais ao progresso tecnológico, a barbárie revestida de modernidade "civilizada", as novas mídias, virtuais e globalizantes - enfim, o mundo contemporâneo, longe de afastar nosso espírito da poesia, em geral, ou do soneto, em particular, representa um desafio ainda mais excitante àquele que cultiva o verso dentro dum molde tradicional, porém capaz de comportar tantas aparentes inovações e transformações, registrando-as tematicamente sem descaracterizar o arcabouço formal do gênero. Eis aí o que, malgrado o pessimismo de Cruz Filho, me serve de motivação pessoal.
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