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Afonso Henriques de Guimarães Filho (Mariana MG 1918-2008)
Não é qualquer poeta que mereceu de Manuel Bandeira um soneto a si
dedicado com tamanho carinho e reconhecimento. O filho do simbolista
capitaliza esta proeza:
A ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
[Manuel Bandeira]
Scorn not the sonnet, disse o inglês. Ouviste
O conselho do poeta e um dia, quando
Mais o espinho pungiu da ausência triste,
O primeiro soneto abriu cantando.
Musa do verso livre, hoje ela insiste
Na imortal forma, da paterna herdando.
Todos em louvor dessa que ora assiste
Em teu lar, dois destinos misturando.
No molde exíguo, onde infinita a mágoa
Humana vem caber, como o universo
A refletir-se numa gota d'água,
Disseste o mal da ausência. E ais e saudades
E vigílias e castas soledades
Choram lágrimas novas no teu verso.
Bandeira não exagerou, pois AG Filho mais que retomou o imaginário
simbolista (e místico) paterno: extrapolou para o surreal, mas sem abrir
mão de metro e rima, no que leva vantagem sobre um Murilo Mendes.
Curiosamente, não é a Bandeira que AG Filho rende tributo (como se
esperaria duma comum troca de confete entre outros poetas que, mais que
confrades, são às vezes compadres), mas a Mário de Andrade, lembrado em
vários sonetos de fino acabamento sobre o seleto ingrediente. Confira-se
abaixo a seleção que faço deste singularíssimo caso de abstração no
materialista e concreto século XX:
MOMENTO Minha amada tão longe! Com franqueza: eu penso sempre em me mudar daqui. Pôr na sacola o pão que está na mesa, sair vagabundando por aí. A luz do quarto ficará acesa. (Foi neste quarto que eu me conheci...) Deixarei um bilhete sobre a mesa, dizendo a minha mãe por que parti. Ah! ir cantando pelo mundo afora, como um boêmio amigo das cantigas, alma febril que a música alivia! Se perguntarem, digam: "Ainda agora saiu buscando terras mais amigas, mas é possível que ele volte um dia." ONDE ESTÁS... Onde estás já não sei. Senti bem perto teu corpo desejado e sempre esquivo. O amor é um sonho tanto mais incerto quanto se faça latejante e vivo. Procuro em mim a estrela e nada vejo. Quando foi que a perdi? Não me lamento. Mas o desejo, a febre do desejo, uiva no vento e se desfaz no vento... Tudo é saudade em mim. Se estendo os braços, não colho o teu silêncio. E estás distante... Mas como em mim não sonhas, como insistes em superar insônias e cansaços e colocar no coração amante coisas da infância, muito embora tristes! DELÍRIO (a Mário de Andrade) Há soalhas tinindo. São pandeiros. Dos céus, dos mares, dos estivadores, chegam canções. E contam que os amores morreram. Até os puros e os primeiros. Serão canções carnavalescas? Cheiros de éter, contorções, risos e cores. Mulheres mortas. Préstitos. Temores. Ventos do norte, ventos companheiros... Há soalhas tinindo. Um enterro passa. Vão sepultar a leve incompreendida. Chocalham risos. Vai cantar alguém. Sufoca a treva. Mata. Amor? Chalaça... Eulália é morta? Eulália está ferida? Falem mais alto, que eu não ouço bem. SONETO DO LÍVIDO NAVIO Em teu bojo de sangue, noite escura, em teu veloz e lívido navio, eis-me a escorrer no ar. Não sei, colhi-o (indisfarçada, ríspida amargura) colhi-o na invisível colgadura bolorenta de morte, no sombrio pouso aflitivo de onde sopra um frio inaugural... e súbito depura solidões torturadas de saudade e as remotas planícies ensopadas de chuva eterna, angústia, desalento... (Ficar ali, à beira da cidade povoada de faces assombradas, ferido, machucado pelo vento!) SONETO DA MORTE Entre pilares podres e pilastras fendidas, te revi subitamente; eras a mesma sombra em que te alastras, feita carícias de uma face ausente. Eras, e me afligias. Tormentosa, vi-te crescer nos muros desabados. Cruel, cruel; contudo, mais saudosa, mais sensível que os céus e os descampados. Bolor, pátina espessa, calmaria, vi-te a sofrer no fundo da cidade como um grande soluço percutindo sobre os olhos, as mãos e a boca fria. E de repente um grito de saudade. Depois a chuva, sem cessar, caindo. SONETO DO SILÊNCIO Fantástico silêncio! Nele existe um clarão momentâneo: e tudo dorme. Ai! que a noite irreal, cega e disforme, ainda o faz mais pungente e amargo e triste! Fantástico silêncio moribundo aos meus olhos aceso como velas que iluminassem becos e vielas pelas cidades pálidas do mundo... Lá o vejo pender, fruto caído, lá o vejo soprar contra muralhas e recobrir silêncio envelhecido o que a noite ocultou, e está perdido... Lá o vejo oscilar nas cordoalhas de algum veleiro desaparecido. O SONETO DA CAPELA DE SANT'ANA Cheguei sem nem saber porque viria. Cheguei cantando em plena madrugada. Por encontrar a porta entrecerrada, cantando entrei. Cantando ficaria, não fosse o Teu silêncio, a mão cansada contendo a claridade fugidia. Senhor, eu nem cuidara de mais nada, com tanta ardência desejara o dia! A capelinha um céu silvestre e vivo dormia no sossego da montanha. E eu que cantava e ria sem motivo, quem é que diz que poderia agora ao ver-Te o olhar ferido e a dor tamanha, deixar-Te aí, Senhor, para ir-me embora! OS CAVALOS DE FOGO A luz dissolve as pedras. E os cavalos de fogo se projetam contra o vento. Lá se vão eles, potros de ar sangrento, por entre os sóis que intentam sufocá-los. Lá se vão eles, potros de ar cinzento, como se a própria luz incendiária lhes desse uma aparência imaginária de cor, de som, de céu em movimento. E então o céu me envolve. Eis que me arrasta o seu raro esplendor, o trepidante fremir de intenso azul. No alto me espera uma forma incorpórea, a visão casta do que fascina e queda agonizante... Campo do amor chamando a primavera. ABRI SUBITAMENTE... Abri subitamente uma janela e vi nascer da sombra uma cidade feita de paz lunar e eternidade. Na cúpula mais alta, na viela entre casas humildes escondida, nas árvores, jardins, em cada muro, pairava uma esperança de um futuro belo demais para esta amarga vida! Abri subitamente uma janela: uma cidade vi que distendia os seus braços de névoa, indecisos, e me ocorreu pensar quem poderia perder-se em seu mistério e, através dela, chegar até remotos paraísos! ELEGIA PARA MÁRIO DE ANDRADE Era doce viver, se a madrugada paulistana molhava as rosas, os milhões de rosas paulistanas... A arraiada afugentando pasmos... Mas, pinhões! que não seria desta vida airada, destes sítios de dor, destes sertões! Havia o mundo, a face ensangüentada do mundo... uivando, uivando nos sulões. Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta, Mário dizia, o coração batendo de amor, de um forte amor insaciado. Mário de humanidade se alimenta. Mário é milhões de corações sofrendo. E um dia o corpo... um sonho inanimado. MÁRIO DE ANDRADE São Paulo, comoção da tua vida, contemplo agora que na noite estão cantando ao longe, e tudo é a despedida irreparável, sem consolação. Macunaíma, o herói, mais a querida Ci, eu os vejo a arder na escuridão. Que estrela é aquela no alto céu perdida? Como ficaste solitário, irmão!... Ah se pudesses contemplar agora as águas tristes, Mário, do sombrio, fraterno Tietê! Delas se eleva uma voz que te busca pela treva e na qual repercute (e o rio chora...) a tua própria voz: "Rio, meu rio!" RAINER MARIA RILKE Por detrás das palavras permanece o indizível... No verbo silenciado o canto, e é no canto iluminado arde o maravilhoso, resplandece que o espírito entrevê (quase) o inefável... Ah no canto existir! Canto-experiência, não sentimento; o canto, eis a existência! E eis que o canto se eleva e no insondável (pura contradição) resplende a rosa... E quando a noite invade uma cidade, a solidão do homem, amarga e forte, com os rios passa... A criatura, ansiosa, um bem suplica a oculta divindade: Morrer, Senhor, de nossa própria morte! SÃO JOÃO DA CRUZ Da noite a solidão sonora invade a alma, e a alma sozinha, companheira do silêncio noturno, é a primeira a penetrar a doce escuridade. Deixem-na ir até onde a calada, silenciosa música se espraia; o vento é manso, a noite é sossegada, o fulgor das estrelas já desmaia. Deixem-na ir, sem ser notada, a casa quieta, o repouso do infinito em tudo que a cerca e docemente é que a domina. Deixem-na ir, pequena, humilde brasa acesa contra a treva e contra o mundo céu de que desce a estranha paz divina. O CEMITÉRIO DORME... O cemitério dorme. É a hora suave em que, quando em sossego meditavas, mitos, visões antigas despertavas, e em teu silêncio, e em tua alma de ave, outra noite mais bela resplendia. Ah os teus sinos, teus sineiros, tuas igrejas, e as amadas que de luas irreais te buscavam! A luz que ardia nos teus olhos de sonho e de lembrança quando, curvado sobre a dor esparsa nos inacessíveis céus que te atraíam, eras talvez não mais que uma criança que procura reter nas mãos ingênuas o sol mãos que o inefável possuíam... BUSQUEI-TE Busquei-te em tudo quanto me fugia e solitário ardeu meu coração; em cada rua e casa e torre não vi mais que o silêncio que fremia na tua sepultura... Onde estaria quem me vestiu de sonho e solidão, e que país remoto habitaria, se agora tudo é morte, e as coisas vão aos poucos se perdendo na neblina da alma? De joelhos, contemplando a noite que circunda o ser, procuro ver-te na grande paz, na paz divina que em cada estrela fica latejando e docemente envolve o mundo escuro. DEPONHO SOBRE O MÁRMORE... Deponho sobre o mármore uma rosa de ausência... Ei-la que resta abandonada, suspensa em bruma, frágil, suspirosa, ela que recebeu da madrugada o sopro genesíaco e floriu em sangue e ardência, musical, fremente; ei-la que resta inerte, transparente, recordando outro mundo em que se abriu para o amor, para o sonho, para tudo que já não tens, na morte debruçado! Ei-la, rosa de ausência e de saudade, pendida sobre o mármore gelado e esperando de um reino escuro e mudo a clara voz que a salve da orfandade... FOI EM SANT'ANA Foi em Sant'Ana... E agora que a Sant'Ana entre coros e louros e entre sinos regressaste, ah! agora que se irmana teu silêncio profundo a esses divinos silêncios que a alma recolhe comovida, e, envolvendo a necrópole, se espraia por todo o vale a paz daquela vida que mais se acende quanto mais desmaia e os corações dissolve em luz difusa, possa acolher-te em seus tranqüilos braços Aquela que é a Mãe da Tua Musa e, ao receber-te para sempre, em mansa contemplação, conduza a outros espaços de ouro e de luz, tua alma de criança... E A CATEDRAL NAS BRUMAS... E a catedral nas brumas aparece com os seus responsos lúgubres... Saudosa visão que é como a "amargurada prece" da alma que o exílio fez mais suspirosa. E, "Pobre Alphonsus!", no meu peito ecoa o seu lamento... E os sinos acordados arrastam-me na treva, e os sufocados prantos do amor, e a dor do que ressoa além da vida, num momento apenas vibram na estranha catedral suspensa, e eu me deixo levar espaço em fora ouvindo o som longínquo das serenas asas que anjos distendem pela densa névoa que oculta o resplendor da aurora. CEMITÉRIO DE PESCADORES (I) Este é um cemitério de pescadores. Onde ficaram as grandes redes? E as varas de pesca? E as [pobres jangadas? De malha deveriam ser as suas flores, os singelos ornatos... E as negras, desoladas cruzes, da madeira dos barcos... Os rústicos pastores do mar, os rudes irmãos das madrugadas, deitaram-se no chão, esqueceram os amores e os pânicos, as alegrias insuspeitadas que o mar oculta... Este vento que geme, este vento não uivará para embalá-los? De mãos atadas, de ouvidos tapados, que lembrarão? Cercam-nos as eternas paredes do silêncio, mas eles deverão estar, neste momento, em outro mar, procurando os cardumes perdidos, e armando, à luz de outro sol, as suas velhas redes... CEMITÉRIO DE PESCADORES (XVII) Mas a vida é que estua pelas praias... Nas grandes castanheiras o sol arde. E ninguém sabe se serão da tarde (ou do sonho dos homens) essas vagas, tristes cintilações que o céu despede. Nas grandes castanheiras o sol freme e o mar que ruge ao longe, o mar que geme, que mistura ternuras, rudes pragas, o mar como que quer ressuscitá-los, como que quer de novo arrebatá-los ao minuto de assombro que antecede a morte, a solidão final... O mar desfaz-se em mil acenos, a chamá-los, como se acaso fossem regressar... SONETO DOS QUARENT'ANOS Não me ficou da vida mágoa alguma de que possa lembrar aos quarent'anos senão esses cansados desenganos que o mar que trouxe leva como espuma. Foram-se os anos, mas que são os anos? Chama que em sombra esfaz-se, apenas bruma. As horas que eu vivi, de uma em uma, deixaram sonhos e deixaram danos. Muita morte passou n'alma ferida: meu pai e meus irmãos, mortos amados. Mas pela minha vida passou vida, passou amor também, passou carinho. E pelos dias claros ou magoados não fui feliz e nem sofri sozinho. QUANDO EU DISSER ADEUS... Quando eu disser adeus, amor, não diga adeus também, mas sim um "até breve"; para que aquele que se afasta leve uma esperança ao menos na fadiga da grande, inconsolável despedida... Quando eu disser adeus, amor, segrede um "até mais" que ainda ilumine a vida que no arquejo final vacila e cede. Quando eu disser adeus, quando eu disser adeus, mas um adeus já derradeiro, que a tua voz me possa convencer de que apenas eu parti primeiro, que em breve irás, que nunca outra mulher amou de amor mais puro e verdadeiro. SONETO PREMONITÓRIO Sobre este plano, liso chão, me deito à maneira dos mortos. Que arrepio... Que sensação estranha de outro frio, como uma unha, me escalavra o peito... Me deito aqui, no liso chão, e espreito... Guardam as coisas, que do chão espio crescerem para mim, num desafio, não sei que grave gesto insatisfeito... Tanto me habituei a estar comigo que ir-me embora de mim me causa pena. No liso chão deitado o corpo sente um sossego de estar de estar somente coisa que à grande inércia se condena, pedra, talvez, de algum túmulo antigo...
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |