Ao longo de nossa história literária o soneto tem sido usado, com vantagem, para exercer a mesma função epigramática da trova ou da glosa decimal. Tanto na sátira política quanto na crônica de costumes ou na caricatura pessoal, o soneto é espaço mais propício ao retoque de um retrato psicológico ou social, no qual se patenteie simultaneamente a perícia do fotógrafo. Quem assina o flagrante pode não ser poeta consagrado; pode até ser consagrado noutro departamento intelectual: mas o potencial crítico dum soneto certeiro terá validade permanente. Desnecessário lembrar que, apesar de ter sua relevância subestimada pela análise literária dita "séria", o gênero satírico é intrínseco à poesia desde seus primórdios. Basta citar, no caso brasileiro, Gregório de Matos, a cujo verbete remeto o leitor. Neste espaço juntei alguns exemplos de sonetos satíricos além daqueles que se encontram nos verbetes mais renomados, como os do próprio Gregório, de Emílio de Meneses ou de Juó Bananére. [GM] Sobre o parlamentarismo do império, versejou o padre Correia de Almeida: A DANÇA DOS PARTIDOS Os dous estragadíssimos partidos Ocupam a seu turno a governança; E nós imos vivendo da esperança De ver os nossos males combatidos. Os quinhões são de novo repartidos, Toda vez que se dá qualquer mudança, Se aquele outrora encheu, este enche a pança E os clamores do povo são latidos. Se as velhas leis têm sido violadas, Estando nossas crenças abaladas, Novas leis não darão melhores normas. Palavras eu não sei se adubam sopa, Mas a fala do trono é que não poupa Reformas e reformas e reformas. Sobre iguais vícios na república, versejou o pernambucano Bastos Tigre: REFORMA DO ENSINO Mal o Congresso arranja uma reforma Da Instrução malsinada e miseranda, Outra já se prepara; e desta forma Ela de Herodes a Pilatos anda. Da mania reinante segue a norma (Pois que da glória os píncaros demanda) E de um grande projeto o esboço forma O fecundo doutor Passos Miranda. A nova lei ordena que os pequenos Trilhem com aplicação e com cuidado Seis anos de científicos terrenos. Um parágrafo seja acrescentado: O saber ler é obrigatório; a menos Que o rapaz se destine a deputado... Sobre a (sempre) mesma república, versejou o mesmo Bastos Tigre: ESTA REPÚBLICA É certo que a República vai torta; Ninguém nega a duríssima verdade. Da pátria o seio a corrupção invade E a lei, de há muito tempo, é letra morta. A quem sinta altivez, força e vontade Ficou trancada do Poder a porta: Mas felizmente a vida nos conforta De esperança, uma dúbia claridade. Porque (ninguém se iluda), "isto" que assim A pobre Pátria fere, ultraja e explora, Jamais o sonho foi de Benjamin. Os motivos do mal não são mistério: É que a gentinha que governa agora É o rebotalho que sobrou do Império. Sobre a carreira política, versejou o "rouxinol mineiro" Belmiro Braga: PROPAGANDA ELEITORAL Meu caro Coronel Martins Ferreira, Candidato extrachapa a deputado Ao congresso da Câmara Mineira, Desejo ser aí o mais votado. A minha fé de ofício é de primeira. Vale por um programa o meu passado, E no congresso não direi asneira Todas as vezes... que ficar calado. Fui caixeiro, depois fui negociante, E do torrão natal, representante, Agora aspiro a ser como escrivão; E, eleito, espero, mas que maravilha! Ser pai da Pátria e receber da filha Todo o subsídio, quer trabalhe ou não... Sobre as composições políticas, versejou o jornalista baiano Aloísio de Carvalho: ADESÃO Eu adiro, tu aderes, ele adere. Todos nós aderimos prontamente, A questão é ficar comodamente, Sem perder os proventos que se aufere. O que se fez, 'stá feito. Derramar Sangue, por causa disto, é insensatez, Desde que, pra mostrarmos altivez, Basta a prosa da sala do jantar. Quem tem mulher e filhos, meu amigo, Não ser prejudicado ao mais prefere. Vir pra rua brigar não é consigo; Em conflitos assim não interfere; Por isso, nos momentos de perigo, Eu adiro, tu aderes, ele adere. Sobre novas e velhas demagogias, versejou o paulista Lisindo Coppoli: SOCIOLOGIA Resolvido a lutar contra a indigência, Hoje, cheio de nobres intenções, Cuida o governo das populações Com a sociologia, a nova ciência. SESC, SENAI, seguro, previdência E muitas outras boas instituições São, em nosso país, inovações Que ao povo suavizam a existência. Nada disso existia antigamente; O pobre era animal desprotegido: Trabalhava e comia, unicamente. Hoje em dia é outra coisa! Não se come. Mas existe o sociólogo incumbido De estudar e medir a nossa fome. Sobre um playboy da época, versejou o romancista Aluísio Azevedo: LEÃO PACHOLA Hipérbole fatal de nossos dias, Arremedo de um "quê", que não é nada, Bagatela do tom, moço pomada, Eterno prosa das confeitarias; Ceando na Ravot comidas frias; Vestindo ao Raunier roupa fiada; "Pince-nez" de uma cor sempre azulada; Entre os dentes charutos "Regalias"; Francês notado em trato e pedantismo, E secas em francês sempre que amola; Não é homem, não, é galicismo. Eis o tipo fiel d'alta bitola! Que se sustenta co'o maior cinismo Da rua do Ouvidor leão pachola. Sobre outro playboy, versejou o comediógrafo Artur Azevedo: TERTULIANO, O PASPALHÃO Tertuliano, frívolo peralta, Que foi um paspalhão desde fedelho, Tipo incapaz de ouvir um bom conselho, Tipo que, morto, não faria falta; Lá um dia deixou de andar à malta E, indo à casa do pai, honrado velho, A sós na sala, diante de um espelho, À própria imagem disse em voz bem alta: Tertuliano, és um rapaz formoso! És simpático, és rico, és talentoso! Que mais no mundo se te faz preciso? Penetrando na sala, o pai sisudo, Que por trás da cortina ouvira tudo, Severamente respondeu: Juízo! Sobre um colega playboy na faculdade, versejou o advogado gaúcho Joinvile Barcelos: BENEDITO SALGADO Vai às aulas e às feiras, lê, patina, Namora, odeia os militares. Tersos Os seus sonetos, nos jornais dispersos, João dos Anzóis "pomposamente" assina. Ama o truco, o bilhar, jogos diversos. Ah! Viver no "xadrez" (que bela sina!!), Tendo ao lado uma cândida menina, Bons patins, bons autores e bons versos. Vive alheio aos jurídicos assuntos. Provas de exame nós "colamos" juntos, Eis por que ainda não levamos pau. Prega aos caloiros tímidos na Escola: "Não tenham medo, aqui tudo se 'cola', 'Cola-se' até solenemente o grau!" Sobre um colega de alta estatura na faculdade de direito de São Paulo, versejou o paraense Tapajós Gomes: AMADOR COBRA Este "enorme colega" (assim define-o Outro colega, espirituosamente), Não garanto, mas deve ser parente Dalgum poste da Light, consangüíneo. É professor e aluno juntamente, Tem prática, traquejo, raciocínio, E onde quer que ele esteja tem domínio Só pela altura... que faz medo à gente. É muito alto, demais, o nosso Cobra E embora assim comprido, ele não dobra Apesar, meus leitores, dos pesares... Isto de altura é coisa que acontece, Mas o Cobra, palavra que parece Um sobrado de três ou quatro andares! Sobre um jornalista influente, versejou a poetisa carioca que se assinava Álvaro Armando: HERBERT MOSES Pequenino. Apelidam-no "mosquito". Não perde coquetel ou festa de arte. Anda aos pulinhos, como periquito, E pula, ao mesmo tempo, em toda parte! Não há banquete em que, com qualquer fito Ou sem nenhum, não diga o seu aparte. E discursos faria, ao infinito, Se um turista chegasse, lá de Marte! Aos jornalistas tudo acerta, ajeita. Se da ABI na doce presidência Hábil e sutilmente se grudou, A própria oposição bem o respeita, Pois tem que se curvar ante a evidência: Até o Getúlio foi e... ele ficou. Sobre um jornalista venal, versejou o bruxo gaúcho Múcio Teixeira: O GIRAFA Borrar papel, Girafa!, é teu fadário, Contra a honra de toda a gente séria; Oh! alma pustulenta e deletéria... Oh! ente nauseabundo e salafrário! Ontem... entre os rebeldes, mercenário, Hoje... parece mesmo uma pilhéria! Qual vende o leito crapulosa Impéria, A pena alugas por qualquer salário. Jornaleiro metido a jornalista, Dos vícios teus a criminosa lista Verás aqui... e para além te empurro! Por andares na berra, estás na barra; Pois hoje a Musa em teu focinho escarra, "Doutor na asneira, na ciência burro!" Sobre um gordo pedante, versejou o jornalista paulista Moacir Piza: O CARTOLA (a Cardoso de Almeida) Pança, asneira, bazófia, parolice; Parolice, bazófia, asneira, pança: Eis o que revelou desde criança, E o que há de revelar até a velhice. É um realejo, que jamais descansa, A remoer sempre o que Leroy já disse. Ninguém, a um tempo, faz tanta tolice; Ninguém tanta tolice a um tempo avança! Pingue de enxúndias mas de miolos pecos, Lembra, na linha, o Conselheiro Acácio, Superando, em idéias, cem Pachecos! Nunca um raio de luz lhe entrou na bola. Pensa o leitor que pinto algum pascácio? Engana-se, leitor, pinto o Cartola. Sobre os rapazes em geral, versejou o mineiro Djalma Andrade: FRUTO PROIBIDO Eva não culpo, não, por ter comido O fruto, nem Adão por imitá-la: O gozo pelos dois no Éden fruído Vale o castigo de que a Bíblia fala. Na escala do prazer, pequena escala, Inda é o melhor o fruto proibido. O gosto da maçã foi diminuído; Ah, pudesse hoje Adão saboreá-la! Hoje os Adões têm gosto requintado E os frutos sempre, espertalhões, preferem Tê-los sem risco e sem nenhum cuidado. Da longa prática o saber lhes veio Que o fruto é bem melhor, se verde, e o querem Sempre colhido no pomar alheio. Sobre uma mulher banguela, versejou o historiador Rocha Pita: SONETO DA DESDENTADA Pondero a emudecida formosura De Fílis sem temer que impertinente Possa no meu soneto meter dente Pois carece de toda a dentadura. Se por cobrir a falta esta escultura Tão muda está que não parece gente, Estátua de jardim será somente Se de pano de rás não for figura. O senhor secretário quer que a creia Bela sem dentes, eu lho não concedo; Desdentada é pior do que ser feia; E em silêncio só pode causar medo, Ser relógio de sol para uma aldeia, Para um povo estafermo de segredo. Sobre uma mulher magra, versejou o maranhense Franco de Sá: A ESBELTA A "Esbelta", o alvo dos suspiros nossos, É fada vaporosa, é flor das flores; Em vez de carne, vestem-na vapores, É leve a rapariga, só tem ossos. Os caniços do lago são mais grossos Que as canelas gentis dos meus amores; Tem nas lindas bochechas menos cores Que a seca múmia quando sai dos fossos. Ah! ditoso mancebo, eu te prometo Que se hoje, noivo, trêmulo, desmaias, Beijando a anágua que lhe encobre o espeto, Talvez, quando marido, morto caias Vendo surgir o pálido esqueleto Da espessa nuvem de umas oito saias. Sobre uma mulher gorda, versejou o gaúcho Rubens Pedroso: TODA E QUALQUER SEMELHANÇA... Descomunal, vastíssima senhora, Imensamente gorda. Ela é feliz Chacoalhando essa banha a toda hora, Metendo em toda parte o seu nariz. Mesmo gorda, é uma "fina" salafrária: Sabe mentir como poucas ante um juiz. E é cínica, é safada e ordinária, E mais coisas, talvez... que não se diz. Monumento de enxúndia e de rancor, De veneno e maldade inchada está. Não é mulher, é um monstro, é um horror. E na cova, onde um dia ficará, Até o mais faminto verme roedor Sua gordura com nojo deixará. Sobre uma mulher difícil, versejou o pernambucano Medeiros e Albuquerque: SÓ A MORTE... "Se me desdenhas, sinto que faleço, De nada mais pode servir-me a vida; De ti e só de ti me vem, querida, Todo o alento vital de que careço. Só a morte é possível, se perdida Eu vir tua afeição. Nenhum apreço Darei a tudo mais, se o que mereço É teu desprezo, em paga à minha lida." Ela não respondeu... Por fim, notando Que contra a sorte é inútil que se teime Resolvi não morrer. E tão tranqüilos Foram os meus dias, que eu me rio quando Penso no que ontem vi: ontem pesei-me E achei, num mês, que eu engordei três quilos! Sobre outra mulher difícil, versejou o sergipano Hermes Fontes: A PULGA Um sinalzinho preto em teu colo de neve: Examino se é próprio, ou fingido a nanquim... Mas o pontinho escuro anima-se; e, ágil, breve, Salta aqui, salta ali e vem pousar em mim. Sinto-o no corpo: o inseto, a mais e mais se atreve. Põe-me um ardor de urtiga em cada poro, e, assim, Fervo e salto, eu também... Ao seu contacto, leve, A epiderme é um incêndio, o sangue é um torvelim. É uma pulga! Tirou-me o bom humor e o agrado! Serena perfeição em que a gente se julga, Morre num sopro: é grão de pó, miga qualquer... Quanto orgulho se tem despido e desmanchado, Por um nada, um nadinha, uma pulga!? É que a pulga Em astúcia é igual à raposa e à mulher... Sobre outra mulher difícil, versejou o paulista Vicente de Carvalho: INTEIRAMENTE LOUCO Senhora minha, pois que tão senhora Sois, e tão pouco minha, eu bem entendo Que sorrindo negais quanto, gemendo, Amor com os olhos rasos d'água implora. Meu coração, coitado, não ignora Que num sonho bem vão todo o dispendo E é sem destino que assim vai correndo Cansadamente pela vida afora. Dizeis do meu amor que é coisa absurda, E ele, teimando, faz ouvido mouco; Nem há razão que o desvaneça ou aturda. Não o escutais? Nem ele a vós tampouco. Que, se sois surda, inteiramente surda, Amor é louco, inteiramente louco. Sobre uma mulher fácil, versejou o pernambucano Olegário Mariano: OS TRÊS REIS MAGROS Amas a três peraltas. Dividida Tua alma é deles. Cada qual pior. Andam-se engalfinhando toda a vida... Gaspar e Baltasar e Melchior. Este joga "foot-ball". É um rei do "sport", Difícil de levar-se de vencida. Aquele tem uma barata Ford. E o outro é um bate-calçadas da Avenida. Isso é um nunca acabar! De luta em luta, De mentira em mentira, esperta e astuta, Vais a vida levando... Mas bem vês: Tornas teus dias cada vez mais agros E, dando o coração aos três reis magros, Ficas mais magra do que todos três. Sobre as mulheres em geral, versejou o peruano Mariano Melgar, em tradução registrada por Idel Becker, aqui retocada: PARA QUE SERVE A MULHER? Não nasceu a mulher para querida, Por esquiva, por falsa, por mudável; E como é bela, fraca, miserável, Não nasceu para ser aborrecida. Não nasceu p'ra que seja submetida, Visto ser de caráter indomável; Como a prudência é nela inevitável, Não nasceu para ser obedecida. Como é fraca, não pode ser solteira; Como é infiel, não pode ser casada; Mudável, não é fácil que bem queira. Não sendo para amar, nem ser amada, Nem p'ra vassala, nem para primeira, Não serve, finalmente, para nada. Sobre um professor da Politécnica, versejou o paulista Moacir Piza: O BOTELHO Alto, ossudo, feioso; bigodeira Farta, cobrindo a boca desdentada, Onde fizeram túmulo, ou morada, O Despropósito, a Tolice e a Asneira. Cara de esbirro, amarelenta, ornada De chato narigão, que tudo cheira; Mole pelanca, à guisa de papeira; Cabeça de urubu, cheia de... nada. Olhar inexpressivo; gesto brusco; Pirrônico, turrão, todo arrelia; Rindo, apavorador; sério, patusco. Eis o que refletira um bom espelho, Se diante dele se postasse um dia O papão da Estatística o Botelho. Sobre o diretor da mesma faculdade, versejou o mesmo Piza: ABÓBADA MAL FEITA (a Paula Souza) Morreu, subiu ao céu, bateu à porta, Mas, súbito, recuou, desconfiado. Um arco disse. Sem delonga, importa Averiguar se foi bem calculado. A curva das pressões lá me sai torta! Este núcleo central, acachapado! E o momento de inércia mal suporta A metade do esforço concentrado! Nisto Pedro, o chaveiro sorumbático, Vem abrir, e lhe diz: "Entra, simpático." "Muito obrigado, que de cá me escacho! Não entro nessa abóbada indecente, Nem que me partas." E, imediatamente, Precipitou-se pelo azul abaixo... Sobre as vaidades humanas, versejou o jornalista potiguar Damasceno Bezerra: TUDO É MERDA... O mundo é simplesmente merda pura, E a própria vida é merda engarrafada; Em tudo vive a merda derramada, Quer seja misturada ou sem mistura. É merda o mal, o bem merda em tintura, A glória é merda apenas e mais nada. A honra é merda e merda bem cagada; É merda o amor, é merda a formosura. É merda e merda rala a inteligência! De merda viva é feita a consciência, É merda o coração, merda o saber. Feita de merda é toda a humanidade, E tanta merda a pobre terra invade, Que um soneto de merda eu quis fazer... Sobre vaidades ilusórias, versejou o paulista Amadeu Amaral: UM FIDALGO NA NEBLINA Uma noite, a vagar entre a neblina, Enxergo um vulto sobranceiro e nobre, Que de um gabão romântico se cobre E sob um largo feltro a testa empina. Nem a chuva a cair faz que se dobre, Nem à rajada mais cruel se inclina. Avanço; e, no halo de um lampião de esquina, Vejo de perto meu fidalgo: é um pobre... Dou-lhe uma esmola e sigo. Continua Pisando a lama parda o Cavaleiro, Na praça morta, sob o céu sem lua... E eis como um triste, amargado e esquivo, Com um pouco de distância e de nevoeiro, Pode passar por um fidalgo altivo. Sobre as vaidades alimentares civilizadas, versejou o absurdista paraibano Zé Limeira: PERFUME DE FLOR Um urubu voava pelo espaço Buscando uma carniça "petrefata". Engasgado com casca de batata, Vomitou na cabeça de um cabaço. E depois, lentamente, passo a passo, Ele disse: "Essa vida é tão ingrata! Pois viver lá por cima é cousa chata! Vou dormir sobre as grades dum terraço!" Diz o povo que o espaço é cousa rica, Mas quem vai para lá, por lá não fica E o diabo é quem vai, só corta jaca! Ao findar a conversa foi descendo; Logo cedo um rapaz o viu comendo Merda seca na ponta duma estaca. Sobre vaidades vanguardistas, versejou o paulista Lisindo Coppoli: ARTE MODERNA (a propósito da I Bienal, em 1951) Leonardo?!... Rafael?!... Tenham paciência! Tudo isso não passa de bobagem. Dom Ciccillo andou bem: teve a coragem De acabar de uma vez co'a decadência. A pintura moderna é arte e ciência Das mais sublimes, pois não tendo imagem Nem natureza morta nem paisagem, Mais que aos sentidos, fala à inteligência. E convém dizer isso: uma obra-prima Das mais modernas fica muito acima Das antigas por mais esta razão: Que, sendo um quadro, p'ra gozar-lhe o efeito Pode-se pendurar de todo jeito: É a mesma coisa em qualquer posição. Sobre as efêmeras vaidades homossexuais, versejou o mexicano Salvador Novo, traduzido por Glauco Mattoso: [SONETO DO REENCONTRO] Voltamos a nos ver. Tenso, me assanho. sonhei tanto encontrar-te em meu caminho, de novo entre teus braços ter carinho! "Não queres, dono meu, tomar um banho?" Achamos, um ao outro, um tanto estranho: tu gordo, eu magro. Mundo mais mesquinho! Ao menos me consola um bocadinho que há coisas que não mudam de tamanho! Te quero como outrora te queria: com dor, com avidez, com amargura, tal como fosse o século um só dia. Tentei retribuir tua ternura: "Levanta a barriguinha, que eu queria tomar água e tirar a dentadura!" Sobre o ponto onde as vaidades se anulam, versejou quem se escondia sob a pena de Souto de Magalhães: VIDA PRIVADA Cigarro aceso, o fumo em espirais Formando vai a nuvem azulina. O cabra, sobraçando alguns jornais, Arria a calça e senta na latrina. Enquanto caga, lê os editais, Notícias, telegramas, a mofina, Lê depois os anúncios garrafais, E peida, com saudade da menina. A coisa aperta um pouco, apavorante. Uma careta faz, franze o semblante, E sai um cagalhão que ao cu faz mágoa! Está tudo acabado. Ele suspira, A ponta do cigarro fora atira, Levanta, limpa o rabo, e puxa a água. Sobre o mote "E não pôde negar ser meu parente", glosou o mulato Luís Gama: FIDALGO DE CASTA AMORENADA "Sou nobre, e de linhagem sublimada. Descendo em linha reta dos Pegados, Cuja lança feroz, desbaratados, Fez tremer os guerreiros da Cruzada! Minha mãe, que é de proa alcantilada, Vem da raça dos Reis mais afamados" Blasonava entre um bando de pasmados Certo parvo de casta "amorenada". Eis que brada um peralta retumbante: "Teu avô, que de cor era latente, Teve um neto mulato e mui pedante!" Irrita-se o fidalgo qual demente, Trescala a vil catinga nauseante, E não pôde negar ser meu parente! Sobre o futurismo representado por Graça Aranha, versejou o filólogo Carlos de Laet, a propósito duma conspiração abortada (segundo Idel Becker, Graça Aranha enviara a São Paulo um telegrama cifrado, anunciando o imediato estouro dum movimento revolucionário. Dizia o telegrama: "Tumor mole virá a furo esta noite". A polícia traduziu corretamente; e prendeu o Graça Aranha. Laet comentou, então: "O Aranha publicou um livro simbólico, CANAÃ, que ninguém compreendeu... Agora faz um telegrama secreto, que todo o mundo decifrou. Obscuro, quando quer a claridade; diáfano, quando busca o mistério. Que estilista!"): SONETO FUTURISTA Noite. Calor. Concerto nos telhados. Cubos esferoidais. Gatas e gatos. Vênus. Graças. Aranhas. Carrapatos. Melindrosas. Poetas assanhados. Rabanetes azuis. Sóis encarnados. Comida no alguidar. Cuspo nos pratos. Três rondas a cavalo. Mil boatos. Prosa sesquipedal. Tropos safados. Avenida deserta. Bondes. Grama. Chopes Fidalga. Leite. Pão de ló. Carros de irrigação. Salpicos. Lama. Vacas magras. Esfinge. Triste. Só. Tumor mole. São Paulo. Telegrama. Dois secretas. Cubismo. Xilindró. Sobre um vereador turrão, versejou o jornalista Moacir Piza, a propósito da homenagem a Emílio de Meneses (segundo Idel Becker, dois dias depois da morte do poeta, em 1918, na Câmara Municipal paulistana o vereador José Piedade propunha que se desse a uma rua da cidade o nome do famoso boêmio. Só houve uma voz e um voto contra: do vereador Joaquim Marra. Isto provocou encarniçado ataque por parte de Moacir Piza, numa série de implacáveis sonetos "Marradas"): MARRADAS Corre, Piedade, a socorrer o Marra: Eia! rápido, as gâmbias desemperra E arrima-o, rijo, nesta rude guerra, Em que, a marrar, do rumo se desgarra. Tu, que o roubaste à cômoda mamparra, Em que vivia e por que agora berra, Faz que a minhoca volva, enfim, à terra E que o asno se reintegre na almanjarra. Corre, Piedade! Sebo às pernas! Irra! Deixa, presto, esses ares de pachorra E impõe silêncio ao bodarrão, que espirra. Corre... mas antes que o Catão de borra Volte a visitar-nos com tamanha birra E, noutro ataque de burrice, morra. Também os monstros sagrados da poesia, em seu apogeu formal, não se pejaram de cultivar a veia, ainda que recorrendo às vezes ao pseudônimo. Bilac se juntou a Alberto de Oliveira e Pedro Tavares Júnior para, sob o pseudônimo coletivo de Ângelo Bitu, alfinetar políticos da época, como Alberto Torres (que governava o estado do Rio), o qual, apelidado de Conselheiro Acácio por seu pedantismo, fez jus a um livro intitulado LIRA ACACIANA, do qual vai amostra: BOM SENSO Quando, saindo do recolhimento, Ele solta a palavra alta e segura: "Oh! que bom senso!" a multidão murmura; E o pai diz assombrado: "Que talento!" Farmacêutico Homais na compostura, Simão de Mântua no merecimento, Esse moço precoce é o ornamento, É a honra e a glória da magistratura... Não houve nunca no vetusto Lácio Bom senso assim... Oh! que juízo imenso! Não é um homem: é um cartapácio! E, ouvindo-o e vendo-o, deslumbrado penso: "Este assombroso Conselheiro Acácio Morre um dia de excesso de bom senso!" Outro alvo das farpas de Bilac foi o clima das repartições policiais: EM CUSTÓDIA Quatro prisões, quatro interrogatórios... Há três anos que as solas dos sapatos Gasto, a correr de Herodes a Pilatos, Como Cristo, por todos os pretórios! Pulgas, baratas, percevejos, ratos... Caras sinistras de espiões notórios... Fedor de escarradeiras e mitórios... Catinga de secretas e mulatos... Para tantas prisões é curta a vida! Ó Dutra! Ó Melo! Ó Valadão! Ó Diabo! Vinde salvar-me! Vinde em meu socorro! Livrai-me desta fama imerecida, Fama de Ravachol, que arrasto ao rabo, Como uma lata ao rabo de um cachorro! Alberto de Oliveira disputou com Bilac não só o título de príncipe dos poetas como de rei da porrada, a julgar por este exemplo nocauteante: TALENTO E ORELHAS E inda há quem creia que é talento aquilo! Aquele dedo erguido e falar lento, Aquele olhar como de sonolento, E o todo acacial, grave e tranqüilo... Talento! mas, então, também no Nilo Força é dizer que havia esse talento, Quando o "gesto impudico" em meigo acento Frisou da Vênus, quero crer, do Nilo! Para esvurmá-la, como a vis bostelas, Nas mãos do meu amigo, o "Saca-muelas", As mensagens do Acácio, um dia empurro; E ele há de vos mostrar, claro e evidente, Que quem tais coisas faz é, certamente, Um néscio, um tolo, um parvo, um zote, um burro! Outro que descia do pedestal solene e, embora tímido, não perdia chance duma molecagem verbal era Raimundo Correia. Numa roda de poetas, lançou desafio a Lopes Cardoso e, como não fosse tão bom de trocadilho quanto era exímio sonetista, teve de engolir a presença de espírito do colega: À MESA DA GAZETILHA [desafio de Correia a Lopes Cardoso] O Maia, o Ramos, o Cardoso, o Lemos E eu da mesa em redor estamos; E vários livros sobre vários ramos Da ciência, em frente, sobre a mesa, temos. Mas livros tão insípidos não lemos Nós: eu, Lemos, Cardoso, Maia e Ramos; Porquanto às letras só nos dedicamos E só às letras nos dedicaremos. Prosa-se. Ramos diz: "Como é grandioso Um poema!" Lemos diz: "Nada há que atraia Mais que um fino dito espirituoso!" "Mas eu prefiro um 'calembour'!" (diz o Maia) Desmaia! É tua vez, Lopes Cardoso! Tens a palavra! O 'calembour' que saia! RESPOSTA DE LOPES CARDOSO Eu e o Lemos, e o Raimundo, o Ramos... Urramos? Isso não! apenas lemos Lemos (o João de), que em frente temos, E os seus versos piegas criticamos. D'estrofe em estrofe, a chalaçar, erramos, E Ramos, o Raimundo, o próprio Lemos... São o diabo! uns verdadeiros demos, Com cujos ditos gargalhadas damos! Quanto deles o espírito eu invejo! São inacompanháveis no gracejo, Na pilhéria sutil, no calemburgo! Eles, nas suas frases põem a gala Da fina graça, que na Corte cala, Eu, na chalaça, que só cala em burgo! Outras investidas de Raimundo Correia no departamento da sátira resultaram nos sonetos abaixo. Sobre a "garota de Ipanema" do momento, versejou: HÓS! E AIS! Há um certo Demócrito que chora Vendo-a e há muito poeta que se enleia; E um, cujo nome não me vem à idéia, Vive a rondar a casa em que ela mora. Até o santo apóstolo anda fora De si e do jornal, pela sereia: Adorou-a o Fontoura, eu adorei-a, E o Filinto de Almeida inda hoje a adora. Quando ela passa, abre o Silvestre a boca E o Luís suspira as formas dela vendo Amplas, redondas, fartas, sensuais. Hós de espanto e ais de dor ela provoca, Mas entre os ais e os hós passa, fazendo Tanto caso dos hós como dos ais. Sobre a moral familiar, versejou: FIM DE COMÉDIA O pano sobe, e o povo, satisfeito, Aplaude a farsa, e ao riso não resiste; "Gosta um moço da filha de um sujeito, E este não quer que a filha case; ao triste No fundo do jardim promete a amante Um 'rendez-vous', longe do pai tirano; Mas pilha o velho o escândalo flagrante, E ambos vão casar-se... e cai o pano." Dizem os velhos que o teatro ensina. Então tu podes, sem pesar, menina, Seguir este conselho: solta a rédea Deste amor, que é o meu e o teu tormento, Que há de a nossa comédia em casamento, Findar, como finda a tal comédia. Sobre um jovem vaidoso e narigudo, versejou: NO SALÃO DO CONDE É noite. Muita luz. Salão repleto De gente... "Ó gentes! Pois ninguém recita? Recite alguma coisa, seu Barreto!", A voz do conde entre outras vozes grita. Este Barreto é um moço de bonita Cara, suíças e bigode preto. Quanto ao nariz... se eu falo, ele se irrita; Nem cabe tal nariz em tal soneto! É alto; ama o pão mole e o verso duro, Já um braço quebrou saltando um muro; Sofre do peito e faz canções à lua. Soa o piano. Sua o bardo. A fria Mão leva à testa; tosse e principia: "Era no outono, quando a imagem tua..." Para concluir, sobre a vacuidade das linguagens (falada, escrita ou poetada), versejaram, por exemplo, os bestialogistas abaixo, inclusive este que subscreve a seleta: SONETO ANACRÔNICO [Bernardo Guimarães] Eu vi dos polos o gigante alado, Sobre um montão de pálidos coriscos, Sem fazer caso dos bulcões ariscos, Devorando em silêncio a mão do fado! Quatro fatias de tufão gelado Figuravam na mesa entre os petiscos; E, envolto em crepe de fatais rabiscos, Campeava um sofisma ensangüentado! "Quem és, que assim me cercas de episódios?" Lhe perguntei, com voz de silogismo, Brandindo um facho de trovões serôdios. "Eu sou me disse aquele anacronismo, Que a vil caterva de sulfúreos ódios Nas trevas sepultei de um solecismo..." SONETO [Millôr Fernandes] Penicilina puma de casapopéias Que vais peniça cataramascuma Se partes carmo tu que esperepéias Já crima volta pinda cataruma. Estando instinto catalomascoso Sem ter mavorte fide lastimina És todavia piso de horroroso E eu reclamo Pina! Pina! Pina! Casa por fim, morre peridimaco Martume ezole, ezole martumar Que tu pára enfim é mesmo um taco. E se rabela capa de casar Estrumenente siba postguerra Enfim irá, enfim irá pra serra. SONETO 174 BESTIALÓGICO [Glauco Mattoso] Senhoras e senhores; caros caras: Causar-vos-ia mal meu privilégio de protagonizar o espicilégio por entre poesias tão preclaras? Não, colendos colegas tabajaras! Fui prócer proclamado no colégio! Insólito não seja o sortilégio de haver estro sublime em minhas taras! Só quem detém desdém maledicente verá nos meus poemas despautério! Os outros me honrarão, logicamente! Meu único e supremo desidério, inconstitucionalissimamente, indubitavelmente, é não ser sério! SONETO 343 CACOÉPICO [Glauco Mattoso] É má cacofonia "heróico brado", que faz o nosso hino ser por cada macaco no seu galho de piada motivo, mito presto profanado. Galhofo quando grafo "deputado", um réu por cuja mãe a pátria brada e cuja nota tem que amar melada a puta que a recebe de ordenado. Por ti gela meu pinto, e por ti são meus bagos esmagados qual sardinha, ó língua de tão baixo palavrão! Dos cacos que cuspi, calou Caminha. A mim toca, contudo, uma questão: Se já Camões fez caca em "Alma minha"... O SONETO SATÍRICO
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