WILLIAM BURROUGHS (1914 - 1997)


Burroughs,
o fora-da-lei da
literatura


 

         William S. Burroughs, que faleceu no início de agosto de 97 em Lawrence, Kansas, aos 83 anos, foi o grande fora-da-lei da literatura contemporânea. Pela importância e radicalidade, sua obra pode ser colocada ao lado da de escritores como John Barth, Samuel Beckett, Henry Miller, Céline, Doctorow e Thomas Pynchon. Norman Mailer o considerava um gênio. John Updike, "um escritor incorruptível". Já seu companheiro de geração Beat, Jack Kerouac, afirmava que Burroughs era o maior escritor satírico desde Jonathan Swift. A opinião de Kerouac parece indicar o ponto de vista adequado para entendermos sua obra. O próprio escritor relativizava com humor sua fama literária: anos atrás, perguntado sobre como se sentia ao ter sido condecorado com a Comenda das Artes e Letras do governo francês, comentou: "E daí? Jerry Lewis também foi".

         Neto do inventor do mecanismo da máquina de calcular, Burroughs levou ao limite o dito de que não há literatura experimental sem vida experimental. Conheceu o submundo das drogas, escreveu livros "ilegíveis", foi exterminador de ratos, detetive particular, viveu no México, Marrocos, Paris, Londres. Foi guru dos hippies, punks e agora, dos surfistas internéticos.

         O estereótipo do drogado-beat-homossexual e sua biografia tumultuada, no entanto, obscureceram uma leitura mais precisa de Burroughs enquanto escritor. Não era exatamente como "junkie writer" ou anti-humanista que ele queria ser lembrado: "Desde o começo eu tenho me preocupado, enquanto escritor, com o vício em si (seja a drogas, sexo, dinheiro, ou poder) como um modelo de controle, e com a decadência máxima potencialidades biólogicas da humanidade, pervertida pela estupidez e malícia desumanas". Se, como escreveu Michel Serres, a chave da modernidade está na relação parasítica, a obra de Burroughs chega a ser didática. Em sua narrativa grotesca, escatológica, distópica, o parasita se torna uma metáfora para todas as relações de poder.

         "A linguagem é um vírus". Nesta frase-chave e em toda sua obra, Burroughs sintetiza nossa condição, de explosão virótica e paranóias extraterrestres, de internets, massificação pela propaganda, clonagens e de bombardeio diário de informações pela mídia. Se o vício aparece como metáfora "nua e crua" para os males da sociedade de consumo, é com a do vírus que Burroughs descortina nossa agoridade espetacular. O problema é que para Burroughs não há cura para este vírus: trata-se da própria consciência humana, programada para funcionar como um mecanismo virótico. Ao se reproduzir em cópias de si mesma, inoculando comandos contraditórios, o parasita age naquilo que é a diferença do ser humano dos outros animais: a linguagem.

         O papel do escritor, como um sintomatologista, passa a ser o de expor os seus modos de funcionamento. "Um médico não é criticado por descrever as manifestações e sintomas de uma doença, mesmo que elas sejam repugnantes. Acho que o escritor deve ter a mesma liberdade", escreveu. Sua obra, muito antes da voga da "desconstrução", já fazia uma análise demolidora dos dualismos básicos da nossa cultura, de nossa tendência em pensar em termos de oposições binárias como mente/corpo, homem/mulher, certo/errado, natureza/cultura, realidade/ficção, eu/outro. Burroughs foi um crítico ferrenho do senso-comum, que ele via como uma das drogas mais perigosas, um modo "viciado" e limitado de ver. "A lógica aristotélica é um dos grandes erros do pensamento ocidental. Existem certas fórmulas, palavras-chaves, que podem trancafiar uma civilização durante séculos". Trinta e dois anos após a publicação polêmica de "Naked Lunch" (Almoço Nu) talvez seja hora reler a descrição nua e crua que Burroughs faz: o que parece estranho pode nos surpreender. A ficção, para ele, tinha o péssimo hábito de virar realidade.

 

NARRATIVA "ZAPPING"

         No início dos anos 60, principalmente na chamada trilogia "cut-up", muito antes da teoria contemporânea discutir o fenômeno da "intertextualidade", Burroughs incorporou o conceito de colagem cubista e procedimentos do Dadaísmo para a narrativa. Apontava, assim, para a característica intertextual não só da literatura mas também de nossa época. O uso de "cut-ups", mais intensamente praticados em livros como "O Ticket Que Explodiu", "Expresso Nova" e "A Máquina Macia", questionava radicalmente o conceito de autoria. O resultado, se usado com moderação, como aconselhava, era um método de escrita hipertextual, que poderia inclusive contar com a ativa colaboração do leitor. (Para os que quiserem experimentar, há na Internet um site com uma Máquina Cut-Up programada para editar ao acaso textos inseridos pelo usuário com fragmentos da obra de Burroughs).

         Com o cut-up, a idéia de um texto interativo e de uma escrita "eletrônica", que se faz de súbitos links, já estava lançada. Na época, o método de Burroughs era bastante "primitivo": munido de gravadores e uma tesoura, Burroughs cortava tiras de textos das fontes mais variadas — trechos da Bíblia, jornais, Shakespeare e os diálogos de um filme-B, por exemplo. Depois, justapunha-os com textos seus e reescrevia o resultado. O efeito, como demonstra em sua trilogia e em "A Terceira Mente", é uma espécie de "zapping" narrativo. A descontinuidade provocada pelo vírus tornava o texto uma zona de turbulência, ou simulava efeitos de simultaneidade, como se estivéssemos vendo vários canais ao mesmo tempo. Burroughs criava, assim, o Frankenstein da literatura contemporânea: A Máquina Cut-Up.

         Mesmo tendo abandonado progressivamente este método de escrita a partir dos anos 70, Burroughs acreditava que os efeitos textuais provocados pelo cut-up estavam muito mais próximos do funcionamento real de nossas percepções do que a narrativa linear, sequencial. Recebemos mais informações subliminares do que nossas consciências registram. Para indicar seu ponto de vista, dava um exemplo muito próximo de nós: a TV.

         Em tempos de tecnologias e hipertextualidades, Burroughs era otimista em relação ao futuro do livro: "Acho que as pessoas nunca vão abandonar totalmente a leitura. Nada substituirá a literatura: nem o vídeo, nem o cinema. Por outro lado, a fórmula novelística está ultrapassada, e se não houver coisas interessantes nessa área, as pessoas estarão cada vez mais lendo só livros e revistas ilustradas, histórias em quadrinhos. Há coisas que você não consegue numa tela ou num filme. Já com um livro as pessoas podem sentar-se em qualquer lugar e é como se um filme estivesse passando em suas cabeças".

 

ESTÚDIO REALIDADE

         De "Almoço Nu" ao mais recente "Minha Educação: Um Livro de Sonhos" (1995), Burroughs nunca abandonou seu projeto literário e político de questionar a estrutura da realidade. Sua obra seria melhor lida no contexto da "Nova Mitologia" que dizia estar criando para nossa época.

         Em seu universo mágico e perigoso, o escritor descrevia a presença de estruturas arcaicas em eterno conflito. A realidade humana, no grande circo burroughsiano, nada mais é que "um universo pré-filmado e pré-gravado". Na sua ficção, vive-se numa grande Interzone infestada de piratas homossexuais, políticos mafiosos, serial killers, burocratas viciados, seitas fanáticas, cyborgs e alienígenas. Nesta cidade-mundo, "nada é verdadeiro, tudo é permitido". A própria História é um velho filme que é rebobinado toda vez que chega ao fim, e que pode ser alterada apenas através de uma radical "Operação Reescrita". A única saída para o escritor é expor o funcionamento dos sistemas de controle e ao mesmo tempo tentar miná-los viroticamente.

         Neste cenário pessimista, o corpo humano nada mais é que uma "máquina macia" programada para satisfazer as necessidades absolutas de seus controladores: a Nova Gangue, um grupo paramilitar intergalático que domina a humanidade através da manipulação da imagem e da palavra. Sua tarefa, na ficção anarquista de Burroughs, é agravar os conflitos humanos colocando num mesmo planeta formas de vida irreconciliáveis. Para o autor, uma nova mitologia, nos termos que propõe, só seria possível na era espacial, "onde teremos novamente heróis e vilões quanto às suas intenções para com este planeta".

         Pelos labirintos da grande "zona" textual de seus romances, circulam personagens que parecem saídos da realidade, como Dr. Benway, inescrupuloso médico cujo maior feito foi ter retirado o apêndice de um paciente com uma lata de sardinha enferrujada. Há também Mr. Bradley Mr. Martin, "um Deus que fracassou, um Deus do Conflito, o inventor da cruz dupla, dos dualismos". Existem os Mugwumps, répteis alienígenas que sugam humanos (chupa-cabras?) e garotos "heavy metal" (termo extraído de sua obra). E, claro, há o Estúdio Realidade, onde imagens e representações do mundo "ao vivo" estão a todo instante sendo editadas e manipuladas. A tarefa da Polícia Nova, liderada pelo Inspetor Lee, é expulsar os invasores e liberar o planeta. Profeticamente, em "Naked Lunch", de 1959, Burroughs apresentava um vírus letal e misterioso (também chamado de B-23 ou "vírus do amor"), e que teria surgido na África, atacando principalmente homossexuais.

         A obra de Burroughs — que engloba intervenções em áreas diversas — pode ser entendida como uma grande teia onde se entrecruzam disciplinas como filosofia, antropologia, psicanálise, política, pintura, cinema e cultura pop. Por isso, ela acabou contaminando personalidades de diversas áreas, como David Cronenberg, Robert Wilson, e artistas como Brian Eno, Lou Reed, Tom Waits, David Bowie, Patti Smith e Laurie Anderson.

         A produção literária de Burroughs também fez a cabeça de jovens escritores como Kathy Acker, escritores "cyberpunk" (William Gibson, Bruce Stirling e Clive Barker), repercutindo até nas obras de filósofos como Deleuze e Guatari. No Brasil, possíveis semelhanças com a escrita burroughsiana se encontram em "Panamérica", de José Agrippino e "Catatau", de Paulo Leminski. O escritor trafegou pelos mais variados gêneros, sempre com intenções paródicas: do diário de viagem às histórias policiais, do western a ficção-científica. Entre seus escritores preferidos estavam Rimbaud, Kafka, Conrad, Dostoievsky, Denton Welch, T.S. Eliot, e Beckett.

         Burroughs contextualizava sua obra à luz da tradição picaresca, cujos antecedentes mais antigos são o "Satyricom", de Petrônio, e "The Unfortunate Traveller", de Tomas Nashe: a narração de uma série de aventuras e de "acidentes de percurso", alguns horríveis, outros cômicos, vividos por um anti-herói. De fato, os livros mais importantes de Burroughs foram escritos neste estilo. Não há também como deixar de apontar pontos de contato entre seu universo narrativo com os de George Orwell, Franz Kafka e Aldous Huxley.

         Nos últimos anos, Burroughs estava escrevendo cada vez menos e aproveitando cada vez mais seus últimos momentos. Ou seja, pintando, cuidando dos gatos, recebendo amigos e praticando tiro. Chegou a fazer experiências interessantes como a ópera "The Black Rider" (O Cavaleiro Negro, em parceria com Robert Wilson e Tom Waits) e lançou álbuns de "spoken word" como o excelente "Dead City Radio" (Rádio Cidade Morta), que retoma a forma da novela radiofônica. Encarado como uma espécie de dinossauro da contracultura, passou a ser cada vez mais assediado em seu exílio no Kansas, como remanescente de uma época turbulenta. Não à toa, escolheu para morar um lugar que é conhecido como "Alameda Tornado" (título de outro livro seu), e onde depois seria filmado o filme "The Day After". Sobreviveu a Kurt Cobain, com quem fez parceria, e fez pontas em filmes como "Drugstore Cowboy" e "Twister".

         O fato é que, aos 83 anos, depois de tudo o que aprontou, era chegada a hora do Agente Lee fazer suas malas. Como nas palavras de um personagem de "The Western Lands", um de seus últimos livros: "O velho escritor não podia mais escrever por ter atingido o limite do que poderia ser feito com as palavras". Burroughs se preparou durante toda sua vida para a última viagem às Terras do Oeste, o paraíso dos egípcios, e que só é atingido por uma estrada perigosa. Burroughs chegou lá.

         "Kim nunca havia duvidado da existência de deuses ou da possibilidade de vida após a morte. Ele considerava a imortalidade como o único objetivo que valia a pena. Ele sabia que ela não é algo que você atinge automaticamente por acreditar em algum dogma arbitrário como Cristianismo ou Islã. É algo que você tem que trabalhar e batalhar, como tudo mais nessa vida ou na outra".

("The Western Lands")

RODRIGO GARCIA LOPES
in Revista Cult, SP, n. 3, 1997, pp-20-22

(matéria gentilmente enviada pelo autor para Pop Box)


Rodrigo Garcia Lopes é autor de "Vozes & Visões: Panorama da Arte e Cultura Norte-americanas Hoje" (Iluminuras, 1996), "Solarium" (Iluminuras, 1994), "visibilia" (Sette Letras, 1997) e Mestre em Artes pela Arizona State University com tese sobre a obra de William Burroughs.

 

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