Poemas de Sylvia Plath em Tradução e nota de Vinicius Dantas Revista Novos Estudos CEBRAP nº 28 outubro de 1990 pag. 179-198
Nessa pequena amostragem da obra de poesia de Sylvia Plath há poemas de duas ou três fases. Minha escolha recaiu sobretudo nos que foram escritos no último ano de sua vida. Estes são as obras-primas de seu realismo patológico são poemas misteriosamente contidos e violentos. Chamo seu estilo de realismo patológico porque o que aí se pratica é a descrição de um mundo bastante conhecido, tratado no entanto de um ponto de vista distante e algo monstruoso. Esse mundo "pega" no mesmo sentido que se diz de uma doença. A matéria da descrição são os afazeres de uma dona de casa, as tarefas de mãe, as agonias do parto e/ou do aborto, o toque sexual em suas muitas ressonâncias, as incertezas amorosas e peripaques cotidianos de muitos tipos, afora paisagens, lugares e figuras. As imagens como uma lente deformante não reforçam a descrição e, ganhando vida própria, elas "escapolem", contagiando o poema inteiro com sua beleza. Os sentimentos, como em Kafka, são tarefas e deveres esvaziados de sentido; o desejo é apenas um mecanismo que funciona por si, opaco ao outro e à experiência humana. Ainda que se enxergue pouco do plano real, a situação dramática dos poemas nasce da cozinha, do berço, do quarto ou de um passeio a cavalo. Suas descrições tendem à abstração, figurando os sentimentos à maneira de estranhos processos metabó-licos; daí a preferência de suas metáforas pelos processos quimiobiológicos. Esta metástase lírica tem frequentemente na morte o ponto superior de onde contempla o mundo. A morte certamente é mais fria que este mun-do onde se morre de frieza; é mais inerte que esta sociedade condenada à inércia do mesmo. Mas o gelo e a inércia no mais alto grau por sua vez possuem intensidade e pureza maiores que as da vida que resta viver. Se a intensidade e a pureza já são sentimentos impossíveis a uma vida menos humana e mais histórica, como essa aí, a morte sai incrivelmente humanizada como um cerne de autenticidade. Recomendo que vocês leiam estes poemas depois de terem olhado as fotografias de Diane Arbus. Estas duas artistas norte-americanas falam da mesma opacidade chamada realidade.
É evidente que traduzi os poemas de que mais gosto como "Talidomida", "Anel", "Evento" e "Palavras". Porém me dispus a imaginar em português textos como "Árvore" ou "Espelho" porque eles estão escritos em estilo muito pouco apreciado pelos poetas que hoje escrevem poesia no Brasil. Neles, o impulso do verso é descritivo-expositivo e a forma é alegórica no sentido clássico; o efeito final nada tem de convencional e o conteúdo de sua figuração dramática extravasa qualquer esquematismo alegórico. O caso de "Palavras" é o seguinte: já existia uma tradução des-te poema, feita por Ana Cristina César e recolhida em seu livro Escritos da Inglaterra (SP, Brasiliense, 1988). Seu trabalho não me agrada, tampouco a leitura que ela apresenta em ensaio ainda desse volume. Independentemente das divergências, patentes para quem fizer o cotejo, minha tradução se justifica porque este lindo poema é a ars poetica mais requintada da obra plathiana. Me interessei por "Canção de Maria" em vista de sua semelhança explícita com o universo do maior escritor de nosso tempo Paul Celan. Se aqui e ali surge na poesia plathiana o mesmo imaginário auschwitziano de Celan, este é empregado em termos biográficos e psico-lógicos como no extraordinário "Lady Lazarus". Só isso dá a força da poesia de Sylvia Plath, capaz de se projetar nas esferas da lírica das trevas, a partir de uma experiência lírica mais limitada e, digamos assim, confessional.
Se seus poemas não criam grandes dificuldades ao tradutor, além das dificuldades costumeiras de tradução de poesia, eles requerem um rigor de tipo particular. O tradutor deve se prender às relações "dramáticas" e "situacionais" que estão cifradas micrologicamente em versos concisos ou numa coordenação inusitada de simbolos. O tradutor deve se ater a essas relações para que na transposição o texto não se obscureça ainda mais. Para assegurar a compreensão dessas relações ou situações, fui levado a certas licenças: o olmo imenso e frondoso do poema "Elm" virou uma inespecífica "árvore" por razões de gênero e uma plantinha do hemisfério norte chamada "cachimbo de índio" (monotropa uniflora) virou uma "flor de cacto" (modestamente bela, áspera e intratável).
Este trabalho foi possível porque gente amiga me ajudou e incentivou. Virgínia Figueiredo deu-me há muitos anos dois livrinhos fininhos da Faber, nos quais comecei a ler e me intrigar com Sylvia Plath. lumna Maria, Ismail Xavier e Roberto Schwarz leram, corrigiram e ajudaram ao longo de quase uma década. Obrigado, obrigado. Por último agradeço ao interesse de Eric Mitchell Sabinson que comentou em detalhes essas tra-duções e discutiu comigo a pertinência de certas soluções. Conversando com ele, um especialista em literatura norte-americana, cuja língua mater-na é o inglês, concluí o quanto os meus princípios tradutórios são ten-denciosamente estruturais, relegando a segundo plano as implicações sim-bólicas, psicológicas e mitopoéticas, tão mais "naturais" para quem se relaciona nativamente com o contexto da literatura de língua inglesa. Agindo dessa maneira reproduzo a tradição poética em que me formei, isto é, a tradição da poesia brasileira das últimas décadas, a qual, com motivações diversas, desqualificou os planos de significação mais arredios à literalidade e à linguagem direta, desconfiando dos ardis da subjetividade em nome de uma racionalidade antilírica. A poesia de Sylvia Plath não deixa portanto de ser um pretexto para repensarmos a validade do legado ca-bralino da poesia brasileira.
"O PARQUE DO CASARÃO As fontes secaram; é o fim das rosas. Incenso de morte. Teu dia chega. São pequenos budas as peras gordas. Uma névoa azul arrastando o lago. Caminhas em plena era de peixes, Pelos presunçosos séculos do porco Cabeça, dedão do pé e da mão Assomam aos poucos da sombra. A História Cria floreios quebrados, Essas coroas de acanto, E a gralha se paramenta. Herdas a hera branca, uma asa de abelha, Dois suicidas, os lobos de família, Horas de vazio. Alguns astros árduos Já amarelaram os céus. A aranha em seu próprio fio Atravessa o lago. Os vermes Deixam seus tugúrios habituais. Convergem, convergem os passarinhos Auspiciando um dificil nascer. (1959) EU SOU VERTICAL Mas não que não quisesse ser horizontal. Não sou árvore com minha raiz no solo Sugando minerais e amor materno Para a cada março refulgir em folha, Nem sou a beleza de um canteiro Colhendo meu quinhão de Ohs e me exibindo em cor, Desconhecendo que me despetalo em breve. Comparados a mim, uma árvore é imortal E um pendão nada alto, embora mais assombroso, O que eu quero é a longevidade de uma e a audácia do outro. À luz infinitesimal das estrelas, Flores e árvores trescalam seus frios perfumes. Eu me movo entre elas, mas nenhuma me nota. Chego a pensar que pareço o mais perfeitamente Com elas quando estou dormindo Os pensamentos esmaecem. É mais natural para mim deitar. Céu e eu então animamos a prosa, Hei de servir no dia em que deitar afinal: E as árvores aí talvez em mim tocassem e as flores comigo se ocupassem. (28-111-1961) ÚLTIMAS PALAVRAS Não quero um simples caixão, quero um sarcófago Com rajas de tigre e um rosto em relevo, Redondo como a lua, para fitar o alto. Quero estar de olhos neles quando eles chegarem Furando a mudez de minerais e raízes. Estou a vê-los caras de astros remotos, pálidas. Agora não são nada, não são sequer bebês. Eu os concebo sem pai nem mãe como os primeiros deuses. Certamente indagarão se fui importante. Como fruta me cristalizo e conservo meus dias! Meu espelho está se embaçando Uns poucos alentos e ele nada reflete. As flores e as faces ficam brancas de pano. Não creio no espírito. Foge como vapor Em sonhos, pelo furo da boca e dos olhos. Não o detenho. Nem voltará um dia. É o contrário das coisas. Elas duram, o lustrozinho íntimo delas Ainda morno de tanto manuseio. Titilando quase. Quando as solas dos meus pés resfriarem, O olho azul da minha turquesa me confortará. Deixem comigo minhas caçarolas de cobre, deixem meus potes de rouge Florirem em volta como flores da noite de bom perfume. Embrulhar-me-ão com bandagens e deporão meu coração Aos meus pés em lindo pacote. Eu não reconhecerei eu mesma. Tudo será turvo, E o resplendor dessas coisinhas, mais doce que a face de Istar. (21-X-1961) ESPELHO Sou prata e exato. Eu não prejulgo. O que vejo engulo de imediato Tal qual é, sem me embaçar de amor ou desgosto. Não sou cruel, tão somente veraz O olho de um deusinho, de quatro cantos. O tempo todo reflito sobre a parede em frente. É rosa, com manchas. Fitei-a tanto Que a sinto parte de meu coração. Mas vacila. Faces e escunridão insistem em nos separar. Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim, Buscando em domínios meus o que realmente é. Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustre e a lua. Vejo suas costas e as reflito fielmente. Ela me paga em choro e agitação de mãos. Sou importante para ela. Ela vai e vem. A cada manhã sua face reveza com a escuridão. Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo. (23-X-1961) ÁRVORE Para Ruth Fainlight Fui ao fundo ela diz. Sei pela minha raiz mestra: É o que temias. Eu não temo: já estive lá. É o mar o que em mim escutas, E seus desassossegos? Ou a voz do nada, não era essa tua loucura? O amor é sombra larga. Como mentes e em seu encalço choras Ouça: estes sã seus cascos: disparou como cavalo. Noite afora galoparei assim, impetuosamente, Até tua cabeça virar pedra e o travesseiro a relva, Ecoando, ecoando. Ou devo te mostrar o som dos venenos? É a chuva agora, aquietando. E este é seu fruto: metálico como arsênico. Sofri as atrocidades dos poentes. Escorchados à raiz Meus filamentos rubros secam e estendem dedos de arame. Agora me desfaço em pedaços que voam como paus. Uma ventania dessa violência Não suporta nada ao redor: preciso gritar. A lua também não tem pena: me arrastaria Cruelmente, mirrando-me. Sua radiância me lesa. Ou quem sabe se a captei. Deixo que se vá. Deixo que se vá Diminuída e chocha como se após cirurgia radical. Como teus maus sonhos me possuem e obsedam. Um grito mora em mim. À noite, ele se afoita, Procurando com suas presas algo para amar. Essa coisa preta me aterroriza Dormitando em mim O dia inteiro sinto seu retorcer fofo, suas felpas, sua malignidade. As nuvens passam e se dispersam. São aquelas as faces do amor, aquelas pálidas irremediáveis? Para isso é que meu coração se turba? Não sou capaz de outro conhecer. O que é isto, este rosto Tão criminoso em sua sufocação de galhos? A insídia de seus ácidos beija. É o que petrifica o querer. São falhas isoladas e tardonhas Que matam e matam e matam. (19-IV-1962) EVENTO Como os elementos se solidificam! O luar, este penhasco de giz Em cuja fenda deitamos Sem trocar um olhar. Ouço um pio de coruja Vindo de seu índigo frio. Vogais intoleraáveis assaltam meu coração. O bebê no berço branco se mexe e ofega, Abre a boca agora, pedindo. O rostinho talhado em madeira vermelha de dor. Aí surgem estrelas inextirpáveis, duras. Um toque: arde e aflige. Não posso ver teus olhos. Onde a flor da maçã cristaliza a noite Eu me perco em voltas, Uma trilha de velhas culpas, funda e amarga. Aqui o amor não pode chegar. Uma negra lacuna se entreabre. No beiço em frente Uma alma branquinha está acenando, um verme branquinho. Meus membros também me abandonaram. Quem nos espedaçou? O breu agora se funde. Mutilados nos tocamos. (21-V-1962> PAPOULAS DE JULHO Papoulas pequeninas, pequeninas chamas do inferno, Vocês não fazem nada de mal? Bruxuleiam. Não posso pegá-las. Ponho as mãos entre as chamas. Sem queimar. E me exaure olhá-las Bruxuleando, vermelho vivo e rugoso como mucosa de uma boca. Uma boca em hemorragia. Babados hemorrágicos! Há fumaças impalpáveis para mim. Onde os teus narcóticos, tuas nauseantes cápsulas? Ai se eu sangrasse ou dormisse! Se minha boca desposasse uma ferida assim! Ou seus extratos levigassem a mim nessa cápsula de vidro, Entorpecendo e aquietando. Mas sem cor. Sem cor. (2O-VII-1962) ARIEL Estagnação no breu. Então o azul mana insubstancial Do pico e das distâncias. Leoa dos céus, Como nos tornamos uma, Pino dos calcanhares e joelhos! A ruga Se desmancha e se apaga, irmã do Arco castanho Do pescoço que não posso estreitar, Bagas de olho Crioulo atiram anzóis Turvos Bocados negros de sangue doce, Sombras. Alguma coisa mais Me arrasta pelo ar Coxas, cabelos Escamas de meus calcanhares. Branca Godiva, eu me descasco Mãos mortas, privações mortas. E agora Me convulsiono em trigo, cintilância de mares. O choro da criança Derrete na parede. E eu Sou a flecha, O orvalho que voa Suicida, num só impulso Dentro do vermelho Olho, caldeirão da manhã. (27-X-1962) OS MENSAGEIROS A palavra de lesma na chapa de folha? Minha é que não é. Não a aceite. Ácido acético em lata lacrada? Não o aceite. Genuíno é que não é. Um anel de ouro com o sol dentro? Mentiras. Mentiras e dor. Geada numa folha, o imaculado Caldeirão, proseando e frigindo De si para si no topo de cada um Dos nove Alpes negros. Um turtuveio nos espelhos, O mar espedaçando o seu, cinza Amor, amor, estação minha. (4-XI-1962) TALIDOMIDA Ó semi-lua Semi-cérebro, luminosidade Negro, mascarado de branco, Suas escuras Amputações se arrastam e arrepiam Aranhoso, nocivo. Que luva Que algo de couro Protegeu Me dessa sombra Os indeléveis botões, Calombos nas omoplatas, Faces que Desembocam em ser, arrancando O lacerado Âmnio-sangue de ausências. Custa-me uma noite de marcenaria Um espaço para esta minha prenda, Um amor De dois olhos úmidos e berreiro. Baba branca De indiferença! Os frutos escuros rodam e caem. O vidro se esfacela. A imagem Escapole e aborta como gotas de mercúrio. (8-II-1962) CANÇÃO DE MARIA o cordeiro dominical frige em sua gordura. A gordura Sacrifica sua opacidade... Uma janela, ouro santo. O fogo a faz preciosa, O mesmo fogo Que derrete os heréticos de sebo E despoja os judeus. Suas grossas mortalhas flutuam Sobre a cicatriz da Polônia e a devastada Germânia. Eles não morrem. Pássaros grisalhos obsedam meu coração, Cinza-boca, cinza de olho. Eles pousam. No alto Precipício Que evacuou um homem no espaço Os fornos resplendiam como céus, incandescentes. É um coração. Este holocausto em que me movo, Ó filho dourado que o mundo matará e comerá. (19-XI-1962) OVELHA NA NÉVOA Os morros derrapam em brancura. Gente ou estrelas Me encaram com tristeza, eu as desaponto. O trem deixa uma linha de alento. Ó lento Cavalo ferrugento. Cascos, sinos dolentes A manhã inteira a Manhaã enegrecendo, Restou uma flor. Meus ossos se aquietam, os campos Distantes fundem meu coração. Eles ameaçam Deixar que eu passe para um céu Sem astro, sem pai, um charco. (2-XII-1962/28-I-1963) CRIA Seu olho claro é a coisa mais linda que existe. Quero enchê-lo de cor e patinhos, O zoológico do recém Em cujos nomes meditas Anêmona de abril, flor de cacto, Pequeno Talo sem ruga, Poça em que imagens Teriam de ser grandiosas e clássicas Não esse agitado Retorcer de mãos, esse teto Escuro sem estrela alguma. (28-I-1963) PALAVRAS Achas Após seus baques a madeira range, Ecoando! Ecos em viagem Fora do centro como águas. A seiva Brota como lágrimas, como água na refrega Para repor seu espelho Sobre a pedra Que tomba e rola, Um crânio branco, Comido por verdes daninhos. Depois de anos eu Com eles me deparo na estrada Palavras secas, à solta, o infatigável bater de cascos, Enquanto Do fundo do poço, fixas estrelas Governam uma vida. (I-II-1963) LINDE A mulher está perfeita. Seu corpo Morto ostenta o sorriso do consumado, A ilusão de uma necessidade grega Flui pelas dobras de sua toga, Seus pés Nus parecem dizer: Ficamos por aqui, acabou. Cada criança morta enrodilhada, uma serpente branca. Uma para cada pequena Leiteira, agora vazia. Ela cingiu-as A seu corpo como pétalas De rosa que fecha quando o jardim Estupora e os odores sangram Pelas fauces fundas e doces da flor da noite. A lua não tem de quê se entristecer Velando, embuçada em osso. Ela não se altera mais com coisas do tipo. Seus negrumes crepitam e arrastam. (5-II-1963)"