Arnaldo Antunes no clip da música Poder - CD O SILÊNCIO 1996

A MÁQUINA PORTÁTIL DE SEMIOSES
sobre um poema de Arnaldo Antunes

"...escrever sobre escrever
é o futuro do escrever..."
Haroldo de Campos





           Fugindo ao círculo vicioso que Haroldo de Campos criticou em uma entrevista à Radio USP, "o vício que vem nos cursos de letras", onde, segundo ele, "as pessoas não só estão interessadas apenas nos defuntos, porque são mais facilmente tratáveis e não reclamam, como também estão com as orelhas fechadas a tudo aquilo que esteja fora do mundo verbal...", procuraremos aqui exatamente o reverso. Faremos a análise de um poema de Arnaldo Antunes, poeta que sempre se preocupou com o experimental até mesmo na música, pois que ele pertenceu ao grupo Titãs de enorme sucesso, também voltado à produção de uma mistura "bem temperada" entre estilos musicais e consciência de linguagem.

           Contrariando as expectativas de uma certa crítica que insiste em estigmatizar as novas gerações sob a pecha de futilidades juvenis, ou ainda anunciando a morte da poesia, como no título "A poesia está morta, mas juro que não fui eu" de José Paulo Paes; partiremos então para a desmitificação do "rebelde sem causa", versão atual do "poète maudit", falácia e cilada para aqueles que não são capazes de educar a razão e a sensibilidade no mesmo ritmo acelerado das mudanças do mundo hodierno.

           Arnaldo Antunes 1 situa-se no centro desta confusão, atuando em todas as áreas com eficiência. Em 1978 ingressou na Faculdade de Letras da USP, onde seguiria o curso de Lingüística, não fosse o absoluto sucesso do grupo Titãs lhe tomar todo o tempo entre shows, gravações, ensaios, turnês, entrevistas. Também atuou como ensaísta na Folha de S. Paulo, sendo assim um crítico bem informado e competente, pois nestes ensaios é que podemos detectar o substrato teórico que transparece no seu trabalho estético.

           Da obra de Arnaldo Antunes seleciou-se um poema verbal, pois aqui nos limitaremos a uma análise estilística e intertextual (a obra de Arnaldo, estendendo-se além da poesia verbal, começou com a poesia visual, passando à poesia projetada em laser, a poesia performance, o video-poema por computador e poemas video-clip).

           O poema selecionado está em seu terceiro livro, TUDOS 2 de 1990, não possui título, o que já é suficiente para inseri-lo no paradigma da poesia moderna, como afirma Mallarmé:

"Nomear um objeto é suprimir três quartos de fruição do poema
que consiste em pouco a pouco desvendar: sugeri-lo, eis o sonho."
3

           Podemos dizer que um poema sem título é como uma viagem sem bússola rumo ao desconhecido. Além disso um navio que perdeu a rota descobriu a América! Ou ainda no dizer de Augusto de Campos, "poesia é risco". Assim, podemos já inferir que a poesia na sua tentativa de renovar a linguagem, na procura do novo, arrisca-se a não agradar, isto é, a causar um estranhamento 4 no leitor, muitas vezes intencionalmente. Senão, vejamos o poema:

Pensamento vem de fora
e pensa que vem de dentro,
pensamento que expectora
o que no meu peito penso.
Pensamento a mil por hora,
tormento a todo momento.
Por que é que eu penso agora
sem o meu consentimento?
Se tudo que comemora
tem o seu impedimento,
se tudo aquilo que chora
cresce com o seu fermento;
pensamento, dê o fora,
saia do meu pensamento.
Pensamento, vá embora,
desapareça no vento.
E não jogarei sementes
em cima do seu cimento.


ouça a versão musicada por Sérgio Britto
no CD A Minha Cara: Pensamento #2

           Escansão do poema com os apoios rítmicos (ictos) assinalados em negrito:

 

 

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e

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(ra)

 

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ga

rei

se

men

(tes)

  em ci ma do seu ci men (to)

 

            Este poema de única estrofe com dezoito versos intenta fazer o diálogo entre a tradição e a modernidade, como veremos. Todos os versos estão em redondilha maior, de sete sílabas com a sétima acentuada. Este tipo de verso de metrificação simples é predominante nas quadrinhas, canções populares e folclóricas; de longa tradição em língua portuguesa, já era freqüente nas cantigas medievais, sendo possível encontrá-lo em todas as épocas, em Portugal e no Brasil. Por outro lado, é a intencionalidade do poeta no trabalho com a linguagem que irá conferir ao poema a sua modernidade, pois "na poesia moderna, o sujeito explicitado como ‘eu’ não se refere a uma pessoa particular... a voz que fala na lírica moderna, afirma Mallarmé, oculta ‘tanto o poeta como o leitor’. E Rimbaud: ‘é falso dizer: penso. Dever-se-ia dizer: pensa-se em mim’." 5

            Por ser todo em redondilha maior, sua base ritmica, o poema propõe um jogo entre som e sentido, na seleção e combinação de palavras, apoiando-se na cadência (alternância de sílabas fortes e fracas), na assonância e na aliteração, pela repetição de elementos variantes e invariantes que constitui a dinâmica a ser reproduzida quando se efetiva a leitura; ou seja, o efeito poético.

           Neste sentido, aparecem imbricadas as figuras de harmonia com as figuras de repetição, uma vez que são indissociáveis no texto. A repetição se dá entre as palavras e entre partes de palavras, entre o som e o sentido, exatamente na relação de arbitrariedade entre o significante e o significado. "Em poesia, qualquer similaridade notável no som é avaliada em função de similaridade e/ou dessemelhança no significado"; "a poesia não é o único domínio em que o simbolismo dos sons se faz sentir; é, porém, uma província em que o nexo interno entre som e significado se converte de latente em patente e se manifesta da forma mais palpável e intensa". 6 Estes elementos que se repetem é que darão a coesão ao texto.

           Veja-se, por exemplo, a palavra "pensamento", onde ocorre duas vezes o som de en, que irá se repetir por todo o poema em "penso", "pensa", "vem", "dentro", "sem", "momento", "tormento", "consentimento", "tem", "impedimento", "fermento", "embora", "vento", "semente", "em", "cimento", assonâncias que se destacam quantitativamente e qualitativamente, também combinadas com as rimas toantes, na tecitura sonora. Também se destacam as aliterações em (p) e (t) oclusivas, o (m) nasal e o (s) fricativo, que se combinam e desdobram em várias formações com as assonâncias na textura do poema.

           A palavra "pensamento" é o sema isotópico do poema, que funciona como uma espécie de "glosa ao mote" de Rimbaud: "pensa-se em mim". O poema se desenvolve dentro de uma consciência em conflito, sendo que tudo no poema funciona aos pares, cada verso contém duas partes e cada verso se completa no seguinte por enjambement:

Pensamento vem de fora
e pensa que vem de dentro,


note-se que há um duplo movimento e o paradoxo inicial que se instaura no sujeito do enunciado, aquele que se apresenta manifesto no texto, ocupando o espaço da referência; diverso portanto do "eu lírico". Tal paradoxo, de uma consciência confusa e deslocada irá se ampliar por todo o poema. Vejamos estes versos em gráfico:


(Isto tem uma estreita relação com a fita de Moebius 7, do conhecido símbolo de infinito, em que a parte de fora também é parte de dentro. O artista M. C. Escher explorou este e outros paradoxos visuais com perfeição. Isto é a lógica paraconsistente pura, demonstrada em palavras ou imagens.)

           No poliptoto "pensamento" "pensa", também podemos notar a personificação em que um ente energético é apresentado como se fosse um ser. Isto é de fundamental importância dentro do poema, pois este ente personificado será o sujeito do enunciado e simultaneamente será um outrem.

           Nos dois versos seguintes já podemos notar a construção de anáforas, recorrentes ao longo do texto, que, combinadas com as figuras de harmonia, formam a coesão textual:

pensamento que expectora
o que no meu peito penso

Aqui está a primeira intertextualidade, ou polifonia, do poema, na forma de uma paráfrase a Fernando Pessoa: "o que em mim sente está pensando", "Basta pensar em sentir/ para sentir em pensar.", "E eu, que sinto co’a cabeça" 8. Temos nos versos de Antunes duas metonímias, "pensamento" no lugar de "razão" e "peito" no lugar de "coração", tropos que se imbricam em quiasmo, também relações metafóricas (pois o pensamento aqui exterioriza o sentimento e vice-versa) que, deslocada a ordem entre sujeitos e atributos, subverte a lógica linear da sintaxe, resultando a intersecção do par de contraditórios que são coexistentes, numa relação oximoresca. Pois que "a negação atuante no oxímoro reúne, portanto, numa mesma operação significante, a norma lógica, a negação dessa norma e a afirmação dessa negação, enunciando a simultaneidade do negado e do afirmado, do possível e do impossível", "num processo simbiótico" que, ao "ultrapassar o movimento de afirmação e negação", "instauram uma realidade outra, um terceiro", "o termo dialético que origina a síntese". 9

            A questão dos oxímoros, que aparecem numa profusão paradisíaca em Fernando Pessoa, é aqui não somente referenciada, como também presentificada parafrásticamente enquanto estrutura dos versos. Nos versos que se seguem,

Pensamento a mil por hora,
tormento a todo momento.


temos novamente a anáfora de "pensamento", repetição que a cada vez surge renovada de significados, uma vez que a cada verso esta palavra é re-semantizada e transfigurada. Temos também a expressão hiperbólica "a mil por hora" normalmente atenuada devido ao seu uso corriqueiro para qualquer fenômeno muito veloz; porém aqui relacionado ao pensamento assume novamente seu efeito. Geralmente não é do conhecimento de todos a real natureza do pensamento, porém sabe-se que, fisicamente, ele tem sido registrado como impulsos elétricos entre uma rede de neurônios, portanto com a velocidade da luz. Por outro lado, nos estados de consciência alterada, quer por meios artificiais ou devidos a alguma situação excitante, quer seja nos sonhos, a velocidade do pensamento se torna espantosamente rápida. Esta, sim, parece ser a situação nestes versos, pelo disfórico 10 "tormento". Nesta interrogação,

Por que é que eu penso agora
sem o meu consentimento?


figura a dubitação do sujeito do enunciado em luta, literalmente, contra pensamentos. Aqui, esta figura é de acentuada intensidade, pois é aplicada ao próprio pensamento. Estes versos reforçam os anteriores e a personificação do ente pensamento, em ser, algo que vem a se instalar na consciência do sujeito, mais rápido que esta, se manifestando nele como uma interferência ao próprio pensar, instaurando-lhe o desequilíbrio, o tormento.

           É interessante notar que esta consciência se movimenta num contínuo espaço-tempo quadridimensional 11 , para usarmos um termo da física. Isto só é possível à poesia moderna que está em sincronia com o pensamento científico, sendo-lhe a sua equivalente; diferenciando-se portanto das poéticas anteriores que não conseguem tal amplitude. Para uma análise desta natureza seria mais apropriada a Semiótica, o que fugiria aos limites lingüísticos que ora adotamos. Todavia, registre-se a importância deste índice coincidente com a teoria da relatividade como altamente enriquecedor do texto.

           Note-se também, que neste automático pensar sem querer pensar, paradoxal, sobrepõe-se simultaneamente o ser que é-se um outro, numa relação oximoresca. Temos portanto, uma consciência além do pensar e um pensar automático sem consciência de si, que se realizam no mesmo sujeito.

           É neste ponto que podemos detectar a segunda intertextualidade no poema. Algo estranho dentro do próprio pensamento, como se fosse um ruído na mensagem. É o que acontece também com o personagem Renatus Cartesius (René Descartes) no livro Catatau, de Paulo Leminski 12. No Catatau o filósofo das idéias claras e das verdades absolutas teria vindo ao Brasil durante a dominação holandesa. Enquanto ele aguarda a chegada de seu guia, que nunca chegará, tenta enquadrar a realidade tropical, nova, exuberante e emergente em seus velhos esquemas lógicos europeus. Irritado com a fauna, a flora, o calor, os cheiros, os mosquitos, a explosão multicolorida de vida, e ainda sob um choque lisérgico e alucinações, seu pensamento torna-se um caos, desorganizado e proliferante, em que surge Occam, criatura que em seu fluxo de pensamentos, transfigura sua lógica em delírio. Todo o livro é esse fluxo de pensamento transfigurado, em linguagem joyceana, roseana, galáctica, neobarroca prosa com alta densidade poética, perturbado por esse ente estranho, assim como no poema que estamos analisando.

"No Catatau, suspeito ter criado o primeiro personagem puramente semiótico, abstrato, da ficção brasileira. Occam é um monstro que habita as profundezas do Loch Ness do texto, um princípio de incerteza e erro, o ‘malin génie’ da célebre teoria de R. Descartes... a entidade não existe no real, é um ser puramente lógico-semiótico... a personificação do conceito cibernético de ruído... as aparições do monstro fazem o texto voltar-se para si mesmo". 13

           Retomemos, então, o poema:

Se tudo que comemora
tem o seu impedimento,
se tudo aquilo que chora
cresce com o seu fermento;


           Aqui temos novamente as anáforas, reforços coesivos, e as metáforas de "comemora" por "prazer"; "impedimento" por "censura"; "chora" por "sofrimento", "tormento"; "fermento" por "aumenta", "reforço", ainda com o mesmo sentido disfórico que já percebemos anteriormente. É importante notar que, até esta altura, o poema se mantém num esquema descritivo e se apresentam as anáforas no início dos versos para manter a coesão textual, juntamente com as rimas alternadas no fim destes. Porém, a partir do ponto e vírgula se inicia um outro processo que será marcado pela cominação:

pensamento, dê o fora,
saia do meu pensamento.
Pensamento, vá embora,
desapareça no vento.


           As expressões "dê o fora", "saia", "vá embora", são típicas do coloquialismo que, a partir do modernismo, passaram a ser constantes na poesia. As anáforas desta vez estão combinadas com apóstrofes, o que, por sua vez, acentuará definitivamente a presença da entidade estranha. Pois a palavra pensamento em apóstrofe implica na sua personificação, e como se exige a sua retirada do próprio sujeito, temos enfim o ápice da diferenciação, a dupla acepção de palavras homônimas, na figura da antanáclase levada às últimas conseqüências.

           Esta última figura é a prova da tese de Leminski 14 - e também nossa nesta análise - de que as "aparições do monstro fazem o texto voltar-se para si mesmo", do predomínio da função poética da linguagem centrada na mensagem 15; bem como do sujeito do enunciado que oculta "tanto o poeta como o leitor", como afirma Mallarmé. A consciência de linguagem: "por fim, a cobra morde o próprio rabo", diz Leminski sobre o Catatau 16, juntamente com Paul Valery, "...acostumar-se a pensar como Serpente (penser en serpent) que se come pela cauda. Pois aí está toda a questão. Eu ‘contenho’ o que me ‘contém’. Eu sou sucessivamente continente e conteúdo" 17. Num exagero referencial, cito ainda Lacan: "Sou onde não estou, estou onde não sou". 18

           O poema termina com dois versos que formam um epifonema e também outro diálogo intertextual de uma ancestre tradição:

E não jogarei sementes
em cima do seu cimento.


           Temos aqui ecos do Pe. Antonio Vieira do Sermão da Sexagésima, que também se referia à parábola do semeador de Cristo:


"...O semeador saiu a semear.
Parte da semente
caiu ao longo do caminho,
vieram as aves do céu
e comeram-na.
Parte caiu na pedra,
não tinha terra,
nasceu, veio o sol e secou.
Parte, enfim, caiu em terra boa
e deu bons frutos,
cem por um, outros sessenta por trinta.
Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça."
19

           Parábola em grego quer dizer "desvio do caminho", é uma forma de revelar uma verdade abstrata de forma poética, um "revelar ocultando" para abusar do oxímoro, no mesmo sentido do desvio que é o traço essencial do fato estilístico. Na parábola de Cristo, a semente é metáfora e imagem da palavra, assim também no poema. Temos também a atualização de "pedra" em "cimento", numa relação metonímica, em que os antecedentes dão a inferir o conseqüente (pois o sentido figurado previsível aqui, possibilitou recuperar o sentido literal, no que se poderia chamar de "figura zero").

            Mas não é só isso. Temos uma figura oculta neste trecho do poema. Note-se que há uma quebra da seqüência rímica que vinha sendo constante e alternada até então, pois "sementes" não termina em "ora". Considere-se que isto não constitui um erro, mas sim uma figura de contexto, pois é o resultado da cominação dos quatro versos anteriores, como se a suposta entidade tivesse de fato sido afastada do pensamento. Como prova da elaboração consciente do poeta, é importante observar que, na primeira edição do poema o primeiro verso se apresentava assim: "Pensamento que vem de fora", portanto com nove sílabas, o que quebrava a regularidade métrica; mas na sua edição definitiva o pronome relativo "que" foi suprimido. Tal cuidado nos leva a supor que foi intencionalmente colocada esta dissonante não-rima, porém paronomástica no dístico final entre as palavras semente e cimento.

            Como vimos, as figuras de pensamento ocorrem com maior freqüência no poema, quer nas repetições sintáticas, quer nas lexicais, quer nas fonológicas, todas com a simultaneidade do desvio quantitativo e do desvio qualitativo. As projeções do som, da forma, do conteúdo e do pensamento, coplanares entre si, geram a motivação isomórfica; conferindo ao poema coesão e coerência.

            O tema do poema é o conflito do homem consigo mesmo, sempre mais difícil combater o inimigo invisível que se instala no seu íntimo, nas suas crenças, em tudo que lhe parece natural, uma vez que assim lhe ensinou e assim determina a vida em sociedade. O que se pensa é produto artificialmente programado, "extra imposto, intra falseado" (Rosa), vem de fora e parece vir de dentro.

            Os assuntos entraram como polifonia, permitindo que o poema se apresentasse múltiplo dentro de dois paradigmas: no paradigma da poesia de invenção, síncrono, fez o diálogo com a palavra poética de Cristo (que já era um exemplo de brilhante metalinguagem!), com o barroco Pe. Vieira e o neobarroco Catatau de Leminski, com Fernando Pessoa, Mallarmé, Rimbaud, Valery, dando provas incontestáveis de que não cede ao "zeitgeist", o espírito do tempo, a morte datada; no paradigma diacrônico, o texto consciente de si mesmo, de sua materialidade, não deixa se prender ao plano verbal, mas se expande com transito livre na "semiosfera" do pensamento científico, a imprevisibilidade que o destaca dos demais.

            Esta diferença evidencia-se no fato de que o poema, ainda que materialmente, enquanto significante, seja fixo, enquanto "essência", significados, é móvel e mutante, proliferante, pois suporta múltiplas leituras, abre-se renovado a novos repertórios. Mais que objeto estético, máquina de semióses.

            Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça! Eis a estética da recepção anunciada pelo iluminado.


Elson Fróes


NOTAS

1. Veja a biografia completa no site de
Arnaldo Antunes.

2. Poema anterior mente publicado na revista 34Letras nº 1, setembro, 1988, pag. 33.

3. Apud GRUNEWALD, José Lino. "Pedras de toque sobre o pensamento do poeta". In: Folha de S. Paulo, 13/03/92, Ilustrada, pag. 9.

4. CHKLOVSKI, Victor, formalista russo, sobre a teoria do estranhamento (ostraniêne): "A arte tem como procedimento o estranhamento das obras e da forma de acesso difícil que aumenta a dificuldade e o tempo da percepção, visto que, em arte, o processo perceptivo é um fim em si mesmo e deve ser prolongado". Outrossim, o novo é sempre estranho.

5. CARA, Salete de Almeida. A poesia lírica. S. Paulo, ed. Ática, série Princípios nº 20, pag. 47.

6. Apud CAMPOS, Haroldo de. A operação do texto. S. Paulo, ed. Perspectiva, série Debates nº134, pag. 31, citando Jakobson.

7. Fita de Moebius: um anel largo, com as pontas unidas por superfícies opostas, criando uma superfície única (sem interior ou exterior). Veja-se p. ex. esta obra no site de M. C. Escher.

8. PESSOA, Fernando. Obras completas. R. de Janeiro, ed. Aguilar, 1969, pp. 144, 554, 557.

9. Colagem de termos extraídos de GOMES, Maria dos Prazeres M. In: "O Oxímoro e a lógica do terceiro". S. Paulo, Cadernos PUC nº8, ed. EDUC, pp. 16, 17, exatamente sobre os "oxímoros dialéticos de Fernando Pessoa", como os analisou anteriormente R. Jakobson.

10. Disforia: categoria semântica de caráter negativo, por oposição a euforia.

11. "Einstein afirmava se tratar de ‘um conceito familiar’. Basta olhar as tabelas de trens e aviões de passageiros, em que figuram os instantes de partida e de chegada nas cidades servidas por essas linhas." "lugares e tempo nunca se apresentam à nossa observação senão unidos entre si; nunca se observa um lugar sem ser em um determinado instante ou vice-versa. Sabe-se que um objeto material tem três dimensões no espaço e existe no tempo, isto é, tem uma dimensão extra." Apud BARROS, Alberto Luiz da Rocha. "Sem mistério", Folha de S. Paulo, caderno Ciência, 15/06/90, pag. G-1.

12. LEMINSKI, Paulo. Catatau. R. Grande do Sul, 2ª ed. Sulina, 1989.

13. Idem, pp. 208, 212.

14. Ver trecho citado à nota 12.

15. Sobre as funções da linguagem, veja-se JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. S. Paulo, Cultrix, 1985.

16. Op. cit., p. 207.

17. VALERY, Paul. A serpente e o pensar, trad. Augusto de Campos. S. Paulo, ed. Brasiliense. 1984, pp. 113, 114.

18. LACAN, Jacques. "O estádio do espelho". In: O Seminário. S. Paulo, ed. Zahar, 1984.

19. Tradução direta do grego por Paulo Leminski.






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