A MÁQUINA PORTÁTIL DE SEMIOSES
sobre um poema de Arnaldo Antunes
"...escrever
sobre escrever
é o futuro do escrever..."
Haroldo de Campos
Fugindo
ao círculo vicioso que Haroldo de Campos
criticou em uma
entrevista à Radio USP, "o vício que vem
nos cursos de letras", onde,
segundo ele, "as pessoas não só estão
interessadas apenas nos defuntos,
porque são mais facilmente tratáveis e não
reclamam, como também estão
com as orelhas fechadas a tudo aquilo que esteja
fora do mundo
verbal...", procuraremos aqui exatamente o
reverso. Faremos a análise de
um poema de Arnaldo Antunes, poeta que sempre se
preocupou com o
experimental até mesmo na música, pois que ele
pertenceu ao grupo Titãs de enorme sucesso,
também voltado à produção de uma mistura
"bem temperada"
entre estilos musicais e consciência de linguagem.
Contrariando as expectativas de uma certa
crítica que insiste em
estigmatizar as novas gerações sob a pecha de
futilidades juvenis, ou
ainda anunciando a morte da poesia, como no
título "A poesia está morta,
mas juro que não fui eu" de José Paulo
Paes; partiremos então para a
desmitificação do "rebelde sem
causa", versão atual do "poète
maudit",
falácia e cilada para aqueles que não são
capazes de educar a razão e a
sensibilidade no mesmo ritmo acelerado das
mudanças do mundo hodierno.
Arnaldo Antunes 1 situa-se no centro
desta confusão, atuando em todas
as áreas com eficiência. Em 1978 ingressou na
Faculdade de Letras da USP,
onde seguiria o curso de Lingüística, não
fosse o absoluto sucesso do
grupo Titãs lhe tomar todo o tempo entre shows,
gravações, ensaios, turnês,
entrevistas. Também atuou como ensaísta na
Folha de S. Paulo, sendo assim
um crítico bem informado e competente, pois
nestes ensaios é que
podemos detectar o substrato teórico que
transparece no seu trabalho estético.
Da obra de Arnaldo Antunes seleciou-se um poema
verbal, pois aqui
nos limitaremos a uma análise estilística e
intertextual (a obra de Arnaldo, estendendo-se
além da poesia verbal, começou com a poesia
visual,
passando à poesia projetada em laser, a poesia
performance, o video-poema
por computador e poemas video-clip).
O poema selecionado está em seu terceiro livro,
TUDOS 2 de 1990, não possui
título, o que já é suficiente para inseri-lo
no paradigma da poesia
moderna, como afirma Mallarmé:
"Nomear
um objeto é suprimir três quartos de
fruição do poema
que consiste em pouco a pouco desvendar:
sugeri-lo, eis o sonho." 3
Podemos
dizer que um poema sem título é como uma viagem
sem bússola
rumo ao desconhecido. Além disso um navio que
perdeu a rota descobriu a
América! Ou ainda no dizer de Augusto de Campos,
"poesia é risco". Assim,
podemos já inferir que a poesia na sua tentativa
de renovar a linguagem,
na procura do novo, arrisca-se a não agradar,
isto é, a causar um
estranhamento 4 no leitor, muitas
vezes intencionalmente.
Senão, vejamos o poema:
Pensamento
vem de fora
e pensa que vem de dentro,
pensamento que expectora
o que no meu peito penso.
Pensamento a mil por hora,
tormento a todo momento.
Por que é que eu penso agora
sem o meu consentimento?
Se tudo que comemora
tem o seu impedimento,
se tudo aquilo que chora
cresce com o seu fermento;
pensamento, dê o fora,
saia do meu pensamento.
Pensamento, vá embora,
desapareça no vento.
E não jogarei sementes
em cima do seu cimento.
ouça a versão musicada por Sérgio Britto
no CD A Minha Cara: Pensamento #2
Escansão do poema
com os apoios rítmicos (ictos) assinalados em
negrito:
|
pen
|
sa
|
men
|
to
|
vem
|
de
|
fo
|
(ra)
|
|
e
|
pen
|
sa
|
que
|
vem
|
de
|
den
|
(tro)
|
|
pen
|
sa
|
men
|
to
|
que'ex
|
pec
|
to
|
(ra)
|
5
|
o
|
que
|
no
|
meu
|
pei
|
to
|
pen
|
(so)
|
|
pen
|
sa
|
men
|
to'a
|
mil
|
por
|
ho
|
(ra)
|
|
tor
|
men
|
to'a
|
to
|
do
|
mo
|
men
|
(to)
|
|
por
|
que
|
é
|
que'eu
|
pen
|
so'a
|
go
|
(ra)
|
|
sem
|
o
|
meu
|
con
|
sem
|
ti
|
men
|
(to)
|
10
|
se
|
tu
|
do
|
que
|
co
|
me
|
mo
|
(ra)
|
|
tem
|
o
|
seu
|
im
|
pe
|
di
|
men
|
(to)
|
|
se
|
tu
|
do'a
|
qui
|
lo
|
que
|
cho
|
(ra)
|
|
cre
|
sce
|
com
|
o
|
seu
|
fer
|
men
|
(to)
|
|
pen
|
sa
|
men
|
to
|
dê
|
o
|
fo
|
(ra)
|
15
|
sa
|
ia
|
do
|
meu
|
pen
|
sa
|
men
|
(to)
|
|
pen
|
sa
|
men
|
to
|
vá
|
em
|
bo
|
(ra)
|
|
de
|
sa
|
pa
|
re
|
ça
|
no
|
ven
|
(to)
|
|
e
|
não
|
jo
|
ga
|
rei
|
se
|
men
|
(tes)
|
|
em |
ci |
ma |
do |
seu |
ci |
men |
(to) |
Este poema de única estrofe com dezoito versos intenta
fazer o
diálogo entre a tradição e a modernidade, como
veremos. Todos os versos estão
em redondilha maior, de sete sílabas com a sétima
acentuada. Este tipo de
verso de metrificação simples é predominante nas
quadrinhas, canções
populares e folclóricas; de longa tradição em língua
portuguesa, já era
freqüente nas cantigas medievais, sendo possível
encontrá-lo em todas as
épocas, em Portugal e no Brasil. Por outro lado, é a
intencionalidade do
poeta no trabalho com a linguagem que irá conferir ao
poema a sua
modernidade, pois "na poesia moderna, o
sujeito explicitado como eu não
se refere a uma pessoa particular... a voz que fala na
lírica moderna,
afirma Mallarmé, oculta tanto o poeta como o
leitor. E Rimbaud: é
falso dizer: penso. Dever-se-ia dizer: pensa-se em
mim." 5
Por ser todo em redondilha maior, sua base ritmica, o
poema propõe um
jogo entre som e sentido, na seleção e combinação de
palavras,
apoiando-se na cadência (alternância de sílabas fortes
e fracas), na
assonância e na aliteração, pela repetição de
elementos variantes e
invariantes que constitui a dinâmica a ser reproduzida
quando se efetiva
a leitura; ou seja, o efeito poético.
Neste sentido, aparecem imbricadas as figuras de harmonia
com as
figuras de repetição, uma vez que são indissociáveis
no texto. A
repetição se dá entre as palavras e entre partes de
palavras, entre o som
e o sentido, exatamente na relação de arbitrariedade
entre o significante
e o significado. "Em poesia, qualquer
similaridade notável no som é
avaliada em função de similaridade e/ou dessemelhança
no significado"; "a
poesia não é o único domínio em que o simbolismo dos
sons se faz sentir;
é, porém, uma província em que o nexo interno entre
som e significado se
converte de latente em patente e se manifesta da forma
mais palpável e
intensa". 6 Estes elementos que se
repetem é que darão a coesão ao texto.
Veja-se, por exemplo, a palavra "pensamento",
onde ocorre duas
vezes o som de en, que irá se repetir por
todo o poema em "penso",
"pensa", "vem", "dentro",
"sem", "momento",
"tormento", "consentimento",
"tem", "impedimento",
"fermento", "embora",
"vento", "semente",
"em",
"cimento", assonâncias que se destacam
quantitativamente e
qualitativamente, também combinadas com as rimas
toantes, na tecitura
sonora. Também se destacam as aliterações em (p) e (t)
oclusivas, o (m)
nasal e o (s) fricativo, que se combinam e desdobram em
várias formações
com as assonâncias na textura do poema.
A palavra "pensamento" é o sema isotópico do
poema, que funciona como
uma espécie de "glosa ao mote" de Rimbaud:
"pensa-se em mim". O poema se
desenvolve dentro de uma consciência em conflito, sendo
que tudo no poema
funciona aos pares, cada verso contém duas partes e cada
verso se
completa no seguinte por enjambement:
Pensamento
vem de fora
e pensa que vem de dentro,
note-se que há um
duplo movimento e o paradoxo inicial que se instaura no
sujeito do enunciado, aquele que se apresenta manifesto
no texto,
ocupando o espaço da referência; diverso portanto do
"eu lírico". Tal
paradoxo, de uma consciência confusa e deslocada irá se
ampliar por todo
o poema. Vejamos estes versos em gráfico:
(Isto tem uma estreita relação com a fita de Moebius 7,
do conhecido
símbolo de infinito, em que a parte de fora também é
parte de
dentro. O artista M. C. Escher explorou este e outros
paradoxos visuais
com perfeição. Isto é a lógica paraconsistente pura,
demonstrada em
palavras ou imagens.)
No poliptoto "pensamento" "pensa",
também podemos notar a
personificação em que um ente energético é
apresentado como se fosse um ser.
Isto é de fundamental importância dentro do poema, pois
este ente
personificado será o sujeito do enunciado e
simultaneamente será um
outrem.
Nos dois versos seguintes já podemos notar a
construção de anáforas,
recorrentes ao longo do texto, que, combinadas com as
figuras de
harmonia, formam a coesão textual:
pensamento
que expectora
o que no meu peito penso
Aqui está a primeira intertextualidade, ou polifonia, do
poema, na
forma de uma paráfrase a Fernando Pessoa: "o que em
mim sente está
pensando", "Basta pensar em sentir/ para sentir
em pensar.", "E eu, que
sinto coa cabeça" 8. Temos nos
versos de Antunes duas metonímias,
"pensamento" no lugar de "razão" e
"peito" no lugar de "coração",
tropos
que se imbricam em quiasmo, também relações
metafóricas (pois o
pensamento aqui exterioriza o sentimento e vice-versa)
que, deslocada a
ordem entre sujeitos e atributos, subverte a lógica
linear da sintaxe,
resultando a intersecção do par de contraditórios que
são coexistentes,
numa relação oximoresca. Pois que "a negação
atuante no oxímoro reúne,
portanto, numa mesma operação significante, a norma
lógica, a negação
dessa norma e a afirmação dessa negação, enunciando a
simultaneidade do
negado e do afirmado, do possível e do
impossível", "num processo
simbiótico" que, ao "ultrapassar o movimento
de afirmação e negação",
"instauram uma realidade outra, um terceiro",
"o termo dialético que
origina a síntese". 9
A questão dos oxímoros, que aparecem numa profusão
paradisíaca em
Fernando Pessoa, é aqui não somente referenciada, como
também
presentificada parafrásticamente enquanto estrutura dos
versos.
Nos versos que se seguem,
Pensamento a
mil por hora,
tormento a todo momento.
temos novamente a
anáfora de "pensamento", repetição que a
cada vez surge
renovada de significados, uma vez que a cada verso esta
palavra é
re-semantizada e transfigurada. Temos também a
expressão hiperbólica "a
mil por hora" normalmente atenuada devido ao seu uso
corriqueiro para
qualquer fenômeno muito veloz; porém aqui relacionado
ao pensamento
assume novamente seu efeito. Geralmente não é do
conhecimento de todos a
real natureza do pensamento, porém sabe-se que,
fisicamente, ele tem sido
registrado como impulsos elétricos entre uma rede de
neurônios, portanto
com a velocidade da luz. Por outro lado, nos estados de
consciência
alterada, quer por meios artificiais ou devidos a alguma
situação
excitante, quer seja nos sonhos, a velocidade do
pensamento se torna
espantosamente rápida. Esta, sim, parece ser a
situação nestes versos,
pelo disfórico 10 "tormento".
Nesta interrogação,
Por que é
que eu penso agora
sem o meu consentimento?
figura a
dubitação do sujeito do enunciado em luta,
literalmente, contra
pensamentos. Aqui, esta figura é de acentuada
intensidade, pois é
aplicada ao próprio pensamento. Estes versos reforçam
os anteriores e a
personificação do ente pensamento, em ser, algo que vem
a se instalar na
consciência do sujeito, mais rápido que esta, se
manifestando nele como
uma interferência ao próprio pensar, instaurando-lhe o
desequilíbrio, o
tormento.
É interessante notar que esta consciência se movimenta
num contínuo
espaço-tempo quadridimensional 11 , para
usarmos um termo da física. Isto
só é possível à poesia moderna que está em sincronia
com o pensamento
científico, sendo-lhe a sua equivalente;
diferenciando-se portanto das
poéticas anteriores que não conseguem tal amplitude.
Para uma análise
desta natureza seria mais apropriada a Semiótica, o que
fugiria aos
limites lingüísticos que ora adotamos. Todavia,
registre-se a importância
deste índice coincidente com a teoria da relatividade
como altamente
enriquecedor do texto.
Note-se também, que neste automático pensar sem querer
pensar,
paradoxal, sobrepõe-se simultaneamente o ser que é-se
um outro, numa
relação oximoresca. Temos portanto, uma consciência
além do pensar e um
pensar automático sem consciência de si, que se
realizam no mesmo
sujeito.
É neste ponto que podemos detectar a segunda
intertextualidade no
poema. Algo estranho dentro do próprio pensamento, como
se fosse um ruído
na mensagem. É o que acontece também com o personagem
Renatus Cartesius
(René Descartes) no livro Catatau, de Paulo Leminski 12.
No Catatau o
filósofo das idéias claras e das verdades absolutas
teria vindo ao Brasil
durante a dominação holandesa. Enquanto ele aguarda a
chegada de seu
guia, que nunca chegará, tenta enquadrar a realidade
tropical, nova,
exuberante e emergente em seus velhos esquemas lógicos
europeus. Irritado
com a fauna, a flora, o calor, os cheiros, os mosquitos,
a explosão
multicolorida de vida, e ainda sob um choque lisérgico e
alucinações, seu
pensamento torna-se um caos, desorganizado e
proliferante, em que surge
Occam, criatura que em seu fluxo de pensamentos,
transfigura sua lógica
em delírio. Todo o livro é esse fluxo de pensamento
transfigurado, em
linguagem joyceana, roseana, galáctica, neobarroca prosa
com alta
densidade poética, perturbado por esse ente estranho,
assim como no poema
que estamos analisando.
"No
Catatau, suspeito ter criado o primeiro personagem
puramente semiótico, abstrato, da ficção
brasileira. Occam é um
monstro que habita as profundezas do Loch Ness do
texto, um princípio
de incerteza e erro, o malin génie da
célebre teoria de R. Descartes...
a entidade não existe no real, é um ser puramente
lógico-semiótico... a
personificação do conceito cibernético de
ruído... as aparições do
monstro fazem o texto voltar-se para si mesmo".
13
Retomemos, então,
o poema:
Se tudo que
comemora
tem o seu impedimento,
se tudo aquilo que chora
cresce com o seu fermento;
Aqui temos
novamente as anáforas, reforços coesivos, e as
metáforas de
"comemora" por "prazer";
"impedimento" por "censura";
"chora" por
"sofrimento", "tormento";
"fermento" por "aumenta",
"reforço", ainda com
o mesmo sentido disfórico que já percebemos
anteriormente. É importante
notar que, até esta altura, o poema se mantém num
esquema descritivo e se
apresentam as anáforas no início dos versos para manter
a coesão textual,
juntamente com as rimas alternadas no fim destes. Porém,
a partir do
ponto e vírgula se inicia um outro processo que será
marcado pela
cominação:
pensamento,
dê o fora,
saia do meu pensamento.
Pensamento, vá embora,
desapareça no vento.
As expressões
"dê o fora", "saia", "vá
embora", são típicas do
coloquialismo que, a partir do modernismo, passaram a ser
constantes na
poesia. As anáforas desta vez estão combinadas com
apóstrofes, o que, por
sua vez, acentuará definitivamente a presença da
entidade estranha. Pois
a palavra pensamento em apóstrofe implica na sua
personificação, e como
se exige a sua retirada do próprio sujeito, temos enfim
o ápice da
diferenciação, a dupla acepção de palavras
homônimas, na figura da
antanáclase levada às últimas conseqüências.
Esta última figura é a prova da tese de Leminski 14
- e também nossa
nesta análise - de que as "aparições do monstro
fazem o texto voltar-se
para si mesmo", do predomínio da função poética
da linguagem centrada na
mensagem 15; bem como do sujeito do enunciado
que oculta "tanto o poeta
como o leitor", como afirma Mallarmé. A
consciência de linguagem: "por
fim, a cobra morde o próprio rabo", diz Leminski
sobre o Catatau 16,
juntamente com Paul Valery, "...acostumar-se a
pensar como Serpente
(penser en serpent) que se come pela cauda. Pois aí
está toda a questão.
Eu contenho o que me contém. Eu
sou sucessivamente continente e
conteúdo" 17. Num exagero referencial,
cito ainda Lacan: "Sou onde não
estou, estou onde não sou". 18
O poema termina com dois versos que formam um epifonema e
também
outro diálogo intertextual de uma ancestre tradição:
E não
jogarei sementes
em cima do seu cimento.
Temos aqui ecos do
Pe. Antonio Vieira do Sermão da Sexagésima, que também
se
referia à parábola do semeador de Cristo:
"...O
semeador saiu a semear.
Parte da semente
caiu ao longo do caminho,
vieram as aves do céu
e comeram-na.
Parte caiu na pedra,
não tinha terra,
nasceu, veio o sol e secou.
Parte, enfim, caiu em terra boa
e deu bons frutos,
cem por um, outros sessenta por trinta.
Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça."
19
Parábola
em grego quer dizer "desvio do caminho", é uma
forma de
revelar uma verdade abstrata de forma poética, um
"revelar ocultando"
para abusar do oxímoro, no mesmo sentido do desvio que
é o traço
essencial do fato estilístico. Na parábola de Cristo, a
semente é
metáfora e imagem da palavra, assim também no poema.
Temos também a
atualização de "pedra" em
"cimento", numa relação metonímica, em que
os
antecedentes dão a inferir o conseqüente (pois o
sentido figurado
previsível aqui, possibilitou recuperar o sentido
literal, no que se
poderia chamar de "figura zero").
Mas não é só isso. Temos uma figura oculta neste
trecho do poema.
Note-se que há uma quebra da seqüência rímica que
vinha sendo constante e
alternada até então, pois "sementes" não
termina em "ora". Considere-se
que isto não constitui um erro, mas sim uma figura de
contexto, pois é o
resultado da cominação dos quatro versos anteriores,
como se a suposta
entidade tivesse de fato sido afastada do pensamento.
Como prova da
elaboração consciente do poeta, é importante observar
que, na primeira
edição do poema o primeiro verso se apresentava assim:
"Pensamento que
vem de fora", portanto com nove sílabas, o que
quebrava a regularidade
métrica; mas na sua edição definitiva o pronome
relativo "que" foi
suprimido. Tal cuidado nos leva a supor que foi
intencionalmente colocada
esta dissonante não-rima, porém paronomástica no
dístico final entre as
palavras semente e cimento.
Como vimos, as figuras de pensamento ocorrem com maior
freqüência no
poema, quer nas repetições sintáticas, quer nas
lexicais, quer nas
fonológicas, todas com a simultaneidade do desvio
quantitativo e do
desvio qualitativo. As projeções do som, da forma, do
conteúdo e do
pensamento, coplanares entre si, geram a motivação
isomórfica; conferindo
ao poema coesão e coerência.
O tema do poema é o conflito do homem consigo mesmo,
sempre mais
difícil combater o inimigo invisível que se instala no
seu íntimo, nas
suas crenças, em tudo que lhe parece natural, uma vez
que assim lhe
ensinou e assim determina a vida em sociedade. O que se
pensa é produto
artificialmente programado, "extra imposto, intra
falseado" (Rosa), vem
de fora e parece vir de dentro.
Os assuntos entraram como polifonia, permitindo que o
poema se
apresentasse múltiplo dentro de dois paradigmas: no
paradigma da poesia
de invenção, síncrono, fez o diálogo com a palavra
poética de Cristo (que
já era um exemplo de brilhante metalinguagem!), com o
barroco Pe. Vieira
e o neobarroco Catatau de Leminski, com Fernando Pessoa,
Mallarmé,
Rimbaud, Valery, dando provas incontestáveis de que não
cede ao
"zeitgeist", o espírito do tempo, a morte
datada; no paradigma
diacrônico, o texto consciente de si mesmo, de sua
materialidade, não
deixa se prender ao plano verbal, mas se expande com
transito livre na
"semiosfera" do pensamento científico, a
imprevisibilidade que o destaca dos demais.
Esta diferença evidencia-se no fato de que o poema,
ainda que
materialmente, enquanto significante, seja fixo, enquanto
"essência",
significados, é móvel e mutante, proliferante, pois
suporta múltiplas
leituras, abre-se renovado a novos repertórios. Mais que
objeto estético,
máquina de semióses.
Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça! Eis a estética da
recepção
anunciada pelo iluminado.
Elson Fróes
NOTAS
1. Veja a biografia completa no site de Arnaldo Antunes.
2. Poema anterior mente publicado na revista 34Letras nº
1, setembro, 1988, pag. 33.
3. Apud GRUNEWALD, José Lino. "Pedras de toque
sobre o pensamento do poeta". In: Folha de S. Paulo,
13/03/92, Ilustrada, pag. 9.
4. CHKLOVSKI, Victor, formalista russo, sobre a teoria do
estranhamento (ostraniêne): "A arte tem como
procedimento o estranhamento das obras e da forma de
acesso difícil que aumenta a dificuldade e o tempo da
percepção, visto que, em arte, o processo perceptivo é
um fim em si mesmo e deve ser prolongado".
Outrossim, o novo é sempre estranho.
5. CARA, Salete de Almeida. A poesia lírica. S. Paulo,
ed. Ática, série Princípios nº 20, pag. 47.
6. Apud CAMPOS, Haroldo de. A operação do texto. S.
Paulo, ed. Perspectiva, série Debates nº134, pag. 31,
citando Jakobson.
7. Fita de Moebius: um anel largo, com as pontas unidas
por superfícies opostas, criando uma superfície única
(sem interior ou exterior). Veja-se p. ex. esta obra no
site de M. C. Escher.
8. PESSOA, Fernando. Obras completas. R. de Janeiro, ed.
Aguilar, 1969, pp. 144, 554, 557.
9. Colagem de termos extraídos de GOMES, Maria dos
Prazeres M. In: "O Oxímoro e a lógica do
terceiro". S. Paulo, Cadernos PUC nº8, ed. EDUC,
pp. 16, 17, exatamente sobre os "oxímoros
dialéticos de Fernando Pessoa", como os analisou
anteriormente R. Jakobson.
10. Disforia: categoria semântica de caráter negativo,
por oposição a euforia.
11. "Einstein afirmava se tratar de um
conceito familiar. Basta olhar as tabelas de trens
e aviões de passageiros, em que figuram os instantes de
partida e de chegada nas cidades servidas por essas
linhas." "lugares e tempo nunca se apresentam
à nossa observação senão unidos entre si; nunca se
observa um lugar sem ser em um determinado instante ou
vice-versa. Sabe-se que um objeto material tem três
dimensões no espaço e existe no tempo, isto é, tem uma
dimensão extra." Apud BARROS, Alberto Luiz da
Rocha. "Sem mistério", Folha de S. Paulo,
caderno Ciência, 15/06/90, pag. G-1.
12. LEMINSKI, Paulo. Catatau. R. Grande do Sul, 2ª ed.
Sulina, 1989.
13. Idem, pp. 208, 212.
14. Ver trecho citado à nota 12.
15. Sobre as funções da linguagem, veja-se JAKOBSON,
Roman. Lingüística e comunicação. S. Paulo, Cultrix,
1985.
16. Op. cit., p. 207.
17. VALERY, Paul. A serpente e o pensar, trad. Augusto de
Campos. S. Paulo, ed. Brasiliense. 1984, pp. 113, 114.
18. LACAN, Jacques. "O estádio do espelho".
In: O Seminário. S. Paulo, ed. Zahar, 1984.
19. Tradução direta do grego por Paulo Leminski.
Confira o site de Arnaldo Antunes
visite também :: ARNALDOMANIA ::