Sylvia Plath, uma tragédia em versos.
in Jornal da Tarde 19/03/91

Ela tinha 31 anos em 1963 quando se suicidou, calando a voz feminina mais importante da poesia norte-americana da segunda metade do século.


As coisas não andavam muito bem no número 23 da Fitzroy Road, naquele inverno de 63. Sylvia estava vivendo sozinha com seus dois filhos: Frieda (3 anos) e Nicholas (1 ano). Há oito meses escrevia compulsivamente, de madrugada, antes que os filhos acordassem. Três, quatro e até cinco poemas por dia. Versos dilacerados, de uma sinceridade violenta: "Agora estou quieta, ódio/ Até o pescoço,/ Grosso, grosso./ Não falo nada./ Empacoto batatas como roupas novas./ Empacoto os bebês,/ Encaixoto os gatos doentes". No prazo de três anos, um filho, um aborto, uma operação de apendicite, outro filho. Há pouco havia descoberto que o marido, o poeta Ted Hughes, que conhecera na Universidade de Cambridge, tinha uma amante, chamada Assia Gutman. O dinheiro minguava. Seu sistema nervoso entrava em colapso. As pessoas em volta tornavam-se fantoches movidos por cordões invisíveis. Londres atravessava um dos invernos mais rigorosos de toda a sua história.

Na manhã de 11 de fevereiro de 1963, antes do choro das duas crianças, Sylvia Plath vedou bem as portas da cozinha e abriu a torneira do gás. Aos 31 anos, morria a voz feminina mais importante da poesia norte-americana da segunda metade do século.

Quase 30 anos depois, a poeta nascida em 1932 em Massachusetts terá uma primeira coletânea publicada em livro no Brasil. Sylvia Plath - poemas será lançado pela editora Iluminuras ainda neste primeiro semestre, com traduções dos jovens poetas Mauricio Arruda Mendonça e Rodrigo Garcia Lopes, ambos de Londrina, Paraná. São vinte e sete poemas, a maioria garimpada do livro Ariel, escrito num ritmo frenético, de julho de 62 a fevereiro de 63, até cinco dias antes de seu suicídio. Há poemas também de The Colossus (único volume publicado em vida, além do romance The Bell Jar) e Crossing the water.

Cumprindo um ritual estranho e já costumeiro na mentalidade editorial brasileira (a publicação de biografias antes da própria obra do biografado), a Rocco lança também, no final de abril, Bitter Fame - The Life of Sylvia Plath, escrito por Anne Stevenson. Ainda em abril, a editora Globo relança A Redoma de Vidro, único romance de Sylvia Plath, em nova tradução. O livro havia sido publicado pela Artenova, em 1971 e há muito estava esgotado. Tanto a biografia quanto a nova edição do romance foram traduzidas pela escritora Lya Luft.

Poemas terminais

Apaixonados pela sua poesia desde 84, Maurício Arruda Mendonça e Rodrigo Garcia Lopes há três anos iniciaram o trabalho de tradução sistemática. Foram diretos na última fase da poeta, segundo eles, época em que escreveu seus versos mais ricos. Treinados na dificil tarefa de desnudar um poema em uma língua e vestí-lo com as palavras de outra língua, Maurício e Rodrigo não encontraram grandes dificuldades para traduzi-la. "Apesar de ter uma poesia extremamente musical, ela não apresenta um artesanato difícil. Não é como um Cummings" - afirma Maurício.

Embora não exijam complicadas operações de recriação, as poucas traduções realizadas por outros poetas e publicadas esparsamente em suplementos e revistas brasileiros não agradavam Maurício e Rodrigo. "Alguns tradutores tentam um certo virtuosismo mas fogem do universo poético de Sylvia, não conseguem atingir um equilíbrio entre musicalidade e coloquialismo"- observa Maurício. "Tem que levar em conta que é uma mulher escrevendo. É preciso haver um envolvimento direto com a obra dela. Além disso, poesia é desvio de linguagem. Muitos tradutores esquecem que a linguagem poética se preza pela concisão. Eles traduzem de maneira literal".

O maior problema foi verter para o português a técnica de derretimento e fusão de imagens utilizada por Sylvia, chamada pelos críticos de melting-fusion techinic. Um dos exemplos desta técnica, citado por Maurício, é o poema Cut, que desmembra um pequeno acidente doméstico. Ao cortar uma cebola, a faca escorrega e arranca uma tampa do polegar. É o pretexto para uma alucinante sucessão de imagens, que sofrem rápidas metamorfoses. "É um processo quase esquizofrênico" - diz Maurício. "Procuramos manter o mesmo equilibrio de ritmo, imagem e sonoridade que existe no original. Nós queríamos que essas traduções ficassem tão equilibradas que os poemas dessem a impressão de terem sido escritos em português".

Clássica e trágica

Sylvia Plath escreveu a maior parte dos seus 224 poemas durante a década de 50 e inicio de 60, época em que a literatura americana sofria o violento ataque da beat-generation. Mas suas grandes influências vieram de poetas mais velhos: William Carlos William, Walace Stevens, Dylan Thomas e Robert Lowell. Há também ecos de Emily Dickinson em sua poesia. Talvez apenas em sua sede de viver e em seu destino trágico ela se aproxime do lendário lema dos beats: "permaneça lindo, morra jovem".

"Não existe nenhuma influência dos beats na poesia de Sylvia. A poesia dela é muito mais contida. Mas há um sentimento de revolta. No fundo é um rancor contra aquele sistema de vida americano. Só que é uma revolta voltada para dentro, como se fosse uma bomba detonada dentro dela mesma"- diz o poeta Leonardo Fróes, um dos admiradores brasileiros de Sylvia Plath.

Para o poeta Sebastião Uchoa Leite, Sylvia é o nome mais importante da poesia de língua inglesa surgido nos últimos 30 anos. O único capaz de ombrear com Robert Lowell. "A poesia dela é muito curiosa porque não é hiper-intelectualista. Nem é só existencial. É ditada por impulsos emocionais mas, ao mesmo tempo, é uma poesia de grande auto-controle. Ela vem de uma forma poética tradicional, mas utiliza uma sintaxe realmente muito estranha".

Em uma conversa com sua mãe, em julho de 62, "um pouco antes de seu mundo pessoal se despedaçar", Sylvia Plath — que já havia tentado o suicídio em 1953, sendo logo após internada para tratamento psiquiátrico —, falou a respeito do romance The Bell Jar. Estava perturbada com a publicação do livro. "O que eu fiz foi juntar acontecimentos da minha própria vida, romanceando-os para dar mais colorido - é uma caldeira, realmente, mas acho que mostrará o quão isolada se sente uma pessoa que está sofrendo um colapso nervoso. Tentei retratar o meu mundo e as pessoas dentro dele como vistas através das lentes deformantes de uma redoma de vidro".

Naquela manhã de inverno, em fevereiro de 1963, a redoma tragicamente se rompeu.




Ademir Assunção

AUGE

A mulher está perfeita
Seu corpo

Morto mostra um sorriso de satisfação,
A ilusão de uma necessidade grega

Flui pelas listras de sua toga,
Seus pés nus

Parecem nos dizer:
Fomos tão longe, é o fim.

Cada Criança morta embrulhada, cobra branca,
Uma para cada

Vasilha de leite, agora vazia.
Ela acolheu

Todas em seu corpo como pétalas
De uma rosa que se fecha quando o jardim

Se espessa e odores sangram
De garganta doce e profunda, flor noturna.

A lua não tem nada que estar triste,
Espiando tudo de sua touca de osso.

Ela já está acostumada a isso.
As crateras fissuram e dragam




ARIEL

Estase no escuro.
E um azul sem substância
De penhascos e distâncias.

Leoa de Deus,
Nos tornamos uma,
Eixo de calcanhares e joelhos! — O arado

Sulca e passa, irmã do
Arco castanho —
O pescoço que não posso abraçar,

Olhinegras
Bagas expelem escuras
Iscas —

Goles de sangue negro e doce,
Sombras.
Algo mais

Me arrasta pelos ares —
Coxas, pêlos;
Escamas de meus calcanhares.

Godiva
Branca, não nua —
Mãos mortas, negras mortas.

E agora
Espumo com o trigo, um brilho de mares.
O grito da criança

Escorre pelo muro
E eu
Sou a flexa,

Orvalho que avança,
Suicida, e de uma vez se lança
Contra o olho vermelho

Fornalha da manhã.




traduções: Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça



(Matéria gentilmente cedida pelo autor)