O CORVO
Quando eu exausto e quase adormecido, Da meia-noite na tristeza infinda, Sobre in-fólio de traças carcomido, Cabeceando, meditara ainda. Súbito ouvi ruído semelhante Ao de leve pancada nos umbrais; "A minha porta bate um visitante". Balbuciei, "é isto e nada mais". Ah! bem me lembro! Era a invernia brava: Cada faísca que no lar morria, Sobre o chão uma sombra projetava. Eu suspirava pela lua do dia: Nem pelo estudo mitigada fora A saudade das graças virginais De quem se chama lá no céu Leonora, E cá na terra não tem nome mais. O leve e triste movimento incerto Das cortinas da alcova me infundia Fantásticos terrores que de certo Eu rança dantes pressentido havia: Meu coração pulsar ansioso vendo. Eu fiquei repetindo: "Em meus umbrais Alguém que se atrasou está batendo E quer entrar: é isto e nada mais". Estando já robustecida a mente, Disse sem custo: "Oh dama, ou cavalheiro. Mil desculpas vos peço reverente Por não ter acudido mais ligeiro: Eu cochilava, e vós com tal enleio Batestes tão de manso nos umbrais Que não cuidei ouvir-vos". Patenteio A porta: vejo a sombra e nada mais! Fito o negrume e pasmo ali me quedo, Temendo, duvidando e até sonhando O que dantes ninguém sonhara a medo; Era o silêncio intacto, não traçando Riscas a escuridão: ali se ouvia Um nome, um nome, que se diz jamais. "Leonora!" suspirei e respondia "Leonora!" o eco ao longe e nada mais. Voltei para o meu quarto, onde sentindo Minh'alma triste se abrasar inteira, Outra pancada fui de novo ouvindo, Algum tanto mais forte que a primeira; Disse: "Talvez alguma cousa exista À janela, por fora dos vitrais; Deixa, meu coração, que eu deite a vista Nesse mistério; é o vento o nada mais!" Abro a janela; dum só jato entrando, Batendo as asas com um grã ruído, Diviso um nobre corvo venerando. Aos de imêmores eras parecido: Nem me saudou sequer, ante mim posto. Porém com ar e tons senhoriais. No alto busto de Palas sobreposto À porta, empoleirou-se, e nada mais. Aquele aspecto e austera compostura, Um riso me bailou no pensamento; Disse mais distraído à ave escura: "Sem crista, embora, feio a macilento, Não és covarde, oh corvo vagabundo. Que fugiste das sombras infernais: Dize, como te chamas noutro mundo?" "Nunca" responde o corvo: "Nunca mais". Maravilhou-me assaz ter entendido Minha linguagem o pássaro imperfeito. Ainda que me houvesse respondido De modo obscuro e sem nem um conceito: Parece incrível que sob seu telhado Veja o vivente em cima dos umbrais, Sobre marmóreo busto empoleirado. Pássaro que se chame "Nunca mais!" Porém o corvo solitário, fito Sobre o busto de Palas mais não disse — Penas imóveis — com se num dito Su'alma em fuga para alem saísse. "De amigos," murmurei, "guardo lembranças Mortos tão cedo! Aos raios matinais Este me deixa como as esperanças D'outrora!" Disse o corvo "Nunca mais". Estremeci ouvindo a frase d'ouro Ressoar no silêncio, após falando: Talvez o que ele diz seja um tesouro Colhido d'algum mestre miserando. A quem sem tréguas perseguisse a sorte, Até que de seus hinos festivais Só ficasse por cântico de morte Da esperança, este moto: ''Nunca mais". Novo sorriso me bailou à mente; E rodando a poltrona acolchoada. Sobre o veludo me sentei, em frente D'ave, do busto e do portal d'entrada. Comigo só pensando e refletindo No mistério, com que a desoras tais O tredo corvo, do passado vindo, Grasnava tão somente: "Nunca mais!" No enigma eu atentava, e no entretanto Nada dizia ao pássaro agoureiro, Cujos olhos de fogo ardiam tanto Dentro em meu coração: por derradeiro, A cabeça descanso aonde chora A lâmpada seus brilhos siderais, Neste roxo veludo onde Lenora Não há de reclinar-se nunca mais! Cuidei que se tornava o ar mais denso, E que uns anjos, roçando meu tapete, Turificavam misterioso incenso. "Desgraçado!" exclamei, "como um joguete Teu Deus te há enviado ao sofrimento; Sente saudades menos lagrimais Dessa Lenora! Bebe o esquecimento! "Nunca" responde o corvo: "Nunca mais!" "Mudo profeta! réprobo!" lh'eu disse: "Ave ou demônio! quer tentado foras. Quer uma tempestade te cuspisse Sozinho, mas intrépido, a desoras. Sobre a terra maldita, lar do pranto. Dize, dize-me em frases naturais: Neste mundo haverá balsamo santo?" "Nunca" responde o corvo, "Nunca mais". "Mudo profeta! réprobo". Lh'eu disse: "Ave ou demônio! pelo céu que olhamos, Curvado sobre a terra com meiguice, E por esse Deus que ambos nós amamos, Dize-me se minh'alma pesarosa Se há de unir lá nos tálamos astrais À rara e pura virgem radiosa Que se chama Lenora?" — "Nunca mais". "Seja o teu dito o signo da partida, Ave ou demônio?" soerguido brado: "Volta para o tormento da outra vida! Sequer me deixes negra pluma ao lado Por testemunho de teu dito horrendo! Deixa-me, e sai do busto e dos umbrais! Tira-me as garras com que estás comendo Meu coração desfeito!" — "Nunca mais!" Calado, o corvo solitariamente Sobre o busto de Palas permanece: Dum demônio que sonha, o olhar se sente, E a luz da lâmpada que resplandece Ante ele, sabre o pavimento lança Sombras, de cujas ondas sepulcrais Minh'alma em sua mor desesperança Não há de levantar-se nunca mais!
Adaptação ortográfica: Iba Mendes
trad. Américo Lobo - 1882
in Jornal do Comércio, Belo Horizonte, MG, 7 de agosto de 1892.
Apud Iba Mendes no site O Poeteiro.
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