UMA LEVADA MANEIRA:
no ar, poesia e música popular

por AMADOR RIBEIRO NETO


 

1. Poesia ou Letra de Música?



Mesmo com todo o vigor cultural e estético da nossa música popular, ainda há quem proteste contra o seu estudo e pesquisa dentro da universidade. Para estes puristas, música é passatempo e seu lugar é o do entretenimento e não do trabalho.

Noções de trabalho e lazer à parte, a verdade é que esta discriminação visa declarar que aquilo que é sério deve ser obrigatoriamente ranzinza, pesado e enfadonho.

Quando declaro que trabalho com poesia, romance, conto, música, e que minhas titulações como Mestre e Doutor sempre foram com trabalhos sobre música popular e poesia, boa parte das pessoas esboça um sorriso maroto. Como se titular-se com este material fosse coisa menor. Afinal, reconheço, elegi como meu objeto de estudo e trabalho o mesmo que, via de regra, é matéria de lazer de boa parte da população. Paciência. Deixaram- me escolher e, como bom anarquista, escolhi o melhor: o que me enche de prazer.

Este material de estudo e pesquisa, que levo pra sala de aula e para congressos, que publico em livros, revistas e jornais, sobre o qual faço palestras, etc. e tal, agora ganha divulgação periódica (e me aumenta gás) com a publicação de uma coluna, aos domingos, no jornal A UNIÃO, de João Pessoa. Ali tenho discorrido sobre as relações entre poesia e música popular; tenho analisado discos recentes; comentado livros de prosa e poesia; falado de filmes e exposições plásticas – sempre tendo como dominante a levada poética das artes. A visada é semiótica, mas bem distante daquela terminologia acadêmica que, antes de provocar esclarecimentos, anuvia, assusta e - pior - afasta o leitor.

O presente ensaio foi publicado, em parte, e depois revisto e revisado, em minha coluna semanal. Faz parte de meu projeto escrever pequenos textos sobre artes, alinhavados em várias e dispera colunas. Isto confere a cada coluna uma independência, além de propiciar ao leitor assíduo, a ‘descoberta’ de meu projeto de um texto único e maior. Como este que segue. Vamos a ele.

Nos anos 70 era comum ouvir que os poetas tinham migrado dos livros para a música popular. A afirmação é originariamente atribuída ao poeta Paulo Leminski, ele próprio um compositor bissexto. Autor da ácida “Verdura”, que lá pelas tantas atira: “De repente vendi meus filhos pruma família americana / eles têm carro, eles têm grana e a grama é bacana / só assim eles podem voltar / e pegar um sol em Copacabana”.

Letra que revolve as fibras do coração pater/materno num gesto inicial de selvageria: vender os filhos. Mas logo a indignação ante a venda se depara com um gesto de grande amor: “só assim eles podem voltar” e desfrutar do próprio país. Um chiste de liames líricos e corrosivos. Um canto de amor e protesto. Leminski consegue em poucos versos anular a falsa dicotomia lírico versus engajado; pessoal versus social. Em seus versos (como nos de Chico Buarque, por exemplo) o sujeito é parte viva e integrante da massa. O gesto individual está carregado de significação social. Assim, o poeta de Caprichos e Relaxos dribla a armadilha de que obra engajada é obra panfletária. Ele prova que aprendeu bem a lição de Maiakóvski: não há arte revolucionária sem forma revolucionária.

Mas eu escrevia no parágrafo anterior: “letra que revolve as fibras, etc., etc.”. Não seria melhor dizer “poesia que revolve as fibras, etc.”?

Por que é que quando escrevemos um texto não musicado nós o chamamos de poesia e quando este texto é musicado vira letra? Sem dúvidas que há uma gradação de sentido nesta distinção que fazemos até irrefletidamente.

Poesia é sempre algo a mais. Aquele algo que depura a palavra e lhe permite ser uma figura singular e auto-suficiente. Letra é um pedaço de algo. De uma música, no caso.

É mesmo? Sabemos que não era assim, por exemplo, na Grécia Antiga ou na Provença. Música e poesia conviviam sem distinções e discriminações. Toda esta prática era oral e transmitida de geração em geração sem conflitos. A ruptura entre música e poesia se dá com o advento da escrita. Na folha de papel a palavra ganha autonomia. A partir de agora elas podem ser fixadas segundo critérios que vencem de longe os limites da memória. Da exploração dos meandros da palavra no papel à composição espacial dos versos a poesia, via de regra, vai cada dia se distanciando mais e mais da palavra falada, da memória oral dos povos.

A poesia vira um estatuto à parte. A música, por sua vez, verticalizase no emaranhado de imagens sonoras e vale-se da palavra, quando muito, para enunciar o nome dos compositores, o título das obras ou compor um libreto de características literárias quase sempre discutíveis.

Com a Bossa Nova, a partir dos anos 50, a coisa muda de figura no Brasil. Hoje é muito difícil estabelecer a zona limítrofe entre uma “letra de música” e uma “poesia”. Nem precisamos falar da produção de nomes consagrados de nossa MPB como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Vinícius de Moraes, Paulinho da Viola, Alceu Valença, entre outros. Podemos citar compositores “novos” como Chico Science, Arnaldo Antunes, Chico César, Arrigo Barnabé, Adriana Calcanhoto, Luiz Tatit, Otto, Zeca Baleiro, Itamar Assumpção, André Abujamra, etc.

Tomemos o caso de Arnaldo Antunes, que além de compositor de MPB é também poeta “de livros” como Psia (1986), Tudos (1990), As coisas (1991), Nome (1993; também é cedê e vídeo), Dois ou mais corpos no mesmo espaço (1997). Arnaldo começou nos Titãs fazendo música e letra. Depois se deu conta de que algumas das letras (como a de “O quê?”) poderiam ser poesia de livro, quando transpostas para a folha de papel. No caso deste poema a disposição gráfica na página em branco era essencial para a sua realização. Cantado era puro rock de primeira. No livro revelou-se um belo poema concreto.

Neste caso a composição virou poema. Mas há o inverso. Do livro As coisas, Jorge Benjor musicou “As árvores”, um poema em prosa que agradou muito ao compositor de melodias tão imprevisíveis quanto singelas. Benjor, um mago das melodias e ritmos, musicou o poema tão bem que parece que ele nasceu canção. No entanto, o próprio Arnaldo não o tinha musicado porque via-o como “poesia de livro”.

A questão poesia de livro e letra de música é mais complexa do que julgamos à primeira vista. Alguns críticos afoitos decretam que poesia é coisa de livro, e letra de música é coisa cantada. Mas o próprio Platão (século V a.C.) já se interrogava: “ o que são os versos dos poetas quando se lhes tira o colorido que lhes empresta a música?”.

Assim, adianta pouco ou quase nada o poeta João Cabral declarar que não gosta de música e o músico João Donato retrucar que odeia poesia. Os dois continuam cruzando seus desafetos estéticos com a força da realidade: poesia é música e música é poesia. Há muita música na poesia de Cabral. Como há muita poesia na música de João Donato.

O próprio Arnaldo Antunes musicou o nosso grande Augusto dos Anjos. Está lá no disco Ninguém o poema “Budismo Moderno”. Surpreendentes acordes bossanovísticos associam- se à estridência de ruídos de um serrote e de uma guitarra distorcida contrapondo-se a uma programação de cordas. Um resultado que na certa alegraria o próprio poeta, afeito ao que era novo, inusitado, instigante, provocativo.

Há mesmo uma gradação hierárquica entre os conceitos de “letra” e “poesia”? Se não há gradação de valor, o que as diferencia uma da outra? Nada? Então podemos musicar todo e qualquer poema e/ou poeta? E toda letra de música é um poema?

Pode haver poesia sem música? Afinal, os próprios poetas contemporâneos (muitos deles) se dão conta de que a poesia é mais música que letra. Não deveria ser estudada no curso de Letras, mas sim em outros, como Música, Belas Artes, Arquitetura. Uma questão e tanto para aqueles que (ainda) insistem em ler poesia como se ela fosse prosa em versos.

A forma da poesia se aproxima muito da forma da música e das artes plásticas. Não é à toa que a poesia, ao longo de toda a história de todos os povos, seja a arte verbal menos consumida - embora a mais “praticada” e comentada. No Brasil mesmo calculase que temos mais poetas que leitores de poesia. E este cálculo tem razões estatísticas para ser verdadeiro: os livros de poesia raramente batem a marca dos míseros 3 mil exemplares. Quer dizer: nem os próprios poetas se lêem. É: poesia é um perigo.

Já a música popular vende como água. E, por acaso, quem ousaria dizer que não ouvimos uma série de poemas quando um Gil, um Caetano, um Chico (Buarque, ou César ou Science) canta? Como ficamos? Gostaria muito de saber. Há tempos me proponho tais questões. Neste texto, a partir das músicas de Chico César, Otto e Adriana Calcanhoto.

2. A música da fala e a oralidade da poesia.



Há uma tradição na música popular brasileira de explorar um modo de cantar calcado nas entonações da fala. Aquela coisa da ginga do malandro de morro vem daí e faz escola na nossa MPB a partir de Donga e a gravação do nosso primeiro samba, “Pelo telefone”, em 1917, e chega ao ano 2000 na interpretação tão malandra quanto original de Zeca Pagodinho. Este balanço maroto que a voz cantada surrupia da fala é bem diferente dos dós-de-peito dos tenores que acham que cantar bem é estourar tímpanos dos ouvintes de música popular.

Mas o que nos interessa é aquela coisa da ginga, do molejo, da musicalidade que habita a fala de cada um de nós. Sabemos que a entonação da fala possui um tipo de musicalidade. Alguns músicos sacaram muito bem isto. Noel Rosa foi um deles. Com seu jeito macio de falar, com o fio de uma voz fraquinha que vinha de um pulmão doente, o compositor de “Feitio de Oração” inovou a interpretação em nossa MPB, além de fazer escola. Mário Reis e depois João Gilberto souberam muito bem desafinar o coro dos tenores. Esses intérpretes inventaram uma nova maneira de cantar incorporando a tecnologia do microfone, que amplia a voz e dispensa os contorcionismos pulmonares.

Explorar os limites da fala, pesquisar o que nela há de musicalidade é assunto que está na ordem do dia das pesquisas de Hermeto Pascoal, me revelou Pedro Osmar em entrevista publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais (número 61, julho de 2000). Noel talvez seja nosso primeiro intérprete bossanovista. Nara Leão alcunhada de “os joelhos que cantam” (tinha belas pernas, era tímida e cantava suavíssimo) renovou o modo de cantar popular entre nós. Sua interpretação sensível e miúda, aliada a um repertório engajado com o que melhor se fazia na época, deixa saudades, além de boas e bons herdeiros, felizmente. Pena que ao ser substituída no espetáculo Opinião (em 1964) pela estreante Maria Bethânia, a garra-carcará do modo de cantar atarracado aos pulmões tenha voltado à moda. Bethânia musicalmente é uma anti- Nara: enquanto para a primeira cantar é interpretar stanislaviskamente, para a segunda o canto é sempre brechtniano. Ou seja: Bethânia enche os pulmões e solta a voz em todas as direções, atingindo e derrubando quem estiver na área. Nara é parcimoniosa: seu canto é produto de um ato de contenção e elaboração cerebral da voz; a emoção é filtrada pelo rigor de um canto-falado. Nara canta como quem está pensando, tal como nos versos de Fernando Pessoa: “o que em mim sente está pensando”. Síntese de razão e emoção.

A poesia, num primeiro momento, ao ser fixada no papel, dispensou a memória e a oralidade. Cristalizouse em formas fixas e começou a emaranhar- se num círculo de formas e sentidos vários. O papel agora fazia o que a memória não permitia: guardar termos e ritmos arqui-irregulares, elencar expressões até então só dicionarizadas, realçar os esdrúxulos como requintes poéticos. Era a hora a vez da poesia empolada, palaciana, cheia de volteios e lero-leros.

Felizmente este foi apenas um momento. Embora, de tempos em tempos, poetas insistam na acepção de que fazer poesia (e muitas vezes prosa e até crítica literária) é embolar o meio de campo do texto com metáforas cifradas ou jogos de palavras numa colagem nonsense. De repente, aquela besteira fácil e inconseqüente que os surrealistas denominaram “escrita automática” vira moda entre os incompetentes que querem “fazer” literatura ou “crítica” literária.

Por sorte sempre tivemos autores que romperam com o círculo fácil do preciosismo verbal enquanto qualidade literária. Na época colonial, Gregório de Matos é um grande exemplo da poesia que se apropria da oralidade da fala sem comprometer minimamente a fabricação do texto poético. Não é à toa que ainda hoje nós o lemos com muito deleite. Lemos e cantamos Gregório com muito prazer, já que não são poucos os poemas seus que viraram canções, por exemplo, nas vozes de Maricene Costa e Caetano Veloso.

Indo além do período barroco encontramos outros poetas que prezaram a oralidade enquanto qualidade estética. Tomás Antônio Gonzaga (com Marília de Dirceu e Cartas Chilenas ), Álvares de Azevedo (com Lira dos Vinte Anos Anos), Cruz e Sousa (com Broquéis Broquéis) e Augusto dos Anjos (com Eu) foram oásis de respiração oral em meio a uma enxurrada de beletrismos. A partir de 1922, com os modernistas, a literatura se deu conta de que para ser boa uma obra não precisa desprezar a fala. Pelo contrário: a oralidade garantiu a qualidade de muitos poetas modernistas, como Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade. Drummond veio logo depois e foi logo reclamando da pedra no meio do caminho que uns parnasianos anacrônicos queriam ressuscitar. E que finalmente ressuscitaram com a geração de 45, exceção feita ao grande João Cabral de Melo Neto, inserido nesta geração apenas cronologicamente. Cabral radicalizou a fala em Morte e Vida Severina e em Dois Parlamentos Parlamentos. Mas dela nunca abriu mão. Talvez fosse um bom tema de reflexão: o rigor de uma forma valéryana associado a uma oralidade não menos radical.

A partir da produção dos modernistas, e até nossos dias, oralidade está ligada ao que há de mais experimental em nossa poesia. A poesia de Cego Aderaldo pode ser tão importante quanto a de Mallarmé. Augusto de Campos, nosso maior poeta vivo, fez esta observação há mais de 30 anos.

3. Um lance de dados do Chico César



Desde 1995, quando lançou Aos Vivos, seu primeiro cedê, Chico César tem se revelado um compositor e intérprete de grande talento. Cuscuz Clã (1996), Beleza Mano (1998) e Mama Mundi (2000) reiteraram suas qualidades. Sem tirar nem pôr. Embora críticos afoitos, impressionados antes de mais nada com a baixa vendagem do terceiro disco, estejam agourando de plantão. Bobagem. Basta ouvir com atenção os quatro discos para perceber neles uma continuidade admirável do mesmo processo criativo.

Este paraibano de Catolé do Rocha tem se revelado um compositor de primeira linha da MPB. Seu processo de criação segue as diretrizes antropofágicas de Oswald de Andrade que apregoa a deglutição de toda e qualquer cultura, sem espécie alguma de preconceito, visando à produção de um objeto singular, genuíno e, por que não dizer, brasileiro. O Tropicalismo bebeu fartamente nas águas do saber oswaldiano. Juntou Carmen Miranda com Miles Davis; Chacrinha com Chaplin; samba de roda com atonalismo, Eisenstein com Vera Cruz, Mondrian com Di Cavalcanti, Vicente Celestino com Stravinsky. O resultado todos conhecemos: um forte movimento artístico-musical que hoje, por exemplo, deita suas raízes sobre os nomes mais interessantes da MPB, das artes plásticas, do teatro, do cinema e até da moda.

Chico César é uma legítima cria do Tropicalismo, como escrevi no Correio das Artes à época do lançamento de seu primeiro disco. E confirmo hoje: Chico César incorpora conscientemente o projeto tropicalista, nas letras, nas melodias, nas roupas, nas performances no palco, no uso da voz. Sua atuação no cenário artístico nacional e internacional apaga as fronteiras entre a cultura considerada erudita e a cultura considerada popular. Associa o forró ao jazz, a ciranda ao reggae, a poesia concreta ao cordel, o haicai a letras discursivas. Curte misturar Augusto de Campos com Cego Aderaldo; Woody Allen com Mallarmé; cavalo de pau com sandália havaiana; nirvana com seca nordestina; Jimmy Cliff com Mandela.

Antenado com as coisas do nosso tempo, suas canções sempre mexem conosco. Umas pelo ritmo; outras, pelas melodias; outras pelas letras; e outras, finalmente, por reunirem todos estes itens com qualidade. Percebe-se que em sua obra desponta uma consciência de linguagem, ou seja, um projeto intencional de construir a criação, de experimentar com as linguagens, de buscar algo novo e, ao mesmo tempo, harmônico. Afinal, antes de mais nada, uma canção popular tem de associar o belo ao agradável. Há exceções: ótimas canções, porém nada agradáveis. Não me refiro a elas. Busco um consenso mais amplo: canção é espaço poético de letra e música cantadas harmoniosamente. Cantadas com a naturalidade de quem fala. Chico canta como quem fala. Às vezes ele fala mesmo, como em “Béradêro”, de 1995, ou “Solidariedade” e “Papo cabeça”, ambas de 1998.

Este caboclinho de Catolé faz sua antropofagia “comendo” no prato da História da MPB, da Poesia, da Cultura Popular, da Política Internacional, etc. Come até se lambuzar. Um exemplo rápido: no forró “Paraíba, meu amor” (1998; o título já nos remete ao refrão de “São São Paulo”, do eterno tropicalista Tom Zé), o compositor paraibano associa o forró pé-de-serra e a voz de Flávio José a uma letra sofisticada que lá pelas tantas diz: “não quero chorar / o choro da despedida / o acaso da minha vida / um dado não abolirá”. A cadência envolvente do forró cai bem na citação dos célebres versos mallarmaicos: “um lance de dados / jamais abolirá o acaso”. Casar a poesia de Mallarmé com as festas de São João é “instalar a parabólica no mangue”, como apregoa o movimento musical Mangue Beat, também herdeiro do Tropicalismo.

Versos à frente, na mesma música, o compositor refere-se à “fogueirinha de laser” que “ilumina os festejos do meu coração”, cruzando as festas do interior com o novo coração do poeta que, longe da terrinha natal, e agora Pós-moderno, pulsa no ritmo envolvente do forró.

A interação de sua poesia com a de outros autores é uma das marcas mais visíveis da poética de Chico César. Na música “A prosa impúrpura do Caicó” (1995; desde o título uma referência ao belo filme A rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen) Chico diz: “ah Caicó arcaico / meu cashcoeur mallarmaico/ tudo rejeita e quer”. Um jogo de modas e modos e compor.

Cachecoeur é uma vestimenta feminina, mas Chico cria a palavra cashcoeur: substitui o cache, (que significa cobrir, enrolar, em francês) por cash, (que é dinheiro vivo, em inglês). Resultado: o coeur (coração, em francês) que se agasalhava romanticamente, passa a ser também mercadoria que transita no mundo financeiro. Tem mais: ele apronta com a palavra Caicó, reverberando- a dentro da palavra arcaico (arCAICO). Reverberação de sons e sentidos. Como se o compositor lançasse o dado da palavra arcaico e numa das faces do dado aparecesse Caicó, noutra, Ar, noutra Cai, noutra Ai e assim sucessivamente até chegar à possibilidade de serem criadas novas palavras, como o adjetivo catolaico que Chico César cria para significar, entre outros, descrença (laico) e fé (católico). É: o grande lance de dados do Chico César é jogar com o inusitado e não subestimar a inteligência e a sensibilidade do público.

4. Um lance de dados do estreante Otto



Otto declarou a uma revista mineira: “a gente está no mundo pra mudar radical”. Esta frase sucinta explica bem seu processo de trabalho e o sucesso de seu primeiro disco solo, o Samba pra Burro, lançado em 1998 e logo eleito, pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) o disco do ano. Depois deste prêmio ele abocanhou uma série de outros, como os da MTV. Sucesso de crítica e de público, afinal quem é este rapaz cujo nome, lacônico, é formado por duas letras espelhadas?

Otto é pernambucano. De Belo Jardim, agreste. Tem 32 anos e uma experiência com a música que data de 1989 quando se vê em Paris, com parcos 150 dólares e a Europa à frente. Virou-se bem, na certa, já que acabou ficando três anos por lá. Antes de viajar era DJ, mas tocar, compor, foram coisas que a necessidade européia lhe impôs. Nordestino da gema, tocou ciranda, maracatu, forró e ritmos afins no metrô parisiense. Depois começou a mexer nestes sons primordiais e foi inventando canções sem modos. Quer dizer: sem dar bola pros modismos. Invenção (ou melhor dizendo: inven-som) virou sua praia.

Retorna ao Brasil em 92, conhece Chico Science e juntos lançam o Movimento Mangue Beat. Toca na banda Nação Zumbi. Depois na Mundo Livre S/A e, por fim, em 1998 lança seu disco solo. Está prometendo novo cedê para este ano ainda. A contar pelo de estréia, a expectativa é grande. E a garantia de outro produto de qualidade é quase certa: vejam que delicioso trocadilho anglo-franco-afro-brasileiro no nome do disco: Condom Black.

Otto lida com os ritmos nordestinos associando-os ao pop mais internacional e de ponta. Explora à vontade a música eletrônica. Em suas mãos os tambores primais reverberam sons digitais. Seus graves enchem o ambiente e têm uma riqueza de gradação poucas vezes contemplada em música popular. Mistura samba com techno, ciranda com drum’n’bass, samba com jingle. Ou seja, faz um samba-rave, um eletrolama, uma bossa-tecnova (ou qualquer neologismo musical que se queira inventar) unindo som raiz e som eletrônico. Mas, atenção, caprichando nos graves e com um balanço pós-pop, Otto trafega leve e na contramão. Um canto, um som, uma fala que (nos) toca e surpreende a cada nota, a cada fonema. Poucos, nos últimos anos, bem poucos mesmo, ousaram como Otto em seu disco de estréia.

Samba pra Burro deglute elementos tribais em high-tech com a mesma irreverência com que os Mutantes distorciam mentes bem-comportadinhas nos festivais dos anos 60. Suas letras (ou poemas, a velha questão que não se esgota na mera terminologia) são as mais concisas da MPB. Otto não explicita verbalmente, mas seu disco declara com todas as letras: ele é herdeiro direto das tramas e tranças e transas da Poesia Concreta. Interessam-lhe em muito os significantes advindos de uma montagem de palavras que exploram e explodem em jogos de sons e de imagens. Tudo rico e raro, num misto de rigor e falso-relaxo que faz suas canções soarem como, como, como... bate-estaca-na-cara. Seu som é uma rave de trocadilhos verbais e sonoros que nascem, espelham-se e espalhamse deliciosamente. Na tela da imaginação figuras decompõem-se e reorganizam- se num caleidoscópio cerebral travestido de lisérgico. É som pra dançar, curtir, pensar. Otto adora o novo. Pra isto, tem criatividade de sobra.

Nada sobra em suas composições: a contenção alia-se ao rigor. A economia sígnica transparece em primeiro lugar nas letras. Há canções cujos versos não têm mais de duas palavras: é o caso de “Ciranda de Maluco”. Outras, apenas 3 versos: “Ranault/Peugeot”. Outras então, sem versos, apenas um esboço de diálogo: “São Paulo”.

Cenas do cotidiano são captadas em flashes instantâneos. A narrativa de suas letras-poemas rompe com a linearidade costumeira das descrições. O texto está permeado de espaços em branco que se juntam à música também irregular. Resultado: as canções são breves, concentradas, lacônicas. Duvide daqueles acordes e daquelas seqüências repetitivas. Questione aqueles versos mínimos. Otto dá paulada concreta através de versos que priorizam os substantivos. Se há poucos conectivos em suas letras é porque ele provoca o ouvinte a fazer as conexões, a ser co-participante da obra. O corpo dança respondendo ao som; a cabeça pulsa respondendo às palavras. Este me parece um dos seus maiores trunfos: acessar corpos e mentes do público. Com Otto o público é um receptor on line instigado a manter um diálogo com a tradição e a vanguarda da poesia e da música o tempo todo.

Consideremos algumas canções. Em “TV a Cabo” os números citados permutam-se num zaping que une os cabos da TV às grades dos presídios, passa pelo “ópio” das religiões e mídias (“acabo me tornando usuário”) e navega numa internet que se planta no mangue (‘o que dá lá é lama”). O segredo deste jogo de corpo ele explica num dos versos: “Só não caí porque sou nordestino bem alimentado”. Em “Bob” bastam seis versos curtos para montar o painel de uma (certa) galera hoje: barzinho, música, fumo, sexo. E tome sambeletrônico, mano!

Não nos iludamos: nem só de higt-tech vive o cedê. “O Celular de Naná” é uma ciranda-raiz tocada com pandeiro e com um coro de crianças. Ciranda acústica que explicita o subsolo do processo criativo de Otto: celular e lua complementam-se no diaa- dia do Brasil de hoje: “O celular de Naná é a lua / A lua é o celular de Naná”. Vaivém de imagens reverberadas no espelho dos versos invertidos. Eco pra nenhum Umberto reclamar.

5. Um lance de dados da Adriana Calcanhoto



Musicar poemas não é nada simples. Mas, quem disse que em música popular o simples é fácil? Erasmo Carlos, cancionista de mão cheia, vai na mosca: “se o simples fosse fácil, teríamos milhões de ‘Parabéns a você’ ”.

É isso aí: musicar poemas não é simples nem fácil. Isto porque o resultado deve manter a essência do poema e ainda revertê-lo numa canção, ou seja, em algo que, uma vez cantado, “caia bem”, “seja maneiro”. Ou, algo que resulte “eficaz”, como pontua Luiz Tatit em seus estudos semióticos.

Enfim, a canção originada deve soar em consonância com o poema e, ao mesmo tempo, nova, diferente, singular, como toda canção que se preze.

Um exemplo desastroso de “colocar música” em poesia é o caso de “E agora, José?”, de Carlos Drummond de Andrade. Musicado por Paulo Dinis, o poema perdeu seu intento e virou uma ba(ba)ladinha de debutantes. Sofrível? Pra lá de sofrível: mortífero. Quem não conhece o poema terá uma péssima impressão dele.

Ora, o belo poema de Drummond retrata a tragicidade limítrofe a que chega um certo José, num belo dia. (Dispensável dizer que o nome José, tão comum, funciona como metáfora da condição existencial brasileira e, por extensão, humana). José, em dado momento da sua história de vida, vê-se sem nada: festa, mulher, casa, amigos - e até sem a possibilidade da própria morte: “quer morrer no mar, mas o mar secou”.

Pois bem: musicado, o inquietante poema chapou-se numa lengalenga musical monocórdia. Paulo Dinis se esforça para cantar bem, mas é impossível cantar bem o que já nasce malfeito. (Dizem que Drummond ouviu a gravação e, como bom mineiro, não disse nada. Apenas fez um muxoxo).

Por outro lado, Cid Campos ao musicar o poema “O verme e a estrela”, do brilhante e pouco conhecido maranhense Pedro Kilkerry (1885- 1917), restringiu a melodia às estrofes inicial e final, deixando a do meio para ser recitada. O registro foi feito por Adriana Calcanhoto, em faixa homônima, no disco A fábrica do poema, de 1994. A gravação é tão modelar que quem quer que queira regravar esta música terá de passar pela interpretação singularíssima de Adriana e pelo arranjo musical do próprio Cid. Adriana coloca seus agudos em contraposição aos graves do arranjo musical, iconizando o verme e a estrela. E faz isto com propriedade poética de quem sabe/vive/come Literatura e Música Popular. (Não é esta a primeira nem a última vez que ela se embala e se embola com a poesia em seus discos). Cid Campos mergulha nos contrabaixos - um deles em solo de rara beleza -, faz uma bateria bossa toda e traz para o surdo uma marcação discreta, exata, cool. Enfim, ambos constroem, neste disco, uma faixa que prima pelo rigor do belo. Sensível e inteligente.

Mas, voltando ao poema propriamente dito. Pelo fato de Kilkerry ser tão pouco divulgado, e menos conhecido ainda, faz jus a transcrição do poema.

O verme e a estrela


Agora sabes que sou verme.
Agora, sei da tua luz.
Se não notei minha epiderme...
É, nunca estrela eu te supus.
Mas, se cantar pudesse um verme,
Eu cantaria a tua luz!

E eras assim. Por que não deste
Um raio, brando, ao teu viver?
Não te lembrava. Azul-celeste
O céu, talvez, não pôde ser...
Mas, ora! enfim, por que não deste
Somente um raio ao teu viver?

Olho, examino-me a epiderme,
Olho e não vejo a tua luz!
Vamos, que sou, talvez, um verme...
Estrela nunca eu te supus!
Olho, examino-me a epiderme...
Ceguei! ceguei da tua luz?


Uma curiosidade: neste poema o início se evidencia às avessas, lido pelo final, ou seja, de trás para frente. Isto mesmo, como se o olhar do verme fosse oblíquo, refazendo-se à luz da estrela; esta, por sua vez, obscurece tudo que não seja luz autoprojetada, ou seja, luz que a espelhe e espalhe na imensidão narcísica de si mesma. O conflito se instaura sob fina ironia: lá pelas tantas o verme afirma/indaga: “Ceguei! ceguei da tua luz?”.

A escolha inusitada do verme dialogando com a estrela provoca estranheza no leitor de poesia. Principalmente no leitor da época: lembremo-nos de que a Semana de Arte Moderna, que liberaria definitivamente a poesia (e a arte) de suas traumáticas amarras formais e temáticas, só viria a acontecer anos depois da morte de Kilkerry.

Mas fica bem musicar-se apenas parte de um poema? O nó da questão não está aí, mas na pertinência (eficácia) da música ao poema. No caso, a palavra falada, ao lado da palavra cantada, faz referência às duas vozes diferentes do poema: a do verme e a da estrela. Todavia, o xis da questão está na integração contínua da forma com fundo. Quer seja, a forma (= a linguagem do poema) e o fundo (= as idéias do poema) devem ser encarados enquanto unidade indissolúvel. Afinal, a canção não é a soma da letra com a música: é o todo único de letramúsica. Mais: o resultado final deve incorporar a naturalidade do canto, que só “cai bem” (vimos em colunas anteriores) quando o canto respeita a naturalidade da fala.

Assim, em música popular, cantar é falar com entonação sistematizadamente criativa. Aí é que a porca torce o rabo: entonação + sistematização + criatividade. Um tripé que não sabemos como conseguir, mas que, feito, é facilmente identificado. E aí, a canção fica em nós. Gira em nossa cabeça; toca nosso coração; vira batuque na mesa, compasso nos pés, assovio, ou mesmo repetição interminável de um mesmo trechinho, que a gente não consegue esquecer - e nem se lembrar do restante. Daí fica aquela parte da música martelando nossa memória como um ímã, como um disco riscado. Mas como uma coisa boa, sobre a qual sempre perguntamos: “como é mesmo o resto?”. Sinal evidente de que a música, digo, a canção, valeu, ô meu.


A U T O R
Amador Ribeiro Neto, Doutor em Semiótica pela PUC-SP, é Professor de Teoria da Literatura do curso de Letras da UFPB. Poeta, contista, crítico literário e de música popular, durante anos escreveu regularmente crítica literária em diversos jornais de São Paulo. Atualmente, assina coluna semanal no jornal A União (João Pessoa, PB). Autor de Pulando o Carnaval com Caetano (ensaio inédito), de Caetano Veloso, compositor neon-barroco (ensaio, no prelo) e de Barrocidade (poesia, Ed. Landy). E-mail: amador.ribeiro@uol.com.br

 

texto cedido pelo autor, originalmente publicado em:
CONCEITOS REVISTA DA ADUFPB-JP Novembro de 2000 p. 21 - 27

 

 

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes