O CORVO



[...]

Abro o postigo e súbito entra, negro,
Altivo urubu-rei, tumultuoso,
Que sem mais cortesia vai voando,
Sem partir uni instante, descuidoso,
Mas, circunspeto sempre como um lord,
Adejando inda acima dos portais,
Vê um busto de Palas sobre a porta
E nele pousa, e fica: e nada mais!

Diante de tão feio e negro vulto,
De atitude severa e ar correto,
O triste pensamento me sorri:
Oh! corvo, disse eu, corvo abjeto!
Tu, que sem medo vens das plagas negras,
Posto disfarces dons senhoriais,
Responde: "Qual teu nome? onde nasceste?"
E o corvo respondeu-me: nunca mais!

Aterrado fiquei; pois na verdade,
Embora tão confuso respondesse,
Entendera mui bem minha pergunta.
Coisa igual jamais sei que acontecesse!
Um pássaro, tão negro, altivo, posto
No busto que lá 'stá num dos portais,
Ouvir minha pergunta e responder
Que se chama somente: nunca mais!

Assim, aquele corvo, que não sabe
Dizer outra palavra que as que disse,
Quedo, lá, sem mexer nenhuma pena,
Disse tudo que sua alma resumisse.
Por fim, considerei: "Tenho perdido
Tantos antigos bons e tão leais!
Perderei tombem este, em vindo o dia?"
E o corvo respondeu-me: nunca mais!

Estremeci. "Resposta tão cabida,
Tão exata!" pensei: "isso é ciência
Única que aprendeu com algum mestre
D'implacável desdita, em convivência;
Que tão tenaz castigo dó destino!
Guardar dos cantos dantes usuais
Somente o que ficou do derradeiro!
Somente este estribilho: nunca mais!"

De novo me sorri o pensamento;
Me sento na poltrona, em frente ao corvo;
Concentro o pensamento no mistério
Que só em desvendar eu me absorvo.
Que lúgubre, sentido? Que alma tem
segredo dos termos sepulcrais?
Agouro é o sentido dessa frase
Que o corvo grasna tanto: nunca mais?!

Estava meditando, em devaneio,
Calado, em conjecturas; mas sentia
Seu olhar abrasar-me, e recostado
Na poltrona, tranquilo refletia:
Neste encosto macio já outrora
Cabeça de anjo; tranças divinais
Muita vez esparziu aqui; depois...
Depois! não esparziu mais... nunca mais!

Parecendo-me então o ar encher-se
De incenso de turíbulo qual no espaço
Serafins invisíveis se agitassem,
Logo esta exclamação me ocorre e faço:
"Deus sensível! que dás consolo à dor,
Pungida de saudades imortais!
De Leonor ide esquecer assim tu fazes?"
Do alto disse o corvo: nunca mais!

"Profeta, ave, demônio, ou quer que sejas,
Profeta que tu és, dize, responde,
Ou venhas tu do Averno ou, naufragado,
Acaso o temporal aqui te esconde,
Nesta casa onde só, e tão somente,
O horror tem seus passos triunfais.
Dize: quando haverá conforto à dor?"
E respondeu-me o corvo: nunca mais!

"Profeta, ave, demônio, ou quer que sejas,
Profeta que tu és, responde, fala.
Pelo céu que se estende ao infinito,
Por Deus que é nosso Deus, há de abraçá-la,
Dize só: poderá minh'alma triste
Unir-se, além dos lares sepulcrais,
À virgem que entre os anjos é Leonor?"
E o corvo respondeu-me: nunca mais!

"Profeta, ave, demônio, ou quer que sejas,
Cala-te! e volta, já, pra tua noite!
Regressa ao temporal donde fugiste;
Que eu fique só aqui, mas não te acoite!
Vai-te! leva contigo essa mentira!
Carrega-te com as garras tão fatais
que rasgam-me no peito a minha dor!
E o corvo respondeu-me: nunca mais!

E fica ali pousado e quedo o corvo
Sobre o busto de Palas, tão bisonho;
Que, ao ver-lhe o duro senho carregado,
Julga-se ver um demo em pleno sonho.
No chão a sombra dele reproduz-se
Perfeitamente em linhas funerais,
E minh'alma que geme, presa e triste
Fora dela não sai! Oh! nunca, mais!

Adaptação ortográfica: Iba Mendes

trad. anônima - 1916

(consta "traduzido por 'Otis'" no periódico A.B.C. , Rio de Janeiro, 13 de maio de 1916, pag. 15)




Apud Iba Mendes no site O Poeteiro.

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