Nenhum enigma
elucidado
in Folha de S. Paulo, Ilustrada, pág.
4-8, 22/01/1998.
Há 35 anos, durante o inverno de 1963, talvez o mais frio do século, Sylvia Plath, jovem poeta norte-americana radicada na Inglaterra, suicidou-se inalando gás. Pouco tempo antes ela havia rompido com seu marido infiel, o poeta inglês Ted Hughes; seus últimos meses, ela os havia passado escrevendo quatro dezenas de poemas violentos e obcecados com a morte, reunidos depois em "Ariel".
Pertence a esse conjunto seu célebre "Papai", um texto no qual ela chega a comparar o pai a um carrasco nazista, algo que, se hoje patenteia um gosto no mínimo duvidoso, parecia então o supra-sumo do revolucionário. A combinação disso tudo e mais um contexto particularmente favorável garantiram a reputação póstuma da autora e de sua obra, que se tornaram objeto (ou, quem sabe, vítimas) de culto, de uma admiração não raro equivocada, de estudos etc.
O contexto favorável em questão era o da emergência do feminismo americano, um movimento excepcionalmente letrado e literário cujas figuras-chave se originavam em boa parte na área de letras. O feminismo precisava de pelo menos uma mártir, e Plath, jovem, talentosa e precocemente desaparecida, havia sido talhada ou talhara-se sob medida para o papel.
Mártires, no entanto, pressupõem geralmente um carrasco e, para tanto, lá estava o viúvo. Hughes reunia todas as pré-condições para ser declarado, sem julgamento, o culpado pelas misérias da vida e pelo fim trágico de sua (ex)-mulher: era homem, fora um marido infiel, era inglês e, de resto, também escrevia, o que o tornava um "competidor".
A história, contudo, é mais complexa. Plath perdera, aos 8 anos, o pai, e isso não apenas acarretou dificuldades financeiras para a família como se transformou num trauma. Ela sofria de crises de depressão e, numa delas, nos seus tempos de universidade, antes de conhecer Hughes, ela tentara se matar e acabou submetida a meio ano de internação e tratamento.
Há, além disso, o fato de que vários outros poetas americanos mais ou menos contemporâneos de Plath e estilisticamente próximos por exemplo, John Berryman também se suicidaram.
O marido, por sua vez, admirava e incentivou sinceramente sua poesia, algo que ela lhe pagou lealmente na mesma moeda. Em termos profissionais, o convívio foi produtivo para ambos. Depois da morte dela, ele cuidou de preservar sua obra e, prudentemente, evitou se estender seja sobre a vida em comum dos dois, seja sobre as causas do desfecho suicida.
Mas, para gerações de feministas e admiradoras em geral da poesia de Plath, ele é o vilão, algo que na cabeça delas parece confirmado pelo suicídio, cinco anos depois, de sua segunda mulher e pelas suspeitas de que ele teria omitido fatos importantes e destruído partes do diário da poeta.
A carreira de Hughes, no entretempo, prosperou e, em 1984, ele chegou ao topo do "establishment" literário britânico, sendo nomeado "poet laureate" (poeta laureado). Três décadas e meia depois daquele inverno, ele finalmente rompeu o silêncio, dando a público uma coleção de seus próprios poemas sobre a história toda, poemas escritos durante anos e que estarão à venda nos EUA, a partir do mês que vem, no livro intitulado "Birthday Letters".
Pela amostra reproduzida na imprensa americana pode-se, no
entanto, deduzir o resto, ou seja, o de que nenhum fato novo e
relevante será acrescentado, nenhum eventual enigma elucidado,
pois poemas dificilmente se prestam a uma função dessas. Hughes
continua em silêncio. Sylvia, por seu turno, segue segura no seu
lugar não de grande poeta (que realmente não era), mas de mito.
Nelson Ascher
(Matéria gentilmente cedida pelo autor)