e a heteronímia como reflexo da
"Era de Gutenberg"

 

Ah, não ser toda a gente e toda a parte!
Ode Triunfal — Álvaro de Campos

 

A HETERONÍMIA E A "ERA DE GUTENBERG"

Gostaríamos de expor nas linhas que se seguem algumas das nossas opiniões acerca da já tão estudada heteronímia (ou multiplicidade de seres , ou máscaras) que compõe esse ícone da literatura portuguesa — Fernando Pessoa.
A idéia da pluralidade e da multiplicidade do eu foi declarada como fundamental na poética moderna pelo próprio Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, em seu manifesto Ultimatum, de 1917 1. Diz(em) ele(s): "Só tem o direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o indivíduo que sente por vários". Essa necessidade da multiplicação do eu para o englobamento de todos os estímulos é declarada no início do próprio Ultimatum: “Os estímulos da sensibilidade aumentam em progressão geométrica; a própria sensibilidade apenas em progressão aritmética” 2.
Fernando Pessoa, nascido em 1888, é contemporâneo da “idade mecânica” 3, que, segundo Marshall McLuhan, fragmenta o Homem como numa linha de montagem fordiana ("Ah, poder exprimir-me como um motor se exprime! / Ser completo como uma máquina! / Poder ir na vida triunfante como um automóvel último modelo!" - Ode Triunfal). A sensibilidade na “idade mecânica” é estilhaçada, o que provoca no indivíduo o "poder de agir sem reação", o não-envolvimento. Reagindo a isso, a essa fragmentação, Fernando Pessoa parece agir de maneira curiosa e genial: ele divide-se para conquistar o envolvimento total com o todo. (Esse envolvimento com o todo, aproxima Pessoa da sensibilidade dos povos orientais, tão bem descrita por D. T. Suzuki em suas Conferências sobre Zen-Budismo 4: "Os membros individuais fragmentários (dos povos orientais) não podem trabalhar harmoniosa e pacificamente se não forem relacionados ao próprio infinito, que em toda realidade jaz debaixo de cada um de seus membros finitos").
Pode-se comprovar essa busca pelo envolvimento total com o que afirma Fernando Pessoa em seu Ultimatum 5: “Devemos pois operar a alma, de modo a abri-la à consciência da sua interpretação com as almas alheias, obtendo assim uma aproximação concretizada do Homem-Completo, Homem-Síntese da Humanidade”. Vivendo numa era de fragmentação e não-envolvimento, Pessoa, “antena da Raça” (Pound), através do desdobramento do eu, cria textos que dialogam entre si e no interior das mentes de nós, leitores, produzindo assim a “progressão geométrica” da nossa sensibilidade.
Diríamos, finalmente, que Fernando Pessoa é o que McLuhan chamou de “homem da consciência integral”, isto é, aquele que "em qualquer campo, científico ou humanístico, percebe as implicações de suas ações e do novo conhecimento de seu tempo” 6.

LABIRÍNTICO E BARROCO


A partir de observações de algumas características da obra de Pessoa, surgiu-nos a pergunta: Fernando Pessoa seria Barroco? Se considerarmos as afirmações de Omar Calabrese, sim: “Por 'barroco' entenderemos (...) categorizações que 'excitam' fortemente a ordenação do sistema e que o desestabilizam em algumas partes, que o submetem a turbulências e flutuações e que o suspendem quanto à resolubilidade dos valores” 7.
Como vimos anteriormente, Pessoa “desestabiliza” um modo de ver e sentir o mundo, criando uma obra que, tomada no seu conjunto, propõe uma nova ordenação da sensibilidade, sem deixar de produzir (através dessa nova ordenação) um sentimento de caoticidade (entendendo caoticidade como imprevisibilidade ou ininteligibilidade da informação estética) no momento da fruição dessa obra. Essa caoticidade é provocada justamente pela superposição das informações advindas dos poemas/poetas, que se configuram como labirintos de espelhos. Ao tentarmos compreender a lógica de um dos espelhos, o outro espelho modifica e complexifica a informação daquele, e assim ad infinitum ("Falar desse poeta e dessa obra equivale a mergulhar num atordoante labirinto de espelhos" - Ferreira Gullar). O labirinto, novamente segundo Calabrese, "é apenas uma das formas do caos, entendido como complexidade, cuja ordem existe, mas é complicada ou oculta" 8. Essa ordem "oculta" produz a perda do referencial acarretando o que Calabrese chama de "prazer da obnubilação", ou seja, o prazer de ver-se perdido e ser instigado a encontrar o centro do labirinto. O prazer motivado por essa des-orientação e pelo "mistério do enigma" parece-nos semelhante ao prazer sentido por nós ao nos defrontarmos com a obra de Fernando Pessoa. Diante da proliferação dos textos e heterônimos pertencentes à criação labiríntica do autor de Mensagem, os pontos de referência turvam-se e ocultam-se, fugindo de nossas mãos qualquer fio de Ariadne e causando em nosso espírito o prazer intelectual de descobrir uma ordem onde aparentemente não existe nenhuma, só caos e mistério. Novamente, seguindo Calabrese, poderíamos dizer que o labirinto pessoano cria um "saber aberto", posto que em seus meandros e intersecções podemos sempre descobrir novas ramificações e caminhos para novos e surpreendentes significados, deixando o leitor "sempre sujeito ao risco da perda de orientação" 9.
O labirinto, figura típica barroca, representa à maravilha a obra de Fernando Pessoa (considerando a criação dos heterônimos também como parte da sua obra), que ao mesmo tempo nos des-orienta e nos orienta para "Um Oriente ao oriente do Oriente”.

 

Paulo de Toledo

 

NOTAS:


1 - TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Moderna e Modernismo Brasileiro. Petrópolis/RJ, Editora Vozes, 6ª ed., 1982, p. 248

2 - Ibid., p. 256

3 - MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem. São Paulo, Cultrix, 10ª ed., 1995. A "era mecânica", segundo McLuhan, é fruto da tecnologia do alfabeto fonético, que "produz uma divisão tão clara da experiência, dando-nos um olho por um ouvido e liberando o homem pré-letrado do transe tribal, da ressonância da palavra mágica e da teia do parentesco" (p. 103). Essa "liberdade" produzida pelo alfabeto fonético acabou por fragmentar o homem ocidental, fazendo com que ele sofresse a "compartimentação de sua vida sensória, emocional e imaginativa" (p. 107), o que possibilitou a ele se distanciar do mundo e alcançar a capacidade analítica e generalizadora de organizar a vida. Citando novamente McLuhan: "Se o homem ocidental sofre a dissociação de sua sensibilidade interna pelo emprego do alfabeto, também conquista a liberdade pessoal de dissociar-se do clã e da família" (p. 107). Com a chegada da "era Gutenberg", essa fragmentação foi acelerada até chegarmos aos nossos dias com a "era fordiana" de divisão e especialização do trabalho, a qual, por seu turno, vai abrindo caminho para uma nova fase de envolvimento total — a "era eletrônica".

4 - SUZUKI, D. T. Conferências sobre Zen-Budismo, em: SUZUKI, D. T., FROMM, Erich e MARTINO, Richard de. Zen-Budismo e Psicanálise. São Paulo, Cultrix, 1970, p. 15

5 - Vanguarda Moderna e Modernismo Brasileiro, p. 259

6 - MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem, p. 85

7 - CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca. São Paulo, Martins Fontes, 1988, p. 39

8 - Ibid., p. 145

9 - Ibid., p. 151/152

 

(matéria gentilmente enviada pelo autor para Pop Box)


 

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes