Poemas de Claudio Daniel

 

Zauberbuch
a Jorge Luis Borges

Todos
os livros
— os Sutras, o Corão
os Vedas, o Zohar —
são enigmas: jardins verticais
rios insubmissos
listras de mármore possesso;
todas as páginas
— em lâminas de argila, pele de carneiro
folhas de papyro ou rubro ouro esculpido —
são impossíveis, viscerais
areia alucinada.
Os livros, Borges, inventam os leitores
e os nomes de vales, savanas, estepes
e de amplas avenidas que ignoramos;
vivemos essa efêmera realidade
para lermos suas secretas linhas,
e nossos filhos e netos.
Um dia, porém, os livros
— últimos demiurgos — desaparecerão,
como o grifo e o licorne
e ler será apenas lenda.




Pequeno Sermão aos Peixes
a José Kozer

a
água
é luz, a água
é sêmen, prata, mercúrio
espelho esférico de imagens trêmulas
que brotam, flutuam e cessam
oh esplêndidas carpas!
entre rajados cardumes, coroas de branca espuma
e radiantes medusas
— lâminas prismáticas de uma vasta geografia —
vi o galho curvo da cerejeira
uma nuvem, meu rosto
e a rã



Liber Aquae
a Luiz R. Guedes

Um
livro da água;
espiraladas páginas
de jade em tumulto;
côncavo espelho desolado
em que o tempo lento flui;
quem teceu — em musselina —
a tormentosa tapeçaria
de sua secreta escritura?
A esfíngica branca lua abissal
e o temerário dragão-de-nébula
são líquidas ficções alucinadas
de suas vagas de chrysoprasu?
Heráclito leu em seus enigmas aquosos
aquilo que Lao-Tsé pensou em Cathay,
alfombra de arqueiros e calígrafos?
O mar — floresta sinfônica, seminal —
verde lume — seda enlouquecida
em arabescos — metáfora insidiosa
da eternidade — num círculo de águas



Encantação do Tigre

o
mar;
digo: tigre,
pupilas de verde fúria;
suas tígricas vagas, garras,
punhais esfervilhantes
em arcadas de espuma, presas aguçadas;
o fluir e o refluir de suas águas
em ondulação, tigrinoso emblema da fera,
cantabile alabarda em jaspe e luzidia prata urdida,
nos seduz como selvagem dança sarracena,
seus lenços de tépida alfazema escura;
dissolvidos em seu puro olhar
de algas em si algas, najas, corais
em opalino alvoroço musgoso,
não mais resistimos, estancados na argêntea areia,
e entramos em suas águas de água
sob o sol; aí cessamos.




J' aime Joyce

um
dia dédaluz
d' histéria: ninmelífluas
y fáusticos anemistriões
na doida dublinduende d' odinzeus
tuas dádivas: dúvidas y dívidas!
pústulas pútridas d' amargavida
y a deus disse: ah, deus...
um dia um fado um medo
em dublinfluente
jaz em mim




Ode Serial
a Elson Fróes

I

fagulhas
de ouro
_ a fala
do leão


II

begônias
do branco
ao rubro
sempreluz


III

cantovital
flui lírico
da jugular
à carótida

 


Li T'ai Po

no
jardim
verde-jade
flores líquidas
fluem, no tanque:
_ aqui é além
de Qualquerparte




Lição da água

I

o
mar,

fêmea
possessa.

sua fala
de suave

lâmina
abissínia;

o ritmo
ondulado,

que flui
em espiral;

a precisão
especular

do teatro
aquático;

o secreto
pugilato

que sulca
as rochas.


II

o
mar,

leoa
furiosa,

ensina
ao poeta

sua arte
plumária;

a dança-
escultura

das vagas
incessantes;

a pulsação
do poema,

seus ciclos
menstruais.

o
mar

ensina
ao poeta

sua arte
sem arte.

(Poemas do livro Yumê)

Leia uma entrevista com o poeta em Balacobaco

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A ESCRITURA COMO TATUAGEM e
A POÉTICA SINCRÔNICA DE SOUSÂNDRADE

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