PREFÁCIO AO ANU


O Anu nasceu um dia lá na roça, num sítio próximo à cidade de Itaguara, onde, na noite anterior, havia apresentado O Corvo. Acordei com a aquele cheiro gostoso de mato e esterco de vaca, mas ainda tomado pela lembrança da apresentação do lúgubre poema de Edgar Alan Poe. Comecei a gracejar então os versos de O Corvo num sotaque meio caipira, ambientando-os ao lugar em que me encontrava. Gostei da brincadeira, e naquela mesma manhã escrevi dez estrofes da nova versão.
O Anu mantém a mesma estrutura e até o mesmo ritmo do poema The Haven, o que também acontece na tradução de Fernando Pessoa. É impressionante, porém, o humor e a leveza que o poema assume nesta versão tropical. Seria próprio do jeito brasileiro e interiorano de falar, esta suavidade? Pode ser, mas com certeza o humor e a leveza já estavam lá, mesmo que ocultos, no poema original de Poe. Senão seria impossível operar esta forma de "transcriação", a minha e a de Fernando Pessoa.
As palavras e os termos utilizados na versão tropical de O Anu, devo às lembranças dos dizeres da minha vó Almozina e da minha mãe Náia, ambas nascidas nas brenhas dos sertões do norte de Minas. Se há um lugar de onde o protagonista do poema tira as suas falas, é da tradição popular do norte mineiro. O Anu, ambientado em uma realidade tão distante do universo original do poema O Corvo, só comprova a universalidade dos versos de Edgar Alan Poe, ao discorrer sobre a fatalidade cruel da condição humana.


Carlos Versiani dos Anjos



O ANU



Uma noite lá na roça, quando eu tocava a viola, assim meio amuado,
umas moda bem das antiga,
e já quase que tirava uns cochilo, escuitei o que aparentava
o barulho de arguém que batia lá na  minha porteira,
mais nada.

Ah, que alembro disso demais, sô! Era na geada de maio
e a fogueira tava quase no fim. O fumacê formava uma sombra esquisita...
Acho que era pra mode esquecer aquela mardita, que hoje veve lá no céu.
Essa que hoje tem o nome escrito nas contas do Rosário de Nossa Senhora,
mas sempre alembrada aqui na terra.

Ai, ai, chegava inté a tremer de arrepio. Cada quaresmeira roxa
fazia pensar em assombração. 
Mas eu ía matutando com meus miolo: 
"Deve de ser argum conhecido batendo na porteira, 
arguém que veio fora de hora. 
Só isso, né mais nada não."

E mais valente ainda, já sem um pingo de cisma ou de medo,
"sinhô", eu gritei, "ô dona, ocês vai me adescurpá
mas é que eu já ía dromindo quando ocês veio batendo toda vida na minha porteira
que mal mal escuitei... Escancarei antonce a porteira e... 
Uai, nenhum'alma viva apareceu. Era só breu.

Fiquei oiando aquela escuridão, foi me dando uns troço esquisito nos nervo...
"Ah, sô, como eu gostava que toda noite fosse só noite de viola!"
É, parecia até que eu tava meio alterado, cismando com coisa que nunca ninguém cismou...
Mas o breu era medonho! Um sossego...  Nem um pio...
O único dizer que foi ouvido foi o dito do nome dela.
Eu gritei o nome da falecida. E o eco repetiu, judiando de eu. 
Só isso, mais nada. 

Pra dentro antonce vortando, impressionado demais da conta, 
num demorou nadinha, escuitei o barulho tra vez: tum, tum...
"De certo", eu falei, "essa confusão é na minha janela. 
Vamo ver que diacho que tem nela, e o que são esses sinal."
Meu coração inté disparava, assuntando esses sinal.
"Ah, é a ventania sô, tem mais nada não."

Abri antonce a vidraça e ói,  que cheio de rompante
entrou todo prosa o Anu, que conheço né de hoje...
Num disse um a, nem cumprimentou. 
Folgado, folgado, pousou no muro de lá de dentro de casa. 
Numa estauta de São Romão que tem em riba do muro de lá de dentro de casa
Foi, pousou e nem tchum


Num é que esse bichão esquisito inté aliviou minha aflição,
com a soberba do seu jeitão... 
"Ô, ocê parece meio depenado, sô, 
mas é poda de rico, né, encomendada... 
Ó veio Anu retirante lá das terras de Exu!
Conta de uma vez como é que chamam ocê lá nos quinto dos inferno!"
Disse o Anu: "de jeito nenhum."


Fiquei besta de ver esse bicho falar tão bem,
inda que num formasse idéia da sua falação.
Mas ocês há de concordar comigo, que nunca aconteceu de um filho de Deus
topar com um bicho desses pousado em riba do muro de lá de dentro de sua casa;
ave ou bicho desses na estauta de São Romão que tem em riba do muro de lá de dentro de sua casa
chamado "de jeito nenhum".

Mas o urubu em riba da estauta num conversou mais nada, cheio de soberba,
só aquelas palavra, dum jeito mais doído do mundo.
Ficou ali parado, nem tchum. E eu, com minha cachola,
suletrei inda abestado: "amigo, sonho, tudo acaba, 
todo mundo já foi embora, sô. Amanhã ocê também vai." 
Disse o Anu: "de jeito nenhum"

Creindeuspadre! O esprito tremeu todinho, pelo dizer tão bem rematado.
"De certo", disse eu, "é esse seu costume de falar.
Aprendeu com argum dono, que a desgraceira e o abandono
perseguiram inté que o talo da alma ficasse bem ruim,
e a toada de desespero da sua cantiga de ruindade
era este refrão: de jeito nenhum."

Mas fazendo inda a ave escura sorrir minha penura,
sentei diante da bicha, da estauta de São Romão e do muro lá de dentro de casa;
e agachado numa esteira, pensei de muita maneira:
"que diacho queria esta ave agourenta dos tempos de Belzebu,
essa ave preta e agourenta dos tempos de Belzebu,
com aquele: de jeito nenhum"?

Comigo isso cismando, mas sem poder dizer um a, 
pois o anu oiava pra mim que nem assombração...
Isto e mais ía cismando, que a cabeça chegava a pongar 
na renda do sofá, onde o candieiro formava umas sombras esquisita...
Naquele sofá onde ela no meio das sombra esquisita
um dia ainda há de deitar... De jeito nenhum.


Fez antonce um ar mais carregado, como cheio de mandinga
dos terreiro de orixá, como as dança dos terreiro de orixá.
"Mardito", disse pra eu memo, "Deus deu ocê, pela  mão de todos os santos,
a graça de esquecer. Isto foi de muita valia. Toma,  esquece com seu sofrer
o nome desta que ocê não esquece, e que é culpada do seu sofrer.
Disse o anu: "de jeito nenhum."

"Cigano", eu falei, "cigano - ou tinhoso, ou alma ruim - 
Fosse o demo ou a chuva braba que trouxe ocê pra minha porteira,
Pra esse barraco, esse sossego, pra esse breu, esse arvoredo...
Fala pra este esprito que ocê chamou!
Se tem algum consolo pra este esprito que ocê chamou!"
Disse o anu: "de jeito nenhum."

"Malino", eu falei,  "malino - ou tinhoso, ou alma ruim - 
Por Deus do céu, perto de quem eu e ocê num semo ninguém,
fala pra esse coração apaixonado, se quando for dessa pra mior, 
vai poder ver aquela alma hoje guardada pelos braços da Santíssima
e pela legião dos anjo do senhor!"
Disse o anu: "de jeito nenhum."

"Arre! Que esse berro separe a gente de vez! Eu falei procê ir embora, sô!
Vorta às treva, à ventania! Vorta aos quinto dos inferno!
Num deixa nenhum verso que possa alembrar a mentirada que ocê contou!
Deixa eu ficar sozinho, sô! Vai embora da minha porteira!
Desencosta do meu peito, tira a sombra do meu portão!
Disse o anu: "de jeito nenhum."

E o Anu na noite que num acaba nunca tá inté hoje, espia só,
na estauta de São Romão que tem em riba do muro de lá de dentro de casa.
Seus óio tem um sofrer medonho, de um demo que ainda tem sonho. 
E a lua fez o seu vurto feio no chão, que num acaba mais.
E meu esprito desse vurto feio que tem no chão, e num acaba mais,
vai livrar um dia, ah, se vai... De jeito nenhum! *

 

*   "O Anu", uma transcriação de “O Corvo” de Edgar Allan Poe. Na versão do poeta mineiro Carlos Versiani, o corvo sombrio e fantasmagórico de Poe é traduzido de forma inusitada por este pássaro do campo, comum e mal cheiroso. Esta versão inclusive já despertou interesse em Portugal. Recentemente o poeta português Alberto Pimenta solicitou autorização para que pudesse usá-la nas suas aulas de tradução na Universidade de Lisboa.

 

In CADERNOS TEMÁTICOS nº 4, fevereiro de 2005.
Sec. de Educação Profissional e Tecnologica. Brasilia.




trad. Carlos Versiani - 2003(?)





arquivo em pdf: cadernos_comunica.pdf

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