|
|
Dante Alighieri
Itália, 1265-1321
Trad. Diego Raphael
–—
SEXTINA
Ao dia exíguo e ao grande anel de sombra
exausto chego, e ao branco das colinas,
quando já se desfaz a cor na erva:
não perde, entanto, o meu desejo o verde,
pois enraizado está em dura pedra
que fala e sente como uma senhora.
Similarmente esta nova senhora
está gelada como neve em sombra;
não a remove, senão como pedra,
o doce tempo que envolve as colinas
e que transforma todo o branco em verde
porque as recobre de flores e de erva.
Quando ela traz uma guirlanda de erva,
tira da nossa mente outra senhora:
porque tão bem se mescla o louro ao verde
que Amor acorre e vem ficar-lhe à sombra,
a me encerrar entre baixas colinas,
muito mais forte que calcária pedra.
Mais régia é sua beleza do que pedra
e seu golpe sanar não pode a erva;
que eu já fugi por planos e colinas
tentando me afastar desta senhora;
e ao seu lume não vejo qualquer sombra
de graves muros nem de fronde verde.
Vestida um dia a vi, toda de verde,
tão bela que ela já guardara em pedra
esse amor que transporto à sua sombra,
onde eu a quis em grato prado de erva
enamorada, tal rara senhora,
e cercada de altíssimas colinas.
Mas bem os rios retornam às colinas
antes que eu sinta todo o lenho verde
se inflamar, como ocorre a uma senhora,
por mim; então irei dormir em pedra
todo o meu tempo e me servindo de erva,
só para ver o trajo seu em sombra.
Quando quer que as colinas tragam sombra,
sob tão belo verdor esta senhora
a faz oculta, pedra sob a erva.
°°°
CANÇÃO
Amor, agora vês que esta senhora
o teu valor não teme em algum tempo,
que d'outras damas já se fez senhora;
e ao perceber que era minha senhora
pelo teu raio que me envolve em luz,
da crueldade se tornou senhora;
ela não coração tem de senhora,
mas como o de uma fera imerso em frio,
que pelo tempo quente ou pelo frio
me faz ter na memória uma senhora
que fosse feita d'uma bela pedra
por mão de quem melhor talhasse pedra.
E eu, que mais pertinaz sou do que pedra
a te servir por tão bela senhora,
oculto levo o golpe de uma pedra
com a qual tu me feriste como a pedra
que te cansou durante muito tempo,
vindo ao meu coração, onde sou pedra.
Pois não se descobriu nenhuma pedra
ou de esplendor do sol ou sua luz,
que virtude tivesse ou mesmo luz
que me afastar pudesse desta pedra,
p'ra qu'ela não me atasse com seu frio
nem me levasse a ter da morte o frio.
Senhor, tu sabes que o vigor do frio
transforma a água em cristalina pedra
lá sob a tramontana, onde faz frio,
e o ar também em elemento frio
se faz; assim a água é tal senhora
naquela parte por razão do frio:
então diante de um semblante frio
meu sangue é frio durante todo o tempo,
e o pensamento que me encurta o tempo
se me converte todo em corpo frio,
que se dissolve por meio da luz
por onde entrou a rigorosa luz.
Nela a beldade expõe toda a sua luz;
assim de toda crueldade o frio
lhe chega ao coração, que não há luz:
porque no olhar tanto me assalta luz
quando a contemplo, qu'eu a vejo em pedra
aonde quer eu lance a minha luz.
A mim seus olhos cedem doce luz
e não posso querer outra senhora:
se mais piedosa fosse essa senhora...
pois eu a chamo à noite ou mesmo à luz
e sirvo-a em qualquer lugar e tempo!
Por tal viver desejo muito tempo.
Porém, Virtude, anterior ao tempo,
ao movimento e à mais sensível luz,
apieda-te de mim neste mau tempo;
vai ao seu coração, que já é tempo,
e assim por ti desapareça o frio
que não me deixa ter, com'outros, tempo:
que se me chega o teu mais forte tempo
em mau estado, essa bondosa pedra
há de me ver deitado em pouca pedra
p'ra só me levantar depois do tempo,
quando verei se no mundo senhora
houve mais bela e acerba que senhora.
Canção, trago na mente uma senhora
tal que, mesmo se assemelhando à pedra,
me dá vigor, e o homem vejo frio;
então eu ouso e faço desse frio
o novo que por tua forma luz
e não sonhado foi em algum tempo.
°°°
BALADA
Vós que tão bem sabeis falar d'Amor,
ouvi minha balada piedosa
que fala d'uma dama desdenhosa,
a qual roubou-me o peito por valor.
Tanto desdenha aquele que a admira
que dele abaixa o olhar em amargura,
pois ao redor de seus olhos retira
um gênio a crueldade e desventura.
Mas este olhar traz a doce figura
que faz a alma gentil dizer: "Mercê!"
Tão virtuosa que, quando se vê,
suspira o coração imerso em dor.
Eis o que diz: "Serei um tanto hostil
com aqueles quem desejam meu olhar,
pois nele trago o bom senhor gentil
que já me fez sentir seu dardejar".
Pois acredito que cerra o olhar
pra observá-los quando bem lhe apraz;
desse modo a formosa dama faz
quando se olha, para o próprio honor.
Eu não espero que pela piedade
deseje contemplar algum semblante,
pois é dama feroz em sua beldade
a que no olhar transporta Amor galante.
Mas tanto quer guardá-lo que, possante,
não me permite ver tanta virtude;
no entanto o meu desejo não se ilude
e luta com o desdém, o meu temor.
°°°
ESTÂNCIA
Meu peito servidor
vos recomenda Amor, que vos tem dado,
e Mercê d'outro lado
de mim vos traz alguma relembrança;
pois do vosso valor
antes qu'eu tenha muito me afastado,
me tem já confortado
de retornar a minha doce esp'rança.
Ó Deus, pouco permaneci na estância,
segundo o parecer!
assim para vos ver
quer regressar a mente em segurança,
pois tanto a caminhar ou descansando,
dama gentil, estou a vós me dando.
°°°
CANÇÃO
Vós, que o terceiro céu sabeis mover,
ouvi o que o meu peito vem depor,
que é novo e não direi a mais ninguém.
O céu que segue já o vosso valor,
pois sois criatura doce de se ver,
lançou-me neste estado e me detém.
A fala de minha vida, só desdém,
com dignidade a vós há de chegar;
vos peço que atendeis ao meu pedido.
Direi o que o meu peito tem sentido,
como a alma triste nele vem chorar
e como quer um esp'rito removê-la,
pois nasce no fulgor de vossa estrela.
Era a vida do coração dolente
um doce pensamento, que a toda hora
partia rumo aos pés do meu Senhor,
onde glorificada era a senhora
que a mim se dirigia docemente
e minh'alma falava: "Eis meu penhor!"
Agora surge quem rouba o louvor
e me domina com tanta virtude
que meu peito estremece e além se vê.
Este me faz uma dama requerer
e diz: "Quem salvação quiser, saúde
o olhar desta senhora, meu retiro,
se não temer a angústia dos suspiros".
Assim vê o inimigo e desfalece
quem me falava, humilde pensamento
daquela dama no céu coroada.
A alma lamenta tanto sofrimento
e diz: "Eu sofro, pois desaparece
aquele que me tinha confortada!"
E dos meus olhos fala, atormentada:
"Ah, quando terão visto esta senhora?
A mim eles não mais se voltarão?"
Eu digo: 'É que nos olhos dela vão
os que torturam meu olhar agora'.
"Não me valeu notar: quem me conforta
não me contempla mais, pois estou morta!"
'Não estás morta, mas estás sentida,
alma que de tal modo te lamentas',
diz um espírito d'amor, galante.
'Aquela dama que tu vês, atenta,
mudou de tal maneira a tua vida
que sentes medo, tanto és fatigante.
Vê como tem piedade em seu semblante,
o quanto em sua grandeza ela é cortês;
pensa em chamá-la sempre de senhora!
Porque se não te iludes, sem demora
toda a beleza dos milagres vês,
assim dizendo: "Amor, senhor veraz,
eis tua serva; faze o que te apraz"'.
Canção, eu creio que poucos serão
aqueles que compreendam tua mensagem,
tanto te fazes cansativa e forte.
Se, por ventura, chegas da viagem
a alguém que não entenda a inscrição,
a alguém que não entenda a tua sorte,
humilde, peço que te reconfortes,
dizendo-lhe dileta esta querela:
"Ao menos vede bem como sou bela."
°°°
SONETO
Palavras que no mundo vão correr,
vós que nascestes com meu nascimento,
dizendo à dona de meus sentimentos:
"Vós que o terceiro céu sabeis mover",
segui aonde ela está; deveis saber
que há de chorar com vosso esquecimento;
dizei: "Nós somos vossas, mas o intento
quer que não mais volteis a nos rever".
Com ela não fiqueis, não é Amor;
então vagai com vosso ar dolente
como as irmãs antigas ao penhor.
Quando encontrardes dama de valor,
chegai dizendo a ela, humildemente:
"A vós viemos prestar nosso louvor".
°°°
CANÇÃO
O doloroso Amor que me conduz
à morte para deleitar aquela
que tinha meu esp'rito consumido,
tirou-me e ainda tira-me esta luz
que ao meu olhar lançava tal estrela,
pois dela não me cria ressentido;
agora o golpe que tive escondido
se manifesta por imensa dor,
a qual nasce do fogo
que me privou do jogo,
tanto que mal maior eu não espero;
a minha vida (que me expira logo)
suspira à morte e de tal modo diz:
"Morro pela de nome Beatriz".
Seu doce nome que me punge o peito
todas as vezes que eu o vejo escrito,
me fará novo cada sofrimento;
então meu corpo há de ficar desfeito
e será meu semblante tão aflito
que o que me vir será todo lamento.
Assim não haverá tão brando vento
que não me arraste, e ficarei ao frio;
por este serei morto
e o sofrimento o porto
d'alma que há de vagar errante e triste;
pois um no outro encontrará conforto,
lembrando aquele rosto que diviso,
com o qual nada parece o Paraíso.
Pensando o que d'Amor tem comprovado,
minh'alma do prazer não quer conceitos
nem vê o sofrimento que a pretende:
pois quando for meu corpo calcinado,
há de seguir Amor caminho estreito,
chegando Àquele que tudo compreende;
se a paz os seus pecados não ascende,
há de partir na angústia de que é digna;
mas disso não se assenta,
e estará tão atenta
imaginando aquela onde se encontra,
que dor nenhuma mais experimenta;
porque se neste mundo eu o perdi,
no outro Amor há de me ressarcir.
Morte, que dás prazer a tal senhora,
por piedade, antes que eu te prove,
vai perguntar a ela
porque a luz de seu olhar me move
ao sofrimento e logo me abandona.
Se de outros ela é senhora e dona,
fala e então perdoa o pecador,
que assim hei de morrer sem tanta dor.
°°°
ESTÂNCIA
Senhora, este que vai com assiduidade
em vosso olhar e é dono de pujança,
me traz a segurança
de que sereis amiga da piedade;
mas demorado está em sua estância,
e acompanhado por muitas beldades
atrai toda bondade
a si, como a mostrar maior pujança.
Então sempre conforto a esperança,
a qual tem sido já tão combatida
que a teria perdida,
se não fosse o Amor
que o mal abate e lhe cede valor
com sua visita e com a relembrança
do ameno sítio e da suave flor
que com uma nova cor
a minha fronte adorna,
mercê que a vossa cortesia entorna.
°°°
CANÇÃO
Amor, que tens no céu tua virtude
(como o sol o esplendor,
pois lá mais se aprecia o seu valor,
onde seu raio mais nobreza prova),
já que a escuridão e o gelo iludes,
assim, nobre senhor,
de um peito expulsa todo o dissabor,
que a ira a ti não faz mais dura prova:
nasce de ti o bem que não se estorva,
o qual o mundo inteiro está à procura;
sem ti nada perdura,
nada que o bem nos faça realizar,
como a pintura em tão escura parte
que não deixa mostrar
a luz da cor, o brilho de sua arte.
Fere-me o peito sem cessar tua luz,
como o raio na estrela,
porque minh'alma faz-se escrava dela,
escrava de tua força inteiramente;
nasce um desejo então que me conduz
com sua doce loqüela
a contemplar as coisas que são belas,
tão prazerosas quanto mais frementes;
por esse meu olhar veio-me à mente
uma dama que me tem a ela preso,
também o peito aceso,
como água por clareza a chama acende;
pois que à sua chegada, os raios teus,
com os quais ela me esplende,
vieram todos ter com os olhos meus.
É tão bela em seu ser e tão gentil
nos atos e amorosa,
que o pensamento meu deixa-a formosa
em minha mente, onde a guardo bem;
não que seja por si mesma sutil
pra tão sublime cousa,
mas para o que ela faz tão virtuosa
de tua pureza a força ela obtém.
Conforto é sua beleza pro teu bem,
enquanto julgar pode-se o efeito
em tão nobre sujeito,
assim como é o sol sinal de fogo,
o qual a luz não dá, tira virtude;
no entanto, além, tão logo
faz com tenha o aspecto seu saúde.
Então, senhor de natureza pura,
a generosidade
que ao mundo vem é toda alta bondade
e seus princípios vêm de tua alteza;
vê como a minha vida é só tortura
e tem de mim piedade,
que o teu ardor por toda a sua beldade
me faz sentir, assim, grave aspereza.
Fá-la sentir, Amor, por tua grandeza,
o meu desejo de só querer vê-la.
Mas não permitas que ela
em juventude me conduza à morte;
ela não sabe o quanto ela me apraz,
nem como o amor é forte,
nem como traz no olhar a minha paz.
Se me ajudares, te darei louvor,
a mim rico presente,
pois sei que minha força está ausente
e que não posso defender minha vida;
o meu esp'rito está tão sem vigor
que não estou presente,
e se comigo não és complacente,
que possa então viver uma sobrevida.
Que seja a tua força, então, sentida
por tal senhora, que tanto a merece;
porque bem nos parece
que graças deva ter por companhia,
como a que veio ao mundo iluminada
pra ter soberania
sobre os que a têm na mente celebrada.
°°°
SONETO
Dama gentil, às vossas mãos envia
meu coração o espírito sem vigor:
e tão dolente ele se vai que Amor
o mira com piedade e assim o desvia.
Vós o legastes à sua senhoria
de tal modo que não mais tem valor
e apenas isto diz: "Ó meu senhor,
o que quereis entrego sem porfia".
Bem sei que o vil contente não vos faz;
mas a morte, que a mim não foi servida,
vem se alojar amarga no meu peito.
Minha dama gentil, enquanto há vida,
para que eu morra consolado e em paz,
não me negueis semblante tão perfeito.
™˜
veja os originais
|
|
|
|