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Como na literatura e nas artes figurativas (ou visual), a música contemporânea não parece ser menor por objetivos e resultados, ao menos nos seus resultados mais prestigiados. A forma polifônica do trabalho de Luciano Berio é um exemplo de impostação lúcida da expressão do nosso tempo. Como em The Waste Land (1922) Thomas Stearns Eliot se aplicava de estilos diferentes, ritmos e citações antigas e moderníssimas. Nos finais dos anos '60, Luciano Berio nos apresenta um trabalho denominado Sinfonia, de ritmos e propostas genéricas variadas que, contemporaneamente em multidões, esboçam a máquina polifônica que nos permanece querida na memória: tema por tema, motivo musical por motivo musical, pela beleza singular e distinta delas. E ainda porque na nossa mente parece incapaz de compreendê-los como se fossem algo uníssono. Contudo com Berio, já temos uma consciência pós-moderna: que não é escolar! É certo que isso também não excluiu o semblante da pós-modernidade; uma junção ao clássico [e, atenção, não como forma ou estilo a se alcançar]: O título Sinfonia - escreve Luciano Berio - não pretende sugerir analogias com a forma clássica, estando, mas, intensa etimologicamente como os sonidos de oito vozes unidas ou, de modo geral, como o tocar tantas coisas, situações e significados diferentes. Há o experimentalismo  23 , a intertextualidade, o tipo de abertura a multimedialidade e a transgressão das artes. "O texto da primeira parte", informa-nos Berio, "é constituído por uma série de fragmentos brevíssimos tratando-se de Lê cru lê cuit de Claude Lévi-Strauss, em especial, daquelas partes do livro onde o autor analisa a estrutura e a simbologia dos mitos brasileiros de origem aquática e de outros mitos caracterizados pela semelhança de estrutura. A segunda parte de Sinfonia é um tributo à memória de Martin Luther King. As oito vozes remetem simplesmente os sons que constituem o nome do mártir negro até a enunciação completa e inteligível do seu nome. O texto principal da terceira parte é formado por fragmentos, trata-se de The Unnamable de Samuel Beckett, que no geral, traz-nos um grande número de referências e citações cotidianas". E ainda  24 , deseja-se prestar atenção à proposição de Berio que "a mesma experiência pode dar-se também no não entender" deve se considerar essencial "a mesma natureza do procedimento musical". Em outras palavras, a música de L. Berio mesmo valendo-se da linguagem verbal, não se faz reentrar no cômputo. Colocamos uma canção de Schubert outra ópera lírica oitocentista [que é então a representação de um acontecimento ou de uma estória também dramática], entretanto, ela arrasta preferivelmente a verbalização num antro onde o eco instrumental e o significado da palavra se unem em um binômio onde são estrangulados, cortados e roubados em conteúdo semântico originado de uma outra respiração. Exemplos completos e fraseados em Sinfonia se têm em abundância, a dramaticidade nos deixa de pé, ou melhor, eleva-se em intervalos, únicos como aquela de uma das vozes que fala ao público. Como realização da função do artista, até Dylan Thomas se valeu da palavra da língua inglesa revolucionando as possibilidades semânticas, tanto para fazê-la prosodicamente sensível quanto semanticamente quase inacessível. A diferença substancial que sulca a fundo o limite entre The Waste Land e Sinfonia são propriamente o tipo de ambigüidade fascinante, lírica, da composição musical em comparação à incompatibilidade de estilos no seguimento de The Waste Land. O projeto é aproximadamente o mesmo: usar de precedentes [para Berio será antes de tudo o Mahler da Segunda sinfonia] cujas citações foram propostas novamente em contextos diversos; e se, para Berio, Lévi-Strauss e Beckett constituem as referências literárias das quais se serve o ragtime, a obra Tristão e Isolda de Wagner, London Bridge representam a música citada ou imitada do texto literário eliotiano. Com Sinfonia nos é oferecido uma conciliação de elementos heterogêneos, uma pacífica convivência entre eles. Enquanto para T. S. Eliot é a diferença, a incompatibilidade [senão intelectual] das partes a fazê-la defensora. A ansiedade que qualquer um pretenderia observar em Sinfonia é um aspirar leve, quase imperceptível, e ainda a ansiedade de algo já pretérito - pós-industrial - que logo não é muito comum com o gélido consórcio dos homens que selaram pactos pela intervenção da radiofônica de The Age of Anxiety de W. H. Auden, onde, para manter um paralelo com a música dos primórdios novecentista tomá-lo-ão com as devidas cautelas e uma longa observação às implicações.

É propriamente esta procura da compatibilidade dos opostos [ou dos dessemelhantes] a caracterizar a lírica de Dylan Thomas. Ele tem consciência plena dos tipos obscuros da sua própria escrita, daquele tipo de compressão das imagens e dos conceitos aos quais se torna difícil atribuir um sentido. Em uma carta de 1933, o ano precedente a publicação de 18 Poems, prima coletânea de versos dele. Sendo já riquíssima pelas variações sugestivas e uma exemplificação da profundeza thomasiana, ele escreveu a Pamela H. Johnson:

“Não há qualquer necessidade para que as grandes verdades do mundo e as grandessíssimas variações delas devam ser tão simples a compreensão da mente mais ingênua. Aqui, há coisas e coisas preciosas, coisas complicadas onde também aquele que as escreve não compreende o que está escrevendo".

O foco é que a profundidade [ou negrumidade] de Thomas não joga dilacerando o mundo, mas o restitui unitário numa conciliação das partes. É como se Dylan somasse um comentário a uma situação particular ou a uma imaginação facilmente objetiva nos tipos essenciais.
E isto que fica é o comentário, mas também, é testemunhal de um fato real ou fantástico que permanece em parte elíptico. O ritmo é forte e ecoa no líquido:

I
Todos tudo e toda a alavanca de mundos áridos. 
Fase do gelo, o oceano sólido,
Tudo do óleo, o tombo de magma.
Cidade em primavera, a flor gerida,
Voltas na terra que se volve as cidades
Cidades em volta de uma roda de fogo. 
...
III
...
Praças, nestes mundos o círculo mortal.
    
Floresça, floresça a fusão das pessoas,
Oh, luz no zênite, o broto unido,
E a chama na visão da carne.
Fora do mar, a via de óleo,
Cavidade e sepultura, o sangue disfarçado,
Floresça, floresça, todos tudo e todos...  25 


A tradução é aceitável, poderiam se dar como válido e insuficiente. Porém, no geral, o que constitui o sentido completo fica inalterado: exortação a uma tomada de consciência intrínseca, pacificadora entre os elementos de assuntos mundiais a leis de espaço e tempo. Mesmo se as aproximações léxicas sejam um tanto quanto audaciosas [e a sintaxe duvidosa], é compatível a mentalidade do poeta, e na unidade formal da composição, para determinar aquela ausência de intranqüilidade que outras idéias heterotopistas. Digo outras, mas, eu deveria dizer as idéias heterotopistas, pois parece mais formal dessa forma ao verso regular e ao hemistíquio claro, estrófico, pontualmente paronomásia (pararima), o sentido de uma convivência possível de elementos heterogêneos que é confirmado em Square in these words the mortal circle  26 . A questão da diferença e da multiplicidade criativa torna-se motivo predominante, passando nas líricas thomasianas. Comunicação e diferença como distância: distância de coisas e de seres viventes, distância de sentimentos e distância metafísica com o outro ou consigo mesmo, distância ainda da expressão artística no lugar [longe, cansativo de alcançar, labiríntico em seu interior, nos matizes e imprevisíveis intervalos] onde se possa também restabelecer a união dos seres e, finalmente, reavivar a comunicação como prelúdio à comunhão das pessoas. O sociólogo francês Jean Baudrillard escreve:

A universalização do homem se faz também ao preço da exclusão de todos os outros (louco, crianças, etc.) na sua diferença. Quando o homem se põe a assemelhar-se ao Homem, os outros não se assemelham a mais nada. Definido como universalidade, como referência ideal, o humano, exatamente como deus, é propriamente inumano e delirante. Isto que nem mesmo diz Feuerbach é que esta operação de rapto, mediante a qual Deus capta o homem a sua vantagem, de tal modo que o homem não é mais que o negativo enfraquecido de Deus, Deus mesmo, por um retorno de chama, permanece morto. E que ainda o homem estar a morrer pelas diferenças humanas [a loucura, a infância, a selvageria] que ele tem constituído”.

De acordo com esta impostação, para Thomas tratar-se-ia de um discurso de consciência da diferença entre o humano e o homem do Cristianismo universal, que admoestado mais como fé na existência de Deus, na religião fundamentada, que como unidade dos crentes na teoria desta ou daquela Igreja. Em efeitos é difícil atribuir a Dylan Thomas um credo reconduzido a um grupo de praticantes. Na carta de janeiro de 1933 a Trevor Hughes, ele diz:

"Eu não incito a um isolamento monástico e a um isolamento pelos lugares invisíveis [veja também a minha facilidade de fluir imagens cientes de si mesmo, chegando menos, e eu vou permanecer com a palavra ' lugares' que é completamente insuficiente]. Este é o Catolicismo romano [Um dia poderei torna-me católico, mas não inteiramente]. Deve-se viver o mundo externo; sofrer com isto e nisto; desfrutar as mudanças; tirar as esperança deles; lança-te moderadamente com a rotina dos proventos; apaixonados, unidos e mortos. Deves fazer isto. ... pode parecer estranho de minha parte crê nesta filosofia - que, em efeitos, é só uma levíssima adaptação da religião romana católica. Raramente, minhas poesias contêm algo disto. Eis porque não me satisfazem. São quase todas as poesia exteriores. Os três quartos da literatura mundial concernem ao mundo externo. ... As maiores obras de arte talvez sejam aquelas que reconcilia, perfeitamente, o exterior e o interior”.

Assim em Vision and Prayer, alguns anos seguintes à carta acima, a linguagem apocalíptica apresenta figuras que não correspondem aquelas simbologias da segunda chegada de Cristo no Apocalipse de São João nem mesmo da segunda chegada; e, talvez, da terceira idade da história conforme o misticismo apocalíptico de Gioacchino da Fiore. Dizemos, mais, que a condição do mundo metafísico ou físico seja qual for, ele é proposto novamente por Thomas com as imagens que de vez em quando parecem mais sugestivas, não que as tenha abandonado a deriva, ou melhor, há de sua parte uma recuperação e uma coerência de imagens dentro do texto. Para a enigmática escrita de Northrop Frye em Spiritus Mundi falta à palavra chave na leitura que posterga as referências co-textuais [sinônimo co-textuais] e aquelas situacionais. Mas, a lírica de Dylan Thomas não se coloca simplesmente como real justificativa a sugerir algumas características condicionais de imagens mundiais ou mentais que podem parecer sugestivas ou excêntricas. Substancialmente o Thomas de Vison and Prayer não está na ortodoxia do enigma de Frye nem naquela adivinhadeira de Giacomo Debenedetti. De acordo com os mestres, o primeiro é o bastante para o hermetismo italiano [e nesse momento ao já Simbolismo Francês de Mallarmé]. Fala-nos G. Debenedetti: "— A explicação de um enigma é uma só. Ao invés, quanto mais estamos nos aproximando do verso hermético, tanto menos a justificativa torna-se obrigatória"; em alguns casos "ela o transforma quando é o poeta que nos dá para fixá-la. Pelo contrário, Mallarmé não quis que o transformasse". G. Debenedetti, Poesia Italiana del Novecentos, Garzanti, Milan 1974)."

E é o poeta a dá-la e fixá-la fora do texto, justificando, a inspiração de sua composição [como acontece, em 10 de fevereiro 1938, em uma carta remetida a Hermann Peschmann por D. Thomas]. Inversamente, em Thomas deve ser encontrada uma inspiração religiosa nutrida de imagens próprias, e de figuras recuperadas do texto bíblico, e de obras literárias sem que este último tenha uma proeminência sobre o primeiro. A unidade é determinada pelo incentivo total exercitado pelas imagens usadas, tanto para frustrar a tentativa de ler os símbolos thomasianos quanto se pertencentes a um sob-código tradicional preexistente. O estilo de Dylan Thomas não se dobra à ortodoxia de uma mentalidade coletiva ou intelectual, mas se esforça, porém, de não crivar em base testemunhal aqueles elementos que escapam freqüentemente as malhas da linguagem compreendida como ferramenta da coletividade ou de principiante. Fazendo dessa maneira, a lírica thomasiana se propõe imediatamente como própria [original], pronta a pôr nas discussões as verdades inconstantes do próprio tempo [pode se verificar em carta a Pamela H Johnson mencionada que "as maiores variações de tais verdades"]; e a obscuridade se desdobra igualmente diante do homem comum e do homem das letras, prescrevendo, aquela poesia, a saída do senso comum de um e do outro, sobrepujando de imediato a comunicação e fazendo malograr a aplicabilidade despachada de alguns cânones interpretativos tradicionais. Melhor que isso é a gratidão aos dois momentos de testemunho e de prece, em Vision and Prayer, onde a profundeza [oculto] da escrita consegue expressar a inenarrabilidade de uma experiência por ela mesma inefável e a sacralidade de uma linguagem particular, exclusiva; que eleva o poeta a Deus numa relação ascendente do primeiro verso ao segundo, colocando o gênero humano em plano mais baixo onde se pode assumir somente a função de espectador numa enunciação paradoxalmente glossolalia, nascida sobre um idioma inexistente, mas que os conteúdos demonstram-se oralmente inacessíveis. Visto que a poesia Thomasiana se estende ainda por mais ou menos vinte anos, começando dos seus dezoito anos à última bebida desastrosa na taverna White Horse, em Manhattan, e mantendo conta que ele sempre insistiu sobre fato que todos os temas da sua arte, todas as motivações e os íntimos fermentos deveriam se atribuir ao período que vai da infância a primeira fase adolescente. Não nos parece ocioso recordar passos em Kipling [carta a Pamela Hasford Johnson em "?" de outubro 1933], na qual Thomas externa algumas considerações à sociedade inglesa daqueles anos:

Naturalmente, não gostas do seu [de Kipling] agitar de bandeiras, porque sabes bem que para mim o patriotismo é uma decepção publicitária organizada pelos sócios dos armamentos em excesso; sabes que a Union Jack é apenas uma 'tanga' nacional para ocultar os órgão em putrefação de um sistema social doente; sabes que a Grande Guerra fora intencionalmente prostática com a finalidade que os financiadores pudessem ganhar mais; que se não tivessem sido pelas as ações das indústrias dos armamentos, a guerra teria terminado em três semanas; a um certo ponto da guerra, franceses e alemães estava bombardeando as vicissitudes com munição fornecida pela mesma indústria, uma indústria na qual eclesiásticos e políticos ingleses, diplomáticos franceses e empresários alemães tinham investido grandíssimas somas de dinheiro; que Kipling, reformado pelo exército por causa do seu físico delicado, é não obstante um militarista do tipo: 'Eu tinha dado meu filho'; seu país é exaltado e glorificado. È um país que apóia um sistema partidário cujos homens sofrem pela fome de peixe, trigo e café que chegam queimados a centenas de toneladas; um sistema partidário a qual aos homens não é consentidos trabalhar, nem casar ou simplesmente ter filhos; partidários que são levados à loucura a cada ano; partidários onde as crianças nascem escrofulosas; partidários que a igreja proibi a prevenção de doenças sexuais; assim, um sistema correto onde homem é trazido a força no dia do Natal para montar instalações, enquanto sua esposa está esperando uma criança e seus filhos estão a morrer de febre tifóide em razão de ingerir peixes deteriorados fornecidos por um negociante aproveitador. Fora! Inglaterra, minha Inglaterra. E Kipling continua lançando-se a ela, e é facílimo corromper um homem político a corromper um fruteiro.

E um pouco antes, na mesma carta, Thomas declara ler, quase em relevo, "as crônicas dos processos penais, a página três com suma consideração", "todas as notícias sobre os estupros, as fraudes e os assassinatos"; e ainda, "odeio o sistema social que está trazendo à sodomia" a humanidade. Abre-se então um parêntese no pensamento de Thomas que foge a quem conhece apenas a obra dele em versos. De fato, há raras exceções daquilo que Dylan Thomas chamava "mundo interior" prevalecendo ao externo, vê-se se não num jato de luz, como os dois mundos que podem se reconciliar. De um lado há nele a consciência do estado social presente, do outro a recusa de tal condição do ser humano. Se em Vison and Prayer alguns passos podem ser considerados [uma vez que soltara os laços solúveis das ambigüidades] moralistas, se existe desinteresse em quem ler, dado a visível versificação para um cristianismo condenatório, à luz do próximo passo, faz-nos claro ao cristianismo que poderíamos conceber. É um extrato retirado de uma carta, no outono 1933, a Pamela Hansford Johnson:

As leis medievais deste hemisfério corrupto impuseram uma virgindade - mais ou menos - obrigatória durante o período da vida, onde virgindade deveria ser considerada um crime contra as leis do corpo. Durante a adolescência, quando o sangue e a semente da carne crescem, e requerem pela primeira vez, e como nunca, de comunhão e contato com o sangue e a semente de outra carne. As relações sexuais são consideradas inúteis ou impuras. O corpo deve ser mantido ileso para o matrimônio; que, raramente, é possível antes da idade de vente anos. A manifestação física do sexo deve ser engaiolada durante seis ou mais anos, até que, pelo custo de um anel, de uma licença e de algumas palavras embaraçosas, a ocasião seja oferecida com todo cerimonial de uma religião fálica. Mas, o acontecimento é muito ativo introduzido tardiamente: a semente se fez ácida, o amor se transformara em luxúria e a luxúria em sadismo. A mente fora coberta e sufocada pelas ervas daninhas do veto. E a união de duas pessoas famintas, que são unidas por um trato - a latitude dos sexos, é condenada desde do principio. ... Não somente a eles as manifestações sexuais deveriam ser encorajadas.

Noutro lugar, o esforço de ver o mundo, antes de tudo, com seus próprios olhos e senti-lo nos próprios arroubos, sem muito se preocupar com a inteligibilidade da expressão poética, colocando em formas rituais o que nada tem haver com esta ou aquela etnia. O outro não é [e não é pouco], pôr em discussão implicitamente por inteiro [no âmago humano e também nos mecanicismos da poesia] as categorias e os parâmetros cujo homem ocidental faz referência para não se entregar à deriva da própria formação. Nesse sentido, na conciliação não somente dos opostos, mas, da heterogeneidade do mundo,
a poesia de Thomas celebra e testemunha o 'perdido' e o 'desejo' em uma unidade formal que faria eco em qualquer contexto histórico. Poderia dizer que a poesia de sentido obscuro de Dylan é a luz de um vaga-lume na escuridão, move-se na selva de asfalto da sociedade e ecoa com as próprias intermitências no contêiner de uma cela fotoelétrica iluminada a flashes incomuns a cidade e ao mundo. O perdido sob as águas do dilúvio em "Authors's Prologue" de Collected Poems 1934-1952 percebe-se por um instante confuso, como pelo segundo período pós-guerra, os países tomaram o aspecto sempre mais inumano das metrópoles, mesmo que de modo fragmentário, para resultar alguns fantasmas desnorteados de si mesmo. O desejo é um impulso para aquele que talvez teria sido para D. Thomas impossível realizar. Existe de certo uma humanização sempre mais evidente na lírica dele com o passar dos anos, a qual se associa uma comunicação mais direta dos conteúdos de seu pensamento. O desejo se verbaliza então na incitação, no conselho, no ansiar. A poesia se torna cada vez mais o meio de um ser vivente [o poeta] para os viventes, a reflexão apropriando-se dos próprios alicerces -o estado do mundo, e para isto somando influências simbólicas mais funcionais, imagens mentais mais sugestivas e objetivas [Fern Hill, In country sleep, Over Sir John's Hill, In The Withe Giant's Thigh]. Mas a fantasia, a veia artística de Thomas, a sua forte função evocativa, a associação lexical originalíssima ou bizarra - tanto quanto a sintaxe - não estão perdidas, mas estão sublinhadas, ou melhor, evidenciadas aos méritos.

A poesia é o meio de sobrevivência de um passado dominado, meio de comunicação do presente, voz ansiosa que antecipa o futuro. Se para Thomas, o verso é mais duradouro que a tia Ann ["After the Funeral"], não pode, porém escapar do destino de variabilidade de seu sentido e a sua decadência universal:

Em infeliz paz eu canto
Para vós estrangeiros (apesar da canção
Ser um gesto cristado e ardente,
Fogo de pássaros em
Madeira giratória do mundo,
Para meus sons abertos e cerrados).
Fora destas folhas manuseadas ao mar
Que voarão e cairão
Como parte de árvores e como assim
Se esmiuçar e morrer
Entrando na noite canicular.  27 


Como representa um passo do "Author's Prologue". O que significaria [a regularização nos obriga pelo menos a outras duas interpretações que poderiam ser levadas em conta] que a obra poética será destruída ["esmiuçar"] como qualquer coisa criada por Deus ["folhas" valem como exemplo], mas o seu conteúdo verdadeiro depois daquela destruição não poderá ser mais perecer [morrer / entrando na noite canicular]. A grandíssima contribuição deste poeta e contista galês é ter posto a inflexão sobre a individualidade que está à toa, no homem que deriva, nietzschianamente, em uma sociedade onde tudo se faz sempre mais dificilmente semelhante a si mesmo e impermeavelmente. Esta condição é descrita por Jean Baudrillard com transparência:

"A possibilidade da metáfora se esvaiu em todos os campos. Este é um aspecto da transexulidade geral que se alonga além do sexo - para todas as disciplinas, na medida que perdem o caráter específico delas e eles entram em um processo de confusão e de contágio, em um processo viral de um de indistinção que é o primeiro fato de todas as nossas situações. A economia se torna transeconomia, a estética se torna transestética, o sexo fica transexual, tudo convergem em um transversal e universal onde nenhum discurso poderia ser mais a metáfora do outro, já que nós sejamos metáfora - ocorre que sejamos em campos diversos e de objetos distintos. Ora, a contaminação de todas as disciplinas põe fim a esta possibilidade. Metonímia total, viral por definição (ou por indefinição)."

"Man be my mataphor" fora conclusa por Thomas dessa forma: Se eu fosse afagado pelos tropeços do amor [If I were tickled rub of love em 18 Poems], comprimindo sobre o homem a metáfora de si mesmo num período antecedente a Visoin and Prayer. O homem thomasiano em sua aproximação máxima ao Eu lírico perde-se completamente em tudo. Um extremo grito ressonante apenas de si mesmo suspenso no vazio do mundo. É o homem que perde Deus para achá-lo e reencontrá-lo como freqüentemente percebe-se nas páginas de Thomas. Mas, especialmente, é uma demonstração caracterizada do pathos de autenticidade, isto é, em termos nietzschianos, a resistência para completar o niilismo. Pois niilismo significa, aqui, o mesmo que para Nietzsche na nota que inicia a antiga edição de Wille zur Macht: a situação na qual o homem rola a rua do centro para o lado certo. Hoje, o mundo thomasiano da imaginação e do testemunho está assumido como uma arte de montagem e de desmontagem que se encontra na seqüência de imagens realizadas por Ted Hughes, um dos pontos de partida mais prestigiosos e no Moortown um dos exemplos de maior contração de imagens com o maior resultado expressivo e visual. A palavra de Dylan Thomas não está, então, na direção de uma repulsão ao mundo contemporâneo, mas vem desta passagem tarimbada e englobada com uma facilidade enigmática. A sua completa união vem ser absorvida sem, talvez, ser a idéia dos autores contemporâneos, sem passar pela consciência deles. Quando realidade e página se assemelham, como o final de Il Cavaliere Inesistente de Ítalo Calvino, se pode dizer que no período de T S Eliot, seja o maior maestro de intuição e julgamento fazendo-se um pouco aparte. À sua ironia impiedosa tinha pego o lugar de uma ironia que constitui a contradição, como se diz: não distante mais próxima. Então, com de Baudrillard em La trasparenza del male, dirá:

Por outro lado, é a única verdadeira função intelectual que usa a contradição, a ironia, o contra-ataque, o erro, a reversibilidade que sempre desobedecerá à lei e a evidência. E se hoje, os intelectuais não têm nada mais a dizer, o fato é que esta função irônica escapou a eles, porque são mantidas no interior da consciência moral, política e filosófica, enquanto o jogo e a toda a ironia mudara, toda crítica radical passara a parte do aleatório, da virulência, da catástrofe, do rebatimento acidental ou sistemático - nova regra do jogo, princípio de incerteza que hoje reina em qualquer coisa e é fonte de um intenso prazer intelectual (sem dúvida diretamente um prazer espiritual).

Mas para fechar a 'demonstração' sobre esse homem poeta/contista e sua escrita, escutei enquanto canta o amor e pensei nos nossos apaixonados ou naqueles de ontem, e a imagino-los: sonhadores ou destemidos. E que hoje não podem entrar mais nas nossas vidas, livrando-nos do barganhar ou do cravar a quatro mãos. Escutamos o amor cantado e a metáfora, na qual a metáfora tem tomado cada vez mais o lugar da similitude, da imaginação e da realidade. Jogadas para se trocarem em módulos e mais módulos, e a crítica se soma à crítica, as luzes se ascendem, a página, a nossa voz debilita-se, silencia:

AMOR NO SANATÓRIO

Uma estranha é chegada
A compartilhar o meu quarto na casa não é uma idéia certa,
Uma garota furiosa come pássaros

A noite trancou a porta com o seu braço e plumagem.
Dilema no leito confuso
Ela sonha a casa gabardina, aos paraísos com nuvens próximas

Ela, ainda, sonha com o caminhar incubo no quarto,
Impetuosa como os mortos,
Ou navega os oceanos fantasiados das secções masculinas.

Ela veio possuída
Com ela entra a luz enganosa através do muro repulsado,
Possuída pelos céus

Ela dorme no cocho estreito, contudo passeia nas cinzas
Ainda delira como deseja
Nas mesas do hospício desbastadas pelas minhas lágrimas viandantes.

E levado pela luz nos seus braços tardios e querido final
É certo que posso
Assistir a primeira visão que oferece fogo às estrelas.  28 



SAINT MATINS' CHURCHYARD


Referências:

· Collected Poems 1934-1952. New York: New Directions, 1971;
· The Collected Letters, Ed. Paul Ferris. London: J. M. Dents & Sons, 1985;
· The Notebook Poems 1930-1934, Ed. Ralph Maud. London: J. M. Dents & Sons, 1985;
· Under Milk Wood. London: J. M. Dents & Sons, 1985.
· Poets, Prophets, and Revolutionaries. The Literary Avant-guard from Rimbaud to Postmodernism, Oxford University Press Inc., New York, 1985.
· Vattimmo Gianni, La fine della modernità, Garzanti, Milano, 1985.

 

(matéria gentilmente enviada pela autora para Pop Box)

 

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