SEM CAUTÉRIO Aqui a ferida respira enquanto arde sua metamorfose solitária para saber abrir flore no ar à flor da pele nova Está aqui e ferve como se um sol ardesse prestes a desatá-la dor de não saber incerto tempo transferir um eu jorrado fora Esta que se recobre escudo contra casca sem fruto polpa em brasa labora enquanto segrega sua cola secreta cicatriz por coda Eis aqui o intato campo de batalha que o esquecimento por fim ressecado cimento tatuado à superfície remende e não se relembre a furia quando corta um sono profundo AA MARIO QUINTANA Na cadeira que balança na memória - não fosse um disquete removível, descartável dôce lembrança - seria a caveira da esperança? ODE A SAFO I Pouco por tudo safou-se por pouco poupado mais vitais pela sobra do tempo - impunes passados - o resgate de rejeitos re- ciclagem por desgaste partes em pó tor- nadas aos ventos imortais (ainda se ouve) que ao eterno se move signo revel desígnio revés II Profil- axia ou porfíria abrir porfia feridas de (órficos) avessos - phoenix inexata - impossível dilapidar uma aura (haurir a musa) a memória dimanante ainda afia antes diamante aflora teu dia ou noite luz não cinge mas sim jus tanto no que foi-se infinita vive e des- afia a furia do imanente a morte não toca tua lira AA BERTOLT BRECHT Ler é questão de largura a capacidade de enfiar milhares de pequenas contas num único fio O entendimento rompe-o milhares inesperadas contas rolam em liberdade Pensam que o saber é tirar contas dentre milhares de um vidro e enfiá-las num fio de pequenos colares Prefere-se sabe-las rolando ao chão Ler é questão de largura a capacidade de enfiar milhares de pequenas contas num fio imaginário de pequenos colares O entendimento rolando solto em liberdade dentro de um vidro vazio Pensam que o saber é tirar contas dentre milhares de um fio imaginário e enfiá-las num vidro Rompendo pequenos colares o chão rolando sob o entendimento vazio ANTIQUI AURORA fora o que me haure fora o ar em que ardo das artérias minem acesas manhãs ora ainda destempero em flor o tempo flamo ao que chama contemple-se ora o quanto a que aero o vento acenda aquele outro aureo o canto que impele todo em pós em luz o agora amor em mim hálito divino ânfora afora 7:30 am Mau hálito matinal 1ª cena: paisagem da morte negar com flúor e afogargarejar com desejos de vida (devidamente rotulados de asséptico e felicidade) Aqui toda teoria converte-se em água fria: desagradável lavar o rosto em manhã de 10°C Ao enxaguar-se o fel que desafia a boca aqui nesta pia cuspe de outro dia entre saliva e sangue de tempo dormido Aqui o impasse e o juízo do espelho mirar o mirar-se rimar o mirrar-se
O OURO DO RISO CONTRA A NOITE a Néstor Perlongher Se te corta o ouro do riso contra a noite o agonizante membro exibe a distração que daí envolta um espelho dos raios os dedos torceu com um frágil arco a paisagem engloba lábios brandidos ao redor atravessada não mais nem sequer à invasão dos olhos depois da quente chuva primeiro refracta de branco estanque deixando dentro de seu tremular que pensa o impulso de espuma congelada senão sustida ou sem pousar-se no campo da memória aterrissa se te sobe eletrizado instante ao levitar e sair o motor de sucessivos agoras um mar que as realidades ou a luz desperta com seu giro transpasso a voar no cenário se reação nem tanto à velocidade da visão a língua no zênite de pernas às vezes onde segue até por via de multiplicar ao brilho de estrelas o ouro do riso contra a noite
AFFAIR
Homem de palavras no papel
mulher de pose nua
Escrito sobre o corpo
perderam o sono
Um pingo na página dela
borrou o cabeçalho
C'EST LA MORT
Do morto, restos do mundo
porque sim esquecer
este safado? ao eterno
safou-se? absoluto:
abismo de luto
não vale este putrefo
defunto um puto se
o que vaga no além
voga em sua obra? sobras
de tudo definharemos
como de ti aqui
comodamente sorvemos
MOTE E VOLTAS
a Rosana Urbes
"Por quê não és
tal como escreves?"
O ouro de ser um outro
para aquela que soube
amaldiçoar com precisão
quem de não ser tão bom
tal saiu-se seu escrito
pois pensava-se inscrito
o aquém de algum sol
sem pejo de um despejo
por não pagar aluguel
além de si proscrito
foi-se depurando revés
em via de transcende
em vez de esquecer
eis o "gênio da memória"
de cor e sen saber a
flor de ferida mais
dor de menos vale mais
uma vida nova a fel
que move um céu se eterna
e interna intensa mais
que a que adulando anula
Envoi:
Teu lance de praga
sempre traga tua graça
a revolta que detesto
demolindo o que não presto
o ouro de ser um outro
AA DOLHNIKOFF
Sorvendo
este tipo de poesia
bebendo tinta
tipografia
Madrugadas trocando
socos com o sono
sonhos no olho
vermelho a ver
melhor estrelas
Verve nas veias
vertendo sentidos
versos nervos tensos
Noites em claro
passadas a limpo
deuses descendo no papel
pequeno Olimpo
Quem imaginaria
imprimir a vida
nesta via?
A XÉROX
Lance de feitiçaria
nunca míngua nem minha
essa língua de íons
que transfere energia
onde apenas fere
inesperadas atmosferas
na pálpebra de papel
ápice do índice:
ânsia insana de saber
o palpável sabor
CAMISA
a Vasko Popa
Casa separa casa
Pensar com eles
Lava-se sob o sol
Aprende o ar em botão
Casa separa o corpo
Para si e abraça
Acompanha pares
Da gaveta em dobras
Passa depois do sol
Planos e espera
Casa separa para
Secar as asas
Azares comem
O tempo rasga
Despe o corpo
Traça o destino come
Trapos laços sem
Causa sem sonhos
AFORISMOS
o obscuro é um poema de deus sem face
deus é uma face obscura do poeta
o poema é uma face obscura de deus
a face é um poema obscuro de deus
o poeta é um deus do poema sem face
ISTO É
Se isto
não for poesia
eu insisto
até que um
deus imprevisto
diga
desisto
eu não existo
COMPLEMENTOS
a Maria do Carmo Ferreira
Ao sol, fel mente
o que se vê dissolve-se
véu indiscutível
Frio fel do visto
isto é, saudade
do que não vi
vi
Desfio o desafio:
frio fel tecido
Desvisto a saudade
saudo o desvio
desvirtuo a verdade
esvazio o dever
aqui
há que se
aquecer o
que há de
ser

Leia uma entrevista com o poeta em Balacobaco
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