A ROLA



Meia-noite, eu matutava, na maior ressaca brava,
Lendo o horóscopo do dia no caderno do Estadão,
Quando, quase adormecido, pude ouvir algum ruído,
Como houvesse alguém batido, dando um murro no portão,
“Deve ser algum moleque dando um murro no portão;
          Que ele vá lamber sabão!”

Claramente, ainda lembro — foi abril, talvez dezembro;
O abajur piscando, velho, punha as sombras pelo chão.
Aguardando a luz do dia, sem sucesso, pretendia
Me livrar, na astrologia, das saudades do mozão,
Das saudades de Lenora, que morreu, mas é mozão,
          E não tem mais outro, não.

Feito alguém que não se manque, o vizinho ouvia funk
E deixou-me aborrecido nesse mau humor do cão.
Numa atroz taquicardia, furibundo, eu repetia:
“Deve ser — que mais seria? — molecagem no portão;
Deve ser algum moleque dando um murro no portão;
          Que tremenda empulhação!”

Refrescando minha mente, logo disse, prontamente:
“Meu senhor, ou senhorita, solicito teu perdão;
Eu estava adormecido, foi tão brusco teu batido,
Que supus ser um bandido tropeçando em meu portão,
Um larápio ou um moleque.” — fui abrir o meu portão,
          Mas só vi escuridão.

Era tarde e nada havia, mas eu, tolo, persistia,
A sonhar um sonho estranho, como quem está doidão;
O silêncio mais profundo fez sentir-se pelo mundo
E uma voz ouviu-se ao fundo, murmurando assim: “Mozão?”;
Era eu mesmo quem dizia, murmurando assim: “Mozão!”,
          Mas Lenora? Tinha não.


Edgar Allan Poe |Foto: Divulgação
Com a cuca fervilhando, retornei à sala, quando
Novamente o tal barulho ribombou que nem trovão.
“Mas que droga, que esparrela! Esse som vem da janela
Ou alguém bate panela num protesto temporão?
Deve ser algum vizinho num protesto temporão;
          Vai dormir, ô vacilão!”

A janela abri, estulto; de repente, entrou o vulto
De uma rola toda prosa parecida c’um pavão.
Na maior indiferença, sem sequer pedir licença,
A tal rola, que não pensa, foi cagar no meu balcão,
Na cozinha americana, justo em cima do balcão;
          Ave burra e sem noção!

Desejei matar a rola, que bicava uma cebola,
Mas as lágrimas rolaram de ternura e compaixão.
“Minha rola pequenina, nossa briga aqui termina,
Tu não fiques tão mofina, pois, rolinha do sertão!
Diz o nome que trouxeste dos confins do teu sertão!”
          Disse a rola: “Só que não!”

Uma rola, assim, falante, coisa é que muito espante,
Apesar de sua fala não mostrar qualquer razão;
De impostor, talvez chamasse, todo aquele que contasse
De uma rola dessa classe defecando em seu balcão,
Uma rola, ou mesmo pomba, que defeque em seu balcão
          E se chame “Só que não”.

Mas a rola — que agonia! — nada mais me respondia,
Repetindo, a cada arrulho, sua droga de refrão.
E ficou ali, serena, sem mover nenhuma pena;
Murmurei (a voz pequena): “Camaradas? Sempre vão,
E também a rola voa, feito os sonhos que se vão”.
          Disse a rola: “Só que não!”.

E meu cu caiu da bunda com aquela barafunda.
“É possível”, eu dizia, “que esse pássaro cuzão
Possuísse um velho dono que, morrendo no abandono,
Repetisse, ao vir do sono, numa estúpida canção
Que expressasse suas mágoas, nessa estúpida canção,
          As palavras “só que não”.

Meu espanto foi tamanho com aquele bicho estranho,
Que, sentando na poltrona bem diante do balcão,
Afundei-me na almofada, co’a cabeça perturbada,
Meditando na charada dessa rola sem noção:
O que foi que tal demônio lazarento e sem noção
          Quis dizer com “só que não”?

Empaquei em tal enigma dessa rola vil, maligna,
Cujo olhar avermelhado chamuscou-me o coração;
Reclinei-me com demora na poltrona acolhedora
Onde meu amor — Lenora — não vê mais televisão,
Onde meu amor eterno não vê mais televisão,
          Nem programa do Faustão.

Eis que um cheiro de maconha pelo ar se desenfronha,
Qual arcanjos acendessem um bagulho bem grandão;
“Desgraçado”, eu me dizia, “então Jah, enfim, te envia
Um remédio p’ra agonia das saudades do mozão;
Dá um pega no bagulho p’ra esquecer o teu mozão!”
          Disse a rola: “Só que não!”.

“Recalcada! Bicho escroto! Misto de ave e capiroto!
Foi Satã, ao carregar-te na rabeira de um tufão,
Que te trouxe, ser maldito, p’ro furdunço do distrito
Onde tristemente habito! Diz-me agora, sabichão:
Haverá um mertiolate que me cure, sabichão?”
          Disse a rola: “Só que não!”.

“Recalcada! Bicho escroto! Misto de ave e capiroto!
Pelo céu que nos recobre, pelo deus — Javé — cristão,
Diz-me aqui, sem prejuízo: toparei no paraíso
Com o ser que idealizo, conhecido por “mozão”,
Que os arcanjos maconheiros também chamam de “mozão”?
          Disse a rola: “Só que não!”.

“Vai-te embora, ser das trevas, e no inferno te conservas!
Fico muito bem sozinho nesta minha solidão!
Que nenhuma pluma reste, nem palavra que disseste;
Vai-te embora, ser da peste, que defeca em meu balcão!
Vai-te embora desta casa, desocupa meu balcão!
          Disse a rola: “Só que não!”.

A rolinha, circunspecta, na postura mais ereta,
Foi ficando, foi crescendo, transformou-se num rolão.
Uma grande rola (enorme!), não relaxa, nunca dorme;
Sua sombra desconforme se esparrama pelo chão,
E minh’alma, retraída nessa sombra pelo chão,
          Não saiu de lá mais, não.




Emmanuel Santiago - 2014








originalmente em Jornal Opção 2014


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