sinta meu pulso
Eis que projeto um poema
sobre o abismo branco
da página em alarme.
Ao primeiro descuido
e à minha revelia,
jaz e volta, germe
que adquire vida própria.
Com poderes de reger-me,
manda que eu vá
pela selva selvagem
dos textos e dos sentidos.
E, antes de ir-me,
com amor me
olha, e diz, como diria
meu pai: fique firme
° ° °
cantares
Põe-me como selo
sobre o teu coração.
Onde desconheço,
me guiem tuas mãos.
(Mesmo o sol é frio
Quando amor não há)
Com teus olhos,
me faz ver o que não vejo.
(No céu se movem nuvens com nervos de aço)
Escuta, desce uma voz da amplidão:
Põe-me como selo sobre o teu coração.
Em cima, em baixo, antes, dentre
sim e sempre e para além
Estarei até não estar mais
° ° °
nada levar
deste mundo
sem sílabas
sem letras
sem textos
ágrafo
° ° °
jardim para o sonho do tigre
brincam de ser minhas
coisas que dizem
ao mínimo silêncio,
tenho fome
e a sede se avizinha
desexplicadas,
as coisas se revelam
revirando as trevas pelo avesso
desperto do sonho
cercado de paredes
e, tigre, reconheço
onde a minha fome
quando o meu silêncio
qual a minha sede
° ° °
neruda encontra lorca
De mim fugiam pássaros
às quatro horas da tarde.
Pássaros tranquilos,
pássaros lentos
de mim fugiam,
deixando em meu peito,
no entanto, suas asas.
Às quatro horas da tarde sem vento.
° ° °
paisagem na neblina
O vento brando e breve
soprou sobre o monjolo
que, em movimento,
cobriu as franjas do passado
névoas,
nódoas,
nuvens,
nadas
E veio a bruma,
acabrunhada
° ° °
na rua erma
na rua erma de ruídos
retiro,
de dentro dos monturos,
um pouco de futuro
um pouco de futuro
separo
com esmero
e gravo,
onde o ruído ainda é raro,
um desejo:
quero o abandono
que só a noite dá
quando já nem noite há
° ° ° poemas extraídos de Samplers, Ed. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2000.
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