De: Neve Rubra (Sette Letras, 1996)
Três cravos
Três cravos de agudas
pontas como unhas:
um rubro como um tango
outro como neve branco
outro branco e encarnado
salpicado de sangue
que não é seu.
Três cravos indóceis
três carnes pulsantes
três flores passionais
de revoluções, de amores
perigosos. Flor dos povos!
De amantes ferventes, cravo!
Três cravos
frisados minuciosamente
delicada flor das insurreições.
Entre os dentes
gosto de talo recente
pétalas amarfanhadas no decote.
Três cravos!
Flor passageira, flor
da viagem, flor da História,
Flor que acontece!
Três cravos rubros
são rubros todos os cravos.
mergulho
quando caio
nada vinga além do nado
caio entre e me salvo
pelo meio
guelras ganhas, estou só
absoluta no líquido
quase aquática
nem amo de tão perfeita.
. . . . . . . . . . . . . . . . .
Sobre os vês agudos
da antena, um pássaro
Raro, ave do paraíso!
Bico ao ar ponta e seta,
corpo fofo e fibrilas.
Maravilha, o gato olha
para o alto. Ave esse pássaro!
Voou.
Ruas Perigosas
Se me viro
me vejo chique na poça da rua
me viro na rua
vejo na poça d'água
o rebrilho do batom
a meia corre o fio
no beco corro o risco
do cabelo à cata de um grampo
que enfie
na carne, coiffure de lanhos
linhas varam o céu nojento
telefone e telégrafo
no terreno baldio.
° ° °
De: Noite de Ela no céu (Impressões do Brasil, 1997)
Arco Íris
parece-me
súbita
COR
tempo d'água
espaço luz
aparência
pênsil
cílium
psiu.
° ° °
De: Fôlego (Sette Letras, 1998)
Por um fio
O que me prende à vida
é linha de hálito
troca de ares, fios
de ouro. Ora tenazes
ora soltos colares:
tênue sutura
ata-me ao chão do mundo.
A vida me prende
em teia de vento
acordo quebrável
selado com o ar.
Tropismo
A mariposa
repete sua volta suicida à lâmpada acesa
repete sua volta suicida à lâmpada acesa
fascinada pelo incêndio
a mariposa ama o pouso doloroso
que a chama
toda ela chama
A mariposa
repete sua volta suicida à lâmpada acesa.
. . . . . . . . . . . . . . . . .
Dois sóis se ergueram na Terra
hoje { esferas o fogo
a alba era intenso
meio-dia. Cegante como outro
que o horizonte recebia
no seu bojo os dois vulcões
e a Terra mais enaltecia.
Hoje dois sóis se ergueram
juntos { a um só curso
a refazer os pulos de Vishnu
aurora meio-dia crepúsculo
estilhaçar os prismas
e multiplicar os mundos
a luz da própria Terra
revida terceira estrela
à curva dos dois sóis.
Prodígios
Dê-me um toco
que farei uma arca
do tesouro
e o perfume da madeira:
dê-me um pouco
farei um mar prodigioso
alimentos da alga
jangada, afogamento
a arca a atracar
turmalinas. Dê-me
um sopro: farei ventar
sobre a nau de prata
o vendaval no mar
o perfume da arca
a levar a cor do ouro
às escarpas da ilha
e dê-me agora um beijo
que seja nada
farei disso uma paixão
imensa afogada
num fogo maior que o mar
o vento forte só poderá
tocá-la e seu perfume
será em si um reino.
os homens são todos iguais
os homens são todos iguais
ou bem são iguais a todos ou
são bem todos homens sendo
iguais a quem?
ou são todos bem homens?
serão iguais a eles sendo quem?
se são, são quem? os iguais,
digo, eles todos, os que são bem,
bem mesmo e homens iguais,
sendo bem eles todos serão talvez
ou homens ou iguais a homens
não sendo eles mesmos homens
e se são iguais a todos nem são.
se, no caso, todos são iguais,
são todos menos eles,
a menos que mesmo os homens
sejam todos e nesse caso
seriam iguais a quem se todos são
eles mesmos? esses homens
para ser iguais não seriam mais
todos homens a menos que uma parte
fosse ter aos iguais e
seriam então os homens menos os iguais
mais a outra parte deles mesmos
que seria ainda todos
se bem que os outros tenham
saído e daí como seriam esses
todos sem eles, que já foram?
e os iguais que os receberam
seriam iguais aos primeiros?
se for assim talvez nem haja homens
e haja iguais ambicionando ser
todos, tarefa insana
poi aí não seriam iguais.
° ° °
(seleção Claudio Daniel)
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