Juó Bananère
e a caricatura verbal
Muitas obras escritas no Brasil do começo do século 20, mas hoje esquecidas, poderiam ser resgatadas por uma leitura que lhes restituísse o caráter da "belle-époque"
in FOLHETIM nº 504, Folha de S. Paulo 05/10/1986, p. 10 - 11.
Desde que o período literário compreendido entre 1900 e 1920 foi batizado por Tristão de Ataíde como pré-modernismo, historiadores tem estado de acordo quanto à seleção de obras, embora com opiniões frequentemente divergentes: o regionalismo, que para alguns antecipa o nacionalismo modernista, é criticado por outros pelo maniqueismo com que certos autores aplicam um moralismo xenófobo ao homem do interior. Fala-se em parnasianismo, e Bilac é elogiado como artesão, motivo por que outros o rechaçam. Assim costuma-se prosseguir até a apreciação unânime sobre o neoparnasiasnismo e neo-simbolismo: fazem o que outros já fizeram melhor, o que justifica não serem citados ou incluídos em antologias. É lamentável que a consideração sobre autores, no lugar de textos, tenha provocado o esquecimento de obras de Emílio de Menezes, Bastos Tigre, Barão de Itararé e Juó Bananere. Parte dessa produção, entretanto, pode ser resgatada por uma leitura que lhe restitua o caráter da "belle-époque".
Um dos motivos que possibilitaram o aparecimento do "art-nouveau" no Rio de Janeiro foi, segundo Brito Broca ("A Vida Literária no Brasil - 1900", p. 20-45), a abertura da avenida Central, que forçou a alteração na postura da boêmia, acostumada aos "cafés" de vielas e becos, com seu deslocamento para os amplos salões, cujos rebatimentos espelhados denunciavam desregramentos de mau tom. Os arabescos dos entalhes naturalistas com freqüencias orientais, a moda das casacas coloridas com que João do Rio percorre sob vaias o Municipal, indiciam o bom gosto das conversas entre os partidários da última moda literária. Os remanescentes parnasianos não escapam a essa situação, e muitos se aplicam à poesia satírica e à então nascente publicidade. E pela negatividade de uma estética que lhes ensinara traquejos de composição que podem ser lembrados.
Autores esquecidos
Quando se lêem, por exemplo, certas crônicas de Agripino Grieco, observa-se o prazer que o encasacado duelo repentista causava entre a boêmia, em que o fraseado era um verdadeiro arabesco "art-nouveau", a velar a idiossincrasia saudosista frente à urbanização, dispondo a agonia em ziguezagues de aporia estimulada. E de Bastos Tigre, que tinha uma "disciplina quase cientifica do sarcasmo" (Grieco, "Evolução da Poesia Brasileira"), a paródia aos repetidos "vôos" metafísicos de então:
Quem sou eu? De onde venho e onde, acaso, me leva
O destino fatal que os meus passos conduz?
Ora sigo, a tatear, mergulhado na treva,
Ou tateio, indeciso, ofuscado de luz.
Grão, no campo da vida onde a morte se ceva?
Semente que apodrece e não se reproduz?
De onde vim? Da monera? Ou vim do beijo de Eva?
E aonde vou, gemendo, a sangrar os pés nus?
Nessa esfinge da vida a verdade se esconde;
O espírito concentro e consulto a razão
E uma voz interior, sincera , me responde:
- Quem és tu? - Operário honesto da nação.
- De onde' é que vens? - De casa.
- Onde ' que estás? - No bonde.
- Para onde vais? - Não vês? -
Para a repartição.
Bastos Tigre pertenceu à primeira leva da publicidade brasileira, sendo responsável, entre outros, pelo "slogan" "se é Bayer é bom", expressões como "crediário" e "ducal", além da paródia camoniana para o remédio contra tosses "Bromil", cujo primeiro verso, "os homens de pulmões martirizados", exemplifica a conjunção de humor e coloquialismo. Quanto a Emílio de Menezes, o próprio Oswald de Andrade, numa palestra sobre a s tira no Brasil, chegou a criticar Manuel Bandeira por tê-lo excluído de sua "Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Parnasiana", e cita um de seus poemas, calcado no "topos" dos "impossibilia", em que o humor negro culmina na informação de que o protagonista, um guarda-livros surrado pelo marido ultrajado, portava orelhas de "tamanho descomunal":
Morreu depois de uma sova
E como não tinha campa
De uma orelha fez a cova
E da outra fez a tampa.
A condição sócio-econômica da São Paulo do início do século não permitia que se reproduzisse por aqui a homogeneidade da "belle-époque" carioca. O relevo da ornamentação projetada por arquitetos como Carlos Ekman e o mobiliário do Liceu de Artes e Ofícios conviviam com a massa de imigrantes que representavam 25% da população do Estado em 1900. Entre 1882 e 1914, são publicados em São Paulo 140 títulos de jornais em italiano. Na verdade, o exotismo de personagens como Freitas Vale, promovendo jantares com cardápios inspirados por Huysmans e campeonatos de pingue-pongue nos salões de sua vila Kyrial (Brito Broca, op. cit., p. 30-32), aparece como folclore.
"Macarronismo"
É nesse contexto que o estudante de engenharia Alexandre Ribeiro Marcondes Machado substitui Anibale Scipione (Oswald de Andrade) no jornal "O Pirralho", em 1911, para ficar famoso como Juó Bananere. Escreveu em macarrônico, termo com que se denomina a mistura de dois ou mais idiomas para fins paródicos: "a artografia muderna é una maniera de scrivê, chi a genti scrive uguali come dice" ("O Pirralho", 1912). O acúmulo de desvios gramaticais só não torna sua linguagem entrópica devido à sintaxe extremamente simples e redundante com que articula uma dicção normalmente exclamativa. Sua expressividade estética aparece pelo contraste dessa língua estropiada com a seriedade dos assuntos sócio-políticos comentados, ou ainda pelo diálogo mantido com personagens de outro estrato, o que o leva a uma alteração de seu próprio registro, aproximando-o muitas vezes da eloquência de certos personagens oswaldianos: recebido com entusiasmo na "Cademia de Cumerço du Braiz", assim inicia um emocionado discurso de agradecimento: "io stó intirigno impegnorato com ista magninifica rocepiçó chi vuceis acaba di afazê inzima di mim. É moltos onra p'run pobri marqueiz! (Tuttos munno grita: nó apuiado! Nó apuiado!)" ("O Pirralho", 1915).
Germes antropofágicos
Juó Bananere mantém certo grau de parentesco com o personagem pícaro, seja pelo realismo ingênuo com que propõe soluções aos problemas político-sociais, seja por sua mobilidade entre os figurantes dos diversos estratos, e procurando muitas vezes somar dividendos junto aos poderosos, em suma, pela malandragem aprendida na experiência epidérmica do acaso, que costuma dar o caráter de tortuosidade barroca ao destino do pícaro: recusa o convite de um amigo para uma festa de aniversário "pur causa che o Rodrigos Alveros mandô dizê che mi vem avisitá oggi di tardi inda a gaza mia giunto co Artino Aranteso. Vucê é genti impurtante, eh só Juó? - Si fa quel que si puó... dissi con una brutta mudestia. - Ma faccia o favore, vegna lá oggi, sô dottore! Uh! porca miséria! podi mi dizê o che quizé io non s'impreziono, ma mi xamano co dottore, io non arisisto." ("O Pirralho", 1913).
Alcântara Machado sintetizou de certa forma a importância de Juó Bananere, notando-lhe o caráter de produtor de "modelos de estilo" ("Cavaquinho e Saxofone"). Suas crônicas, de qualidade desigual num período de mais de vinte anos de jornalismo, exibem a "ingenuidade" corrosiva do germe antropofágico, emblematizada na descrição que faz do próprio brasão:
"as bananera di lado só pr'a aripresentá u migno nomino tambê pr'a dá fruita pr'us troxa. Nu centro stó io chi só u dono du 'brazó' di giunto cumigo stó u Piedadó i o Capitó chi só as duas principale figura du Juó Minhoca politico andove stó io o imprezario, i tambê pur causa chi furo illos chi serviro di scada pr'a mim subi pr'a groria du giurnalismio indigena! Non cutuca! é a migna indivisa, pur causa chi io sô molto camarada, ma buliu cumigo é a mesima cosa chi mexê con una caza di marimbondi!! Dô u strilimo!" ("O Pirralho", 1917).
Paródias expressionistas
A maioria dos textos do principal livro de Juó Bananere, "La Divina Increnca" (10 edições entre 1915 e 1966), são paródias de conhecidos poemas da literatura brasileira, que deslocam pelo contraste o "pathos" do original, liberando modulações dos interstícios de sua dicção. Desmitificando a aura de perenidade da elocução dramática de certos poemas e os hábitos do público leitor, Bananere foi co-autor de um ambiente propício ao modernismo. Essas paródias podem também ser lidas como traduções expressionistas, na medida em que são uma ampliação deformadora de procedimentos do original. Um bom exemplo 'o seu "Amore co Amore si paga", sobre o soneto "Nel mezzo del camin..." de Bilac, em que dissemina por todo texto os quiasmos da primeira estrofe do poema parnasiano. Bananere rebaixa a alegoria "pombas/ilusões" estabelecida por Raimundo Correia em "As Pombas", para relatar a desventura de um aviador "qui pigó o tombo". A leitura conjunta retrata bem a luta travada nos bastidores das correspondências estilísticas: a substituição do preciosismo existencialista parnasiano pela contradição da técnica emergente:
As Pombas
Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...
E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais, de novo, elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...
Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;
No azul da adolescência as asas soltam
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...
As Pombigna
P'ru aviadore chi pigó o tombo
Vai a primeira pombigna dispertada,
I maise otra vai disposa da primiera;
I otra maise, i maise otra, i assi dista maniera,
Vai s'imbora tutta pombarada.
Passano fora o dí i a tardi intera,
Catano as formiguigna ingoppa a strada;
Ma quano vê a notte indisgraziada,
Vorta tuttos in bandos, in filera.
Assi tambê o Cicero avua,
Sobi nu spaço, molto alê da lua,
Fica piqueno uguali d'un sabiá.
Ma tuttos dia avua, allegre, os pombo!...
Inveis chi o Muque, desdi aquilio tombo,
Nunga maise quiz avuá.
Mestre da sátira
O sucesso de "La Divina Increnca" não foi apenas editorial; seus poemas foram encenados em 1917, num total de 36 apresentações. Sua fase mais criativa antecede a década de 20. Já em 1912, por exemplo, num artigo intitulado "A Storia do Futurismo", este cronista, considerado por Oswald de Andrade um "mestre da sátira no Brasil" (Boletim bibliográfico, "A Sátira na Literatura Brasileira"), traduz postulados do manifesto de Marinetti -"non si pode butá divérbio, né digettivo; os verso tê quantas sillaba a genti vulevo" - para depois satirizar o uso metafórico do termo: "lá longe vê vindo una piquena muntata ingoppa un lió. Ella stá pillada, pur causa che ista storia é futuristte, i co futuro tuttos munno tê di andá pillado".
Bananere não escapa do limite expressivo da própria caricatura, que, encravada na contradição do fenômeno cultural, consegue um resultado primeiro, de superfície grotesca, que estanca diante da dedução lógica. Instantânea, a caricatura deixa paralisado no ar o equívoco, faz do tipo um protótipo, revelando seu anarquismo pela sugestão de um horizonte plural. Pode não ter sido nosso melhor cronista, mas foi, sem dúvida, quem melhor verbalizou a caricatura no jornalismo paulistano, gesticulando sua linguagem burlesca.
TRAJANO VIEIRA.