Talvez leve a nada*

Manoel Ricardo de Lima


Em 1984, Paulo Leminski publicou o seu segundo romance com um título retirado da expressão popular que impõe uma dificuldade a seguir: Agora é que são elas. O fato é que diante de toda uma proposição cultural elaborada em seu romance anterior, de 1975, o Catatau, que 'des-narra' a chegada do cartesiano Descartes na brigada de Maurício de Nassau na Recife holandesa de 1630, este seu segundo trunfo sofreu amargamente o refestelar da crítica e o próprio Leminski ficou convencido que aquele seu romance não teria nenhum valor.
Assim, para homenagear e contrariar o amigo recém morto, Boris Schnaiderman escreveu um pequeno artigo em defesa do livro (publicado na Revista da USP em novembro de 1989, ano da morte de Leminski, em 07 de junho): "Em torno de um romance enjeitado''. Boris foi certamente o primeiro, salvo o único, a vir em defesa desta narrativa "ligada aos novos meios de expressão''. E mais uma vez, aproveitando a data em que se volta a falar um pouco mais e sempre do poeta Paulo Leminski, penso, há que se falar também, mesmo que um pouco, dessa desconstrução de narrativa, prosa, e do que ela sugere. A meu ver há que se ir de encontro a idéia da crítica e do próprio Leminski.
Agora é que são elas conta a história de uma festa que não comemora nada e impõe ao narrador propostas descabidas de narrar. Um narrador que não conseguiu ser médico e tornou-se astrônomo apenas porque gosta de olhar as estrelas. E ainda pega-se divagando constantemente sobre uma guerra em um lugar no cosmos chamado Achenar; questiona-a em todos os seus enlaces. Depois, Leminski constrói personagens para o monólogo de seu narrador-malandro, como ele soube ser, que representam a paródia e a ironia fina do uso exímio do palavrão e da expressão culta, e ainda a variedade de citações diretas e indiretas: o professor Propp, analista do narrador — paródia a Freud, no que trata do analista — (e paródia mesmo ao lingüista russo Vladimir Propp, que escreveu a Morfologia do conto maravilhoso; neste livro tenta — "num afã patético'' — estipular funções rígidas a todas as histórias. Funções demarcadas com uma letra grega seguida de um número. 31 ao todo.) e Norma, a mulher que o oblitera.
Assim Leminski mistura tudo (o leitor de Joyce e Rosa, de Oswald de Andrade, o tradutor de Beckett, dos modernos ficcionistas americanos) e recria uma prosa que funciona em um diálogo sincero com as desnecessidades da literatura e da própria vida no desmantelo humano da contemporaneidade. Não pensa em máscaras, não elabora fugas, tudo é motivo de riso, tudo é um refinamento grosseiro e humor: "Com aquela cara de homem fingindo estar interessado no papo de uma mulher apenas porque está com vontade de comê-la, com aquela cara de mulher costurando e bordando pensamentos apenas porque está a fim de ser comida por ele, cheguei, caprichei, relaxei, lembrei tudo o que tinha aprendido em Kant e Hegel, repassei toda teoria dos quanta, a morfologia dos contos de magia de Propp, o vôo do 14-bis, cheguei e não perdoei: — Tem fogo?''
A prosa porosa do Agora é que são elas é também o desmascaramento de uma fala brasileira, de uma língua que se recria em uma musicalidade beirando a leveza e a beleza (por que não?) do falar corrido, sem pensar. Ao mesmo tempo, esta mesma prosa evidencia uma articulação de pensamento, quase sistemático, filosófico, para encurtar a conversa oblonga, por exemplo, de um Freud ou do lingüista Vladimir Propp. Este desmascarar rápido, sem afasia, é aquele mesmo de Oswald de Andrade em Memórias Sentimentais de João Miramar e, principalmente, em Serafim Ponte Grande.
O fato mesmo que o Agora é que são elas nos traz é o de que Leminski tinha uma crença clara: que o Romance, gênero, era uma impossibilidade neste século XX e que os grandes autores deste século vinham todos do anterior, o XIX. Está em Adorno o impasse, o parodoxo, do romance contemporâneo: "não se pode mais narrar, ao passo que a forma do romance exige narração.'' Mas está em Bakhtin uma fresta para o impasse: tomar o romance como gênero dinâmico, maleável e protéico que pode e deve reaparecer em formas novas.
Paulo Leminski, provável, nem se deu conta que a idéia básica deste seu romance — LEVAR A NADA — ao mesmo tempo que recria o vazio estabelece o que pode pretender a literatura hoje (mais ou menos como disse Raul Antelo): na necessidade de reconhecer os limites da razão, uma parte irredutível, soberana, escapa ao ser, e "é dessa parte que se ocupa a literatura''. Ou seja, ocupa-se do que está caótico, confuso, em guerra, do que é a negação da condição de sujeito na vida contemporânea: "desses nadas'': para que se imponha o pensamento sobre eles e nos percebamos, sujeitos, com alguma função de delicadeza neste mundo. Daí atribuir valor à narrativa "fascinante e perturbadora'' desse livro.
Uma última pergunta seria se há ao menos um vislumbre possível para a literatura, e para a vida (que em Leminski são a mesma coisa), no Agora é que são elas? — penso que sim, mas exatamente quando há um tratamento temático de oposição: a idéia da morte. Para Norma: "Norma estava morta. Ainda bem que morrer nesta vida não é tudo. Pela janela assistimos aos preparativos para o funeral. Ela estava morta. Meu olhar a tinha matado. (...) os vivos precisam celebrar a morte, o gelado não estar mais, o porquê, o outro lado da vida." Para o narrador: "Morrer é apenas uma das coisas que pode acontecer com a gente. Talvez, a menos importante. Uma mera formalidade. O único problema é que de morrer ninguém tem experiência. Morrer, tudo bem. O que eu não podia tolerar era ser ofendido assim diante de tanta gente.''
Ademais, ao final do livro, depois da morte de Norma, o professor Propp suicida-se e o narrador pega da arma, sem nenhum cuidado, para fincar nela suas impressões digitais e chama a polícia acusando-se de ter matado alguém e conclui nas últimas quatro linhas do romance o seu monólogo: "Nenhum advogado vai me convencer da minha inocência. Eu quero ser condenado. Eu não quero a vida eterna, professor. EU QUERO O INFERNO."
Tomar a literatura que empresta-nos a idéia do não-ser, do não-estar-no-mundo, do não-lugar e prestar mais atenção a ela. Pois, a meu ver, é ela quem presta melhor atenção ao mundo em que vivemos hoje. Fica a proposta: ler o Agora é que são elas não só para tomar nova dimensão da trajetória de vida/obra do próprio Paulo Leminski, mas também de algumas partículas desse mundo difícil; muito bom, mas muito difícil.

Manoel Ricardo de Lima

 

Manoel Ricardo de Lima escreveu sua dissertação de mestrado em Letras (UFC) sobre a poesia de Paulo Leminski.

 

*OBS.: Publicado no suplemento Vida & Arte, Jornal O POVO, Fortaleza, 5 de junho de 1999.

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