Catatau no ar*

Paulo de Toledo



Com o período ditatorial iniciado com o golpe de 64, inicia-se o que já se chamou de "modernização conservadora" e, com ela houve a consolidação da TV como forma quase hegemônica de difusão cultural no Brasil. (Renato Franco, em seu livro I. P. do Romance Pós-64: A Festa, no qual o Catatau não é sequer citado, comenta sobre essa hegemonia televisiva).
Para combater essa nova mídia, alguns (a maioria) escritores brasileiros apelaram para a prosa naturalista, influenciada pelo jornalismo (muitos escritores do período eram jornalistas) e outros, já na década de 70, utilizaram algumas técnicas de vanguarda do início do século, sendo que as principais dessas técnicas foram a montagem e a fragmentação (Franco, 1998). Essas técnicas foram influenciadas, por sua vez, pelo lay-out do jornal, que desde Mallarmé fascinava poetas e escritores.
A utilização dessas técnicas pelos escritores brasileiros em plena década de 70, mostra um certo "atraso de vanguarda", apesar de alguns desses escritores terem logrado algum êxito em seus livros.
Diferentemente desses escritores, que utilizaram a técnica da fragmentação, mas mantiveram uma ordem narrativa, ordem essa apenas embaralhada (como cartas, que, mesmo embaralhadas, sabemos que constituem uma ordem), Leminski, no Catatau, põe a ordem abaixo. A narrativa só tem começo e fim ("As formas não são delimitadas para cima ou para baixo de modo exato como antes: em lugar de um início claro e de uma conclusão precisa, temos um começo hesitante e uma conclusão impossível". Wölfflin, 1989, p. 69), porém, como a Matemática ensina, entre 0 e 1 há infinitos números. Entre a primeira e a última letra do Catatau há infinitas leituras. Daí o excesso e a abertura.
Nesse aspecto, o Catatau é superior a todos os romances (políticos) do período militar ("Isto porque o romance de ficção corresponde, em sua expressão tradicional, ao modo habitual, mecanizado, geralmente razoável e funcional, de mover-se entre os eventos reais, conferindo significados unívocos às coisas. Enquanto que somente no romance experimental se encontra a decisão de dissociar os nexos habituais, com base nos quais se interpreta a vida, não para encontrar uma não-vida, mas para experimentar a vida sob novas perspectivas, aquém das convenções esclerosadas". Eco, 1968, p. 196).
O Catatau enfrentou a hegemonia da TV com uma linguagem que correspondia estruturalmente à linguagem televisiva.
A obra leminskiana não imita a forma-jornal cubista da fragmentação. Catatau é o mosaico televisivo, não-linear:
"Pois o mosaico não é contínuo, uniforme, repetitivo. É descontínuo, assimétrico, não-linear — como a tatuimagem da TV". (McLuhan, 1995, p. 375)
O Catatau não tem um fio narrativo. Como toda forma barroca, ele não tem centro e, por isso mesmo, o centro está em toda parte. A não existência de um centro supõe uma não-hierarquia. Como o mosaico televisivo, o Catatau possui uma sintaxe aberta que exige do leitor uma maior participação, fazendo com que ele preencha os intervalos.
"A imagem da TV exige que a cada instante, 'fechemos' os espaços da trama por meio de uma participação convulsiva e sensorial que é profundamente cinética e tátil, porque a tatilidade é a inter-relação dos sentidos, mais do que o contato isolado da pele e do objeto". (McLuhan, 1995, p.352)
Essa exigência de participação faz da obra de Leminski, pedagogicamente falando ("Perguntamo-nos então se arte contemporânea, acostumando-se a contínua ruptura dos modelos e dos esquemas — escolhendo para modelo e esquema a efemeridade dos modelos e dos esquemas e a necessidade de seu revezamento, não somente de obra para obra, mas dentro de uma mesma obra — não poderia representar um instrumento pedagógico com funções libertadoras; e nesse caso seu discurso iria além do nível do gosto e das estruturas estéticas, para inserir-se num contexto mais amplo, e indicar ao homem moderno uma possibilidade de recuperação e autonomia". Eco, 1968, p. 148), uma das mais radicalmente libertadoras (e subversivas) já escritas em nosso país, pois força o leitor a questionar sua própria forma de "ler" o mundo, já tão narcotizado/embotado pelos mass media.
"O princípio do embotamento vem à tona com a tecnologia elétrica, ou com qualquer outra. Temos de entorpecer nosso sistema nervoso central quando ele é exposto e projetado para fora: caso contrário, perecemos. A idade da angústia e dos meios elétricos é também a idade da inconsciência e da apatia. Em compensação, e surpreendentemente, é também a idade da consciência do inconsciente". (McLuhan, 1995, p. 65)
Voltando a falar da semelhança estrutural entre o Catatau e a TV (cataTaV), pensamos que o "romance-rir" de Leminski parece não a TV dos anos 60/70, quando foi escrito, mas a TV dos nossos dias, com as miríades de canais via cabo e satélite. Como essa TV, o Catatau parece constituído de vários canais (também no sentido lingüístico). Na obra, esses canais são representados pelos vários "temas" espalhados (desordenadamente) pelo livro: Descartes e sua ciência, Deus, Brasil seiscentista, Zenão, Bashô, Pérsia, et coetera e tal. ("Se ao encobrimento parcial se acrescenta uma composição complicada e uma multidão infinita de formas e motivos, em que o detalhe, por maior que seja, perde completamente o significado no efeito da massa, temos então os elementos necessários para a impressão daquela riqueza inebriante, característica do Barroco." Wölfflin, 1989, p. 78) Também como na TV, esses temas/canais são interpenetrados, isto é, cada um desses temas dialoga com outros dentro do texto/textura. Cada canal/tema é como um fio da textura que se entrelaça com outro fio, oferecendo ao fruidor possibilidades quase infinitas de interpretação.
"(...) no universo científico moderno, assim como na construção ou na pintura barrocas, as partes aparecem todas dotadas de igual valor e autoridade, e todo aspira a dilatar-se até o infinito, não encontrando limites ou freios em nenhuma regra ideal do mundo, mas participando de uma geral aspiração à descoberta e ao contato sempre renovado com a realidade". (Eco, 1968, p. 55)
Esse diálogo polifônico entre os temas nos faz lembrar dos comerciais de TV (Leminski foi publicitário) em que uma peça de Vivaldi é fundo musical para a venda de desodorante feminino. Apenas que, no Catatau, à diferença dos comerciais, a relação dialógica não se dá de forma "séria". No comercial, Vivaldi serve para oferecer ao produto um status elevado. No Catatau, todos os temas são postos do avesso, ou seja, são carnavalizados, parodiados. O Catatau derruba todo status. O Catatau é um status qüiproquó.
Catatau no ar — antena hiperbólica da raça.

Paulo de Toledo

 

Bibliografia

ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo, Editora Perspectiva, 1968.
FRANCO, Renato. Itinerário Político do Romance Pós-64: A Festa. São Paulo, Editora UNESP,1998.
MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem. São Paulo, Cultrix, 1995.
WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco. São Paulo, Perspectiva, 1989.

 

*OBS.: ensaio gentilmente enviado pelo autor para Kamiquase.

 

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