Da
minha parte, o interesse pela “personalidade literária” de Paulo Leminski -
essa somatória de vida e obra - se deve em grande medida ao vigor da sua
intervenção, que logrou romper o véu de insignificância cultural que, com
breves instantes de exceção, longamente tem pairado sobre Curitiba. Paulo
Leminski colocou a cidade no mapa da poesia brasileira a partir de uma
interlocução com nomes fortes da literatura e da música popular que ecoa ainda
hoje. Se pelas virtudes de sua obra em si, se pelo seu temperamento expansivo e
carisma pessoal, se por mero acaso ou por senso de oportunidade, ou se por uma
combinatória de todos esses elementos, o fato é que o papel desempenhado por
Leminski é vital para a consciência local. Ler as cartas contidas em Envie meu dicionário, a partir de
Curitiba, é deixar-se impregnar por uma energia de vida e uma abertura de
perspectivas que poucos criadores (aqui e fora) têm conseguido irradiar.
Referências bibliográficas
CAMPOS, Augusto de et alii. Balanço da bossa e outras bossas. 3ªed. São Paulo: Perspectiva, 1978.
_______. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos - 1950-1960. 3ªed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
CAMPOS, Haroldo de. “Uma leminskíada barrocodélica”. Folha de S.Paulo, 02/09/1999.
DALA STELLA,
Carlos. “Literatura e
publicidade”. Gazeta do Povo, Curitiba,
6 de junho de 1999, Caderno G, p.8.
LEMINSKI, Paulo. Anseios
crípticos. Curitiba: Criar, 1986.
________. Catatau. 2ªed. Porto Alegre: Sulina, 1989.
________. Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica. Organização de Régis Bonvicino, com a colaboração de Tarso M. de Melo. São Paulo: Ed.34, 1999.
________. Paulo
Leminski. Série Paranaenses
nº2. Curitiba: Scientia et Labor, 1988.
________. Um
escritor na biblioteca. Curitiba: Biblioteca Pública do Paraná, 1985.
MELO, Tarso M. de. “Qualigrafeira”. Viola de Cocho,
abril/maio de 1998. (Texto também
disponível na Internet em página dedicada a Paulo Leminski:
index.htm)
POUND,
Ezra. Abc da literatura. Trad. de Augusto de Campos e
José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix,
s.d.
RODRIGUEZ,
Benito Martinez. Luar da cidade, sertão de neon: literatura e canção nas obras de Catulo
da Paixão Cearense e Orestes Barbosa. São Paulo, 1998. Tese de
doutorado. USP - FFLCH.
SANCHES
NETO, Miguel. “Poeta da sensibilidade
adolescente”. Gazeta do Povo, Curitiba,
7 de junho de 1999, Caderno G, p.8.
SUZUKI, D.T. Introdução ao zen-budismo. Tradução de Murillo Nunes de Azevedo. São Paulo: Ed. Pensamento, s.d.
TATIT, Luiz.O
cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.
Notas
[1] LEMINSKI, Paulo. Envie meu dicionário:
cartas e alguma crítica / Paulo Leminski e Régis Bonvicino. Org. de Régis Bonvicino, com a colaboração
de Tarso M. de Melo. São Paulo: Ed. 34,
1999. Diversos trechos das cartas serão transcritos ao longo deste estudo. Para
facilitar a indicação bibliográfica, serão indicados apenas o número da carta em questão e a página em que
ela aparece no referido volume.
[2] Nas transcrições de passagens das cartas,
procurou-se não trair de todo suas peculiaridades gráficas. Como em muitas
delas Leminski escreve como se tratasse de versos, com cortes nas linhas antes
que estas cheguem à margem direita da página, as transcrições foram feitas
tendo-se em vista o procedimento padronizado para citação de segmentos de um
poema no corpo de um texto em prosa, ou seja, utilizando-se uma barra
transversal para separar um verso do outro e duas barras quando se tratar de
estrofes.
[3] Ensaios, manifestos, bem como uma sinopse
da movimento concretista podem ser encontrados em CAMPOS, Augusto et alii. Teoria
da Poesia Concreta. 3ª ed. São Paulo: Brasileinse, 1987.
[4] Na carta 8, datada de 09/10/11 de julho de
1977, ao comentar poema enviado por Régis Bonvicino, Leminski, pejorativamente,
vai dizer: “depois a disposição que v. deu parece coisa de praxista”
(p.42). Se aqui o juízo poderia parecer
estritamente poético, vale a pena conferir outra passagem, agora da carta 38,
de 11 de outubro de 1978, em que se explicita melhor o movimento dos
bastidores: “vamos parar com essa coisinha campos de ‘não mencione gullar q
promove’, / ‘não fale em não sei o q q não é tático’...” (p.103/104) O
“campos”, com incial em letra minúscula, são os irmãos Haroldo e Augusto de
Campos.
[5] No texto de apresentação à edição
brasileira de Introdução ao zen-budismo,
de D.T. Suzuki, Murillo Nunes de Azevedo refere-se aos Anais da difusão da lâmpada, redigidos em 1209 por Lin Tsoun Hsiu. (Cf. SUZUKI, D.T. Introdução
ao zen-budismo. Trad. de Murillo Nunes de Azevedo.São Paulo: Pensamento, s/d.p.35).
[6] Carta 8, p.43.
[7] Nas cartas, Leminski refere-se noutras
ocasiões a Décio Pignatari, Augusto e
Haroldo de Campos como “os patriarcas”, termo que, conhecido o anarquismo
iconoclasta de muitas de suas posições, acaba por se revestir de um misto de
reverência e ironia.
[8] Carta 8, p.43.
[9] Carta 8, p.43.
[10] Carta 8, p.44.
[11] Na segunda edição do Catatau, saída a público em 1989, encontram-se dois breves textos
de Leminski em que o escritor explicita como concebeu o livro e dá algumas
pistas para quem quiser se aventurar em sua difícil leitura. Mais ao final do
mesmo volume, encontra-se uma pequena fortuna crítica. (LEMINSKI, Paulo.Catatau.2.ed. Porto Alegre: Sulina, 1989.) Em
artigo recente, Tarso M. de Melo aborda diferentes aspectos do Catatau, contrapondo-o inclusive a
outras obras de experimentação com as quais o livro de Leminski guarda
afinidades, sem deixar de revelar grandes diferenças em relação a elas. (MELO,
Tarso M. de. “Qualigrafeira”.Viola de Cocho, abril/maio de 1998.)
[12] Carta 8, p.44. Haroldo de Campos iria dedicar, no final da década de 80, todo um
ensaio ao Catatau. (Cf. CAMPOS,
Haroldo. “Uma leminskíada
barrocodélica”. Folha de S.Paulo,
02/09/1989.)
[13] Carta 8, p.44. Para uma compreensão mais precisa da expressão “paladar
weberniano-joãogilbertesco”, cf. os ensaios de Augusto de Campos e outros
autores sobre música no volume Balanço da
bossa e outras bossas, em especial aqueles que tratam do compositor Anton
Webern e das inovações bossa-novísticas de João Gilberto.Insistentemente vai se chamar a atenção aí
para o rigor construtivo das composições de Webern e para as interpretações
enxutas e precisas do violão e da voz de João. De alguma forma, o poeta
brasileiro evidencia nessas personalidades artísticas aparentemente tão
distantes entre si aquilo que parece haver em comum entre suas realizações e a
sua (dele, Augusto de Campos) própria poética. (CAMPOS, Augusto.Balanço
da bossa e outras bossas. 3ªed.. São Paulo: Perspectiva,
1978.)
[14] Carta 8, p.45. A combinação do “rigor” com outro elemento que em certa medida
entra em conflito com ele aparece outras vezes nas cartas. Cf., por exemplo, a
carta 9: “que a estátua da liberdade / e a estátua do rigor / velem por todos
nós” (carta 9, p.50). O título do primeiro livro de poemas pela Brasiliense
recupera essa tensão: Caprichos e relaxos.
[15] Carta 64, p.168.
[16] Na seqüência da passagem transcrita acima,
Leminski vai dizer: “o que eu gostaria, no fundo, talvez, é que as pessoas
vivessem mais esculhambadamente, reinventando essas bobagens todas do viver
cotidiano, um novo sexo, um novo ver, uma nova moral”. Essas questões são
recorrentes nas cartas. Como mais um exemplo, se poderia citar trechos da carta
10: “eu já te disse / PARA SER POETA / TEM QUE SER MAIS QUE POETA // v. tem que
ser um monte de outras coisas mais / senão donde? / v. vai acabar fazendo
literatura de literatura / v. tem que esculhambar mais / pintar mais por fora
das molduras / EXISTENCIALMENTE”. (Carta 10, p.52.) E mais adiante: “rompa //
fique mais irregular // seja mais inconveniente // é a linguagem que está a
serviço da vida / não a vida a serviço da linguagem”. (Carta 10, p.53)
[17] Carta 8, p.45.
[18] Carta 42, p.109.
[19] Cf. “plano-piloto para poesia concreta”
(CAMPOS et. alii. op. cit.), onde os “precursores” do concretismo, entre eles
Ezra Pound, surgem elencados. Para o conceito poundiano de paideuma, cf. nota abaixo.
[20] Cf. a esse respeito Abc da literatura, de Ezra Pound, traduzido por Augusto de Campos e
José Paulo Paes. Na introdução ao volume, “As antenas de Ezra Pound”, Augusto
de Campos sintetiza bem algumas das postulações fundamentais do poeta
norte-americano, entre elas a distinção entre os diferentes tipos de criadores
e o conceito de paideuma. (POUND,
Ezra. Abc da literatura. 5ªed. São Paulo: Cultrix, 1986.)
[21] Carta 42, p.110.
[22] Carta 42, p.110.
[23] Carta 42, p.110.
[24] Carta 42, p.110.
[25]
Carta 42, p.111. Há nesta passagem uma citação do “plano-piloto para poesia
concreta”: “dando por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade
rítmico-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço
gráfico como agente estrutural.” (Cf. CAMPOS, Augusto de et alii. op.cit. p.156)
[26] Carta 42, p.111.
[27] Carta 42, p.112.
[28] Carta 42, p.113.
[29] Carta 42, p.113.
[30] Carta 42, p.120. Estes dois “neutralizadores da literatura” apareciam, numa
formulação um pouco distinta quanto ao segundo elemento, já na carta 8
anteriormente comentada: “a música popular é a escola / o cartum é a escola”
(carta 8, p.45). Trata-se de uma idéia
obsessiva de Leminski, que, numa entrevista a Almir Feijó, em 1978, dizia o
seguinte: “A associação entre poesia e música tende a se tornar cada vez maior
em termos de Brasil. Os poetas mais bem dotados, mais talentosos vêm, pelo
menos, prestando muita atenção na poesia dos letristas da música popular. E do
outro lado é a coisa do cartun, quer
dizer, a área plástica, a área visual onde também há uma visão curiosa. A
poesia também está se manifestando sob a forma do cartun.” (Cf. Paulo Leminski.Série Paranaenses, nº2. Curitiba: Sciencia et Labor, 1988. p.28).
[31] São óbvias as contradições entre a
valorização da linguagem publicitária sem restrições aqui e as críticas
desenvolvidas anteriormente por Leminski na carta 42 ao aproximar a busca do
novo pelo novo na experiência de vanguarda à dinâmica do mercado de bens de
consumo. Igualmente, o neologismo “inutensílio”, criado pelo poeta para
conceituar o “poema”, se choca com o utilitarismo a que a propaganda submete
toda linguagem. (Cf. o artigo “Inutensílio”. In: LEMINSKI.Anseios
crípticos. Curitiba: Criar,
1986. p.58-60.)
[32] Carta 42, p.120.
[33] Num certo sentido, o próprio concretismo,
sobretudo no que diz respeito à trajetória de Décio Pignatari, é pioneiro na
aproximação da literatura com a publicidade, o que, sob certa ótica, poderia
indicar ainda a dívida do poeta para com o movimento.
[34]
Entrevista a Almir Feijó, em Paulo
Leminski, op.cit., p.28. No contexto de uma outra entrevista, Leminski
inclui ainda o nome de Gilberto Gil nesse rol: “Os três grandes poetas que a
minha geração (tenho 40 anos agora) produziu são para mim Caetano Veloso,
Gilberto Gil e Chico Buarque.” (LEMINSKI. Um escritor na biblioteca.Biblioteca Pública do Paraná, 1985.p.23)
[35] A respeito do trânsito de Catulo e Orestes Barbosa entre literatura e canção
popular, bem como algumas reflexões gerais sobre o tema na cultura brasileira,
cf. RODRIGUEZ, Benito Martinez. Luar da cidade, sertão de neon: literatura e
canção nas obras de Catulo da Paixão Cearense e Orestes Barbosa.São Paulo, 1998. Tese de doutorado. USP -
FFLCH.
[36] Parte substancial do trabalho acadêmico do
compositor e professor Luiz Tatit é dedicado a discutir tais questões. Uma
ótima abordagem da especificidade da canção em oposição à música, por um lado,
e à poesia, por outro, se encontra em TATIT, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil.São Paulo: EDUSP, 1996.
[37] Para uma definição mais precisa do termo
“cancionista”, cf. TATIT, op.cit., cap.1, “Dicção do cancionista”,
p.09-27. Seria interessante sublinhar
que quando Caetano e Chico, já consagrados como compositores populares, vão
publicar livros de sua autoria, os gêneros escolhidos serão a prosa
memorialística, no caso do primeiro, e o romance, no caso do segundo. A resistência a dedicar-se a uma produção de
poesia em livro (stricto sensu) por
parte destes dois autores e sua consagração, talvez mesmo a sua revelia, como
grandes “poetas” (latu sensu), parece
ser bastante sugestiva de alguns dilemas e especificidades do ambiente cultural
brasileiro neste final de século.
[38] Carta 1, p.31.
[39] Explicitadamente: Jorge Mautner, Tom Zé,
Jards Macalé, Caetano Veloso, Gilberto Gil. Doces Bárbaros é o nome do grupo
formado pelos baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa
em meados dos anos 70, cuja turnê pelo Brasil se encontra registrada em disco
homônimo e ao vivo de 1976.
[40] “Paulo Leminski desconta tudo”, entrevista
publicada originalmente no jornal GAM, Rio de Janeiro, em 1976, e republicada
em Envie meu dicionário, op.cit.,
p.205-11.
[41] Carta 14, p.59.
[42] Carta 21, p.67.
[43] Carta 66, p.171. O interesse de Leminski
pelo rock recebe a seguinte formulação na entrevista a Régis Bonvicino já
referida neste ensaio: “O rock me interessou, quando me interessei por
contracultura. / É colonizado, massificado, comercial, alienante e alienado. /
Por isso, acho que no rock as contradições do capitalismo saltam aos ouvidos. /
Rock é chicletes. É modess. É lanchonete. / É barato. É consciência elétrica. Indústria. Big business. Em
inglês. / Quando entrei em contato mais íntimo com o planeta A CHAVE já
compunha. Juntamos repertórios e muitos rocks nasceram. / Mas quero registrar
que me interessam todos os ritmos. De Cartola a Walter Franco. Do bolero ao
baião, do tango ao mambo, até o silêncio.” (“Paulo Leminsi desconta tudo”, in: Envie meu dicionário, op.cit.,
p.210-11).
[44] Carta 53, p.151-2.
[45] Carta 53, p.152.
[46] Carta 55, p.155.
[47] Carta 55, p.155.
[48] Carta 55, p.156.
[49] DALA STELLA, Carlos.“Literatura e publicidade”.Gazeta do Povo, Curitiba, 6 de junho de
1999, Caderno G, p.8. SANCHES NETO,
Miguel. “Poeta da sensibilidade
adolescente”. Gazeta do Povo, Curitiba,
7 de junho de 1999, Caderno G, p.8. No Caderno G de 6 de junho, há uma série de
depoimentos de escritores e outros artistas curitibanos sobre Paulo Leminski.
* O presente ensaio, redigido em meados de 1999 por ocasião dos 10 anos da
morte de Paulo Leminski, foi originalmente publicado na Revista Letras n.52,
2.semestre de 1999, Editora da UFPR, Curitiba, PR.
** Marcelo Sandmann é professor de literatura na Universidade Federal do
Paraná, poeta e cancionista. Lançou em 1998 o CD "Cantos da Palavra" (com
Benito Rodriguez, Silvia Contursi e Paulo Brandão).
E-mail: sandmann@humanas.ufpr.br
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