Tradução da tradição*
Anotações sobre os motores da poesia de
Paulo Leminski
Tarso M. de Melo
A poesia de Paulo Leminski, fácil e difícil, inspirada e construída, descontraída e séria, relaxada e caprichosa, certamente não é presa fácil para uma análise segundo esse ou aquele critério específico, pois busca a todo tempo o equilíbrio entre as diversificadas influências do autor, eruditas e populares, cujos efeitos não se revelaram apenas na poesia, mas em sua vida de "bandido que sabe latim".
(Seria interessante agora – e isso vem aqui como reivindicação – ter à mão um volume que reunisse toda a poesia de Leminski. Há quase dez anos desde sua morte, e já é praticamente impossível encontrar alguns de seus livros, como o raro e fundamental Caprichos & Relaxos, sua seleção de 1983. Não seria interessante, todavia, outra seleção, como a que se vislumbrou em Melhores poemas de Paulo Leminski, mas sim uma reunião de todas as páginas publicadas pelo poeta, desde não fosse isso e era menos/ não fosse tanto e era quase e polonaises – recortados ao meio para a edição de 1983 – até os póstumos La vie en close, Winterverno e O ex-estranho, de forma a mostrar sua obra como um conjunto em que muitos detalhes se perdem, e muitos elementos perdem a razão, devido à fragmentariedade de sua publicação.)
Vista como fruto de uma dedicação intelectual de mais de quarenta anos, em que arte e vida se fundiram, a poesia de Paulo Leminski, por suas marcas biográficas nítidas, talvez deva ser, e seja melhor lida, quando observada em relação ao percurso literário desse curitibano – escritor, ensaísta, pensador, tradutor.
Como é certo ver nas biografias assinadas por Leminski – Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trotski – uma relação mais que literária com a vida e a poesia de seu autor, não é difícil afirmar que o poeta, com o conjunto de traduções que publicou, almejou criar para si uma retaguarda, incluindo em nossa cultura, à sua maneira, alguns livros que, ligados a seu nome e à sua palavra, pudessem constituir alguma espécie de cenário para a sua produção pessoal. Um pouco ao estilo do paideuma de Ezra Pound, mas voltado especificamente à formação de um leitor de sua obra – porém, como é possível se identificar com os autores indicados por Pound sem se interessar pela produção pessoal do norte-americano, pode-se também admirar tal conjunto de traduções apenas e tão-somente como um conjunto de traduções realizadas por um poeta.
O que diferencia a atividade do tradutor Leminski da de seus pares – e é importante lembrar que ele publicou basicamente traduções de prosa – é a sua intromissão no entendimento da obra, no caso, de suas versões para livros de John Fante, Lawrence Ferlinghetti, John Lennon, Yukio Mishima, Alfred Jarry, James Joyce, Petrônio e Samuel Beckett, por meio de prefácios e posfácios, o que não é costume senão entre tradutores de poesia. Ou seja, mais que traduzir o romance e assim gravá-lo de sua escrita, Leminski buscava indicar a possibilidade de entendimento que mais aproximasse o leitor daquele contexto do qual e pelo qual aquele texto, e não outro, se destacou.
Com os romances que traduziu, Leminski fez aderir, estrategicamente, ao substrato de sua produção, títulos assinados por alguns dos autores fundamentais para a compreensão dos desvios de seu interesse pessoal. Não desvios em relação a qualquer norma ou padrão preestabelecido pela média das pessoas ou, mais especificamente, dos artistas-escritores; um desvio como o de defender a amplificação que a leitura de Nietzsche teria ao som dos Rolling Stones, do que se desprega um aspecto fundamental da personalidade literária desse poeta: a dialética. Uma dialética em que tese e antítese, versando ou não sobre o mesmo objeto, dedicam-se à ampliação e enriquecimento de uma síntese que, surgida, já não se relaciona diretamente com suas origens.
Essa parece ser uma grande preocupação de Leminski: a confluência entre dois, três, dez elementos que, confundidos, disfarcem o que realmente são – Nietzsche, Rolling Stones ou um provérbio – para parecerem absolutamente novos e, como conseqüência, leminskianos. Um exemplo disso, técnico e prático, o poema "Ler pelo não":
Ler pelo não, quem dera! Em cada ausência, sentir o cheiro forte do corpo que se foi, a coisa que se espera. Ler pelo não, além da letra, ver, em cada rima vera, a prima pedra, onde a forma perdida procura seus etcéteras. Desler, tresler, contraler, enlear-se nos ritmos da matéria, no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora, navegar em direção às Índias e descobrir a América.
É exemplo técnico porque nele o poeta declara sua vontade de ler "além da letra", de "no fora, ver o dentro e, no dentro, ver o fora", a maneira que encontrou para dizer que buscava na "letra" de um texto seu "espírito" e, nesse "espírito", a respectiva "letra". O "ler pelo não" que Leminski propõe, essa viagem ao Oriente que leva ao Ocidente, é a leitura à deriva, a de quem não se preocupa em fazer o caminho comum, mas em, por acaso, descobrir novos caminhos, novas possibilidades, "seus etecéteras". O leitor que, em Nietzsche, procura a si mesmo. O ouvinte que, com os Rolling Stones, quer "enlear-se nos ritmos da matéria" até alcançar Nietzsche.
É também exemplo prático porque, mesmo tendo – e talvez por ter – as características diferenciais de Leminski, o poema relê idéias que sempre estiveram ligadas à poesia, como a de sensação de presença de algo ausente, para, logo a seguir, confundir o leitor, pois não está falando da mesma coisa: a leitura que propõe por todo o poema não é a dos elementos que estão ausentes, mas a dos que se escondem em outros. E não será também uma leitura categórica, averiguadora, a responsável pelo descobrimento de outros rumos da "letra" e do "espírito"; será através daquele "ler pelo não" – e agora faz sentido lembrar a relação entre a acepção náutica de "deriva" e o verbo "derivar", que significa, além de desviar o curso de algo, os atos de dar origem, fazer provir, formar a partir, desenvolver. Tudo o que Leminski chama de "não".
Esse "não", ao contrário do que se espera, é um "sim" às deformações do texto literário, uma procura pelo que o texto ofereça de divergente, como o percuciente Guimarães Rosa que, na "negação" da gramática literária, encontrava sua escrita, se tornando sem iguais e literariamente insubstituível. Aliás, Rosa é um claríssimo exemplo de autor em que convergem disparidades: a fala mais popular possível é o coração de um dos mais consistentes produtos de nossa língua e de nossa literatura, seu Grande sertão: veredas.
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E Leminski traduz. Para, como já foi dito, criar para si uma retaguarda, capaz de confortar um pouco mais essa poesia que, para ser somente sua, precisa conviver abertamente com tudo que existe ao seu redor. Daí a importância de que ao seu redor estejam determinados autores com suas obras traduzidas à máxima semelhança possível da dicção de seu tradutor. Ou seja, Leminski queria traduzir-se, e não lhe interessaria debruçar-se – seja por pouco ou muito tempo – sobre um original, a pretexto ou propósito de dar alegria a leitores. Leminski, na tradução, buscava seu próprio contentamento, acreditando que, a partir disso, conseguiria despertar o interesse e, por ventura, a alegria de algum leitor. Exatamente o que diz no poema O que quer dizer, dedicado "para Haroldo de Campos, translator maximus" – incontestável influência do Leminski tradutor:
O que quer dizer, diz. Não fica fazendo o que, um dia, eu sempre fiz. Não fica só querendo, querendo, coisa que eu nunca quis. O que quer dizer, diz. Só se dizendo num outro o que, um dia, se disse, um dia, vai ser feliz.
É nos três últimos versos desse poema que Leminski conceitua o que é a tradução a seu ver: a vontade de dizer a si num outro, de escrever seu texto por dentro do de alguém, única maneira de ser feliz. Um texto no qual percebesse que não alcançaria algo que pudesse ser originariamente de sua lavra, não interessaria a Leminski. O que justifica, entre outras coisas, atitudes como a de desdenhar, em notas à sua tradução do Pergunte ao pó de John Fante, de dois poemas que constam do romance, primeiro declarando que "o poema é tão idiota no original quanto na tradução", e depois, sequer traduzindo o poema, sob a alegação de que "eu tenho mais o que fazer".
Sérgio Buarque de Holanda, em O espírito e a letra, artigo de 1950 que empresta título à magistral reunião de seus "estudos de crítica literária" (Cia. das Letras, 1996), sobre a tradução de determinado romance, diz que o tradutor "não cuidou sempre, ou apenas, em traduzir o texto, palavra por palavra [...] traduziu também a atmosfera própria, o colorido peculiar, as harmonias, enfim, que o autor infundiu nesse texto, e que não residem unicamente nas palavras e nas frases. O que se explicaria, sem dúvida, por uma devota aplicação, mas ainda, e sobretudo, por alguma espécie de afinidade íntima, que lhe teria permitido integrar-se admiravelmente no sentido íntimo da obra". Nesse trecho, o crítico-historiador não está, mas muito bem poderia estar falando de uma tradução de Leminski.
O poeta curitibano, auto-declarado "investigador do sentido no torvelinho das formas e das idéias", chegou mesmo a dizer (em entrevista a Ademir Assunção), quanto a seu trabalho de tradutor, que "Eu procuro trazer um vivo para os vivos. Não adianta nada eu embalsamar uma múmia. Não lido com mortos. Não sou necrófilo. Não há dinheiro no mundo que faça eu perder tempo traduzindo um Emile Zola". Por que isso, se não por querer – como diria Sérgio Buarque – "integrar-se [...] no sentido íntimo da obra"?
Não se deve confundir, no entanto, tal declaração de Leminski com a de alguém que dedique-se exclusivamente a traduzir seus contemporâneos. Muito pelo contrário, pois Leminski deu, ao Satiricon, "o mais antigo de todos os romances", uma tradução que, "feita diretamente do original em latim, procurou, sobretudo, preservar os valores orais e populares da linguagem de Petrônio, transpostos para uma linguagem viva e crua de hoje". O mesmo empenho de transpor valores que permitiu a Leminski traduzir, num texto de John Lennon, um nome próprio por outro, no caso, Bernie Smith por Joãozinho Trinta – também nessa instância dando sentido ao uso aqui da afirmação de Sérgio Buarque, sobretudo àquela "espécie de afinidade íntima" de que fala o crítico-historiador.
Leminski sabia que a tradução literária era uma "dúbia arte". E foi através dessa dubiedade que ele deu vazão, em português, às suas infinitas afinidades com esse ou aquele escritor. E, para ilustrar um pouco, Lezama Lima poderia nos emprestar a afirmação de que "o olho sente um orgulho passivo quando se estende na figura". Estender-se na figura, para Leminski, é traduzi-la, é imaginá-la na sua língua segundo seu linguajar. Ou, ainda mais, é absorvê-la a ponto de, quando reescrita, ser uma peça de sua obra, de que possa sentir orgulho. Como uma frase do Giacomo Joyce que poderia estar no Catatau ou no Agora é que são elas, mas que, sendo apenas a frase de Joyce traduzida por Leminski, faça por merecer a acusação de que "dá prazer à vida pois dá prazer de ler", por exemplo, numa resenha de Antônio Houaiss.
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Murilo Mendes, num dos Retratos-relâmpago, registra um diálogo com Ezra Pound em que o norte-americano afirma que "as boas traduções têm a vantagem de esconder os defeitos do original". Se acreditarmos nesse aperfeiçoamento do autor pelo tradutor, estaremos a poucos passos de acreditar também numa superação daquele por este, o que, justa ou injustamente, já foi diversas vezes alegado.
De certo modo, e em chave muito subjetiva, podemos afirmar que algumas traduções nos interessam mais que seus originais, pelo simples motivo de estarmos, na tradução, em nossa língua, mais próximos de um entendimento mais claro, rápido e fácil. Se for isso o que procuramos em literatura, estaremos completos.
Por outro lado, aquilo que Pound chamou de "esconder os defeitos" pode beirar um saneamento do original, ou seja, um tradutor norte-americano que verta todas as deformações de você em Guimarães Rosa pelo unívoco e corretíssimo you inglês. No mínimo, o texto está morto e, no máximo, interessará apenas ao faroeste sua tradução.
Leminski, exímio driblador, tem como maior prova de que seu trabalho não era o de traduzir você por you, o Sol e aço de Mishima, em que constam como "assessoria técnica para a tradução" duas professoras da língua japonesa. Ou seja, Leminski não precisava saber francês para ser o tradutor que resolveu os duplos sentidos das frases de Alfred Jarry; seu mérito não está em perceber a ambigüidade de uma frase de John Lennon, mas em traduzi-la pelo "por mares nunca dantes" de Camões. Coisas do poeta Leminski, possíveis tão-somente porque semelhantes à sua atividade principal, a de criar.
Para quem escreveu o Catatau – monumento à liberdade e inventividade literária em relação à língua e à lógica, um elástico na verossimilhança sem deixar de ser rigoroso na expressão de seus delírios – ter "jogo de cintura" para traduzir não seria um obstáculo intransponível.
Bastava criar, com a mesma liberdade de sempre, mas agora a partir de um outro texto, um pré-texto, "navegar em direção às Índias e descobrir a América", do que se beneficiariam os dois "Leminskis": o tradutor, pois se aproximaria ao máximo do original, e o poeta, pois exercitaria sua "letra" no "espírito" ora de um irlandês, ora de um francês. Benefício que Leminski soube receber, aliás, também como tradutor e biógrafo de Bashô, razão pela qual seja hoje a maior influência dos que cultivam a sorrateira arte do hai-kai – sempre pronta, mesmo em Leminski, ao mais sublime e ao mais banal.
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Além da sua relação com a tradição, mais especificamente, com uma tradição particularizada num pequeno grupo de autores dos quais se achava literariamente mais próximo, há a relação com os escritores de sua geração ou das últimas gerações anteriores à sua, como Poesia Concreta e Poesia Marginal.
Com a Poesia Concreta, a relação de Leminski já foi bastante comentada, até mesmo pelo poeta, inclusive em suas inter-relações com a Tropicália. Leminski teve um bom relacionamento durante sua vida tanto com o grupo paulista quanto com o baiano, e acreditava estar na confluência entre as duas correntes, podendo usufruir a um só tempo das principais linhas e propostas de ambas.
Todavia, pode-se aqui lembrar que, da mesma forma como essa relação Poesia Concreta/Tropicália não é das mais simplistas – com ênfase na afirmação da professora Lúcia Santaella, ao estudar tal aproximação, de que a "dimensão-estrutura cultural, como conjunto das produções sígnicas de uma dada sociedade, configura-se como uma rede intrincada, urdidura complexa de manifestações de linguagem que não se deixam capturar nas simplórias e superficiais explicações das influências diretas" – há muito mais do que simples influência desses grupos sobre Paulo Leminski.
Já em relação a Poesia Marginal, tudo é muito circunstancial. Por ter um estilo de vida marcado pelo mesmo despojamento que caracterizava esses artistas, inclusive tendo morado no Estado em que tal tendência esteve mais presente, o contracultural Rio de Janeiro do fim dos anos 60 e começo dos 70, Leminski está incluído no rol dos ditos poetas marginais, confusão que satirizou num poema já na década de 80:
Marginal é quem escreve à margem, deixando branca a página para que a paisagem passe e deixe tudo claro à sua passagem. Marginal, escrever na entrelinha, sem nunca saber direito quem veio primeiro, o ovo ou a galinha.
O primeiro verso ("Marginal é quem escreve à margem") poderia, assim solto, ser o slogan da geração, mas quando a ironia de Leminski começa a desmontá-lo, seu sentido vai dando espaço a acusações sutis, como a de que, depois de escreverem, aqueles poetas ainda deixavam a página "branca", isenta, virgem, na esperança de que alguma "paisagem" (talvez o Rio de Janeiro, talvez os anos 70, mas sem dúvida uma conjuntura) a preenchesse de seu sentido comum, o de geração. Esse agudo Leminski da primeira estrofe, dá lugar em seguida a outro, também irônico, mas agora exclamativo, que deixa no ar como uma das possíveis dúvidas, por trás da questão ovo/galinha, a de que a poesia, por sua própria natureza, sempre foi marginal, e que àquela época, cultural, política e economicamente repressiva, não seria a poesia o mais procurado dos produtos.
Distante dessa poesia "alternativa", senão pela vontade comum de brincar com as palavras, um jeitão lúdico (o "desmontar brinquedo") que não surge com os "marginais", mas desde os latinos que Leminski tanto reverenciava, havia mais forte em Leminski uma aversão à poesia engajada, "a serviço", "participante", e que nesses argumentos se apoiasse para chamar tudo o mais de alienado e alienante. Contra isso, em Uma carta uma brasa através, Leminski escreve a Régis Bonvicino:
[...] eu não posso me responsabilizar pelo fato de q algumas
pessoas usam uma palavra num sentido q eu condeno as palavras
estão aí para isso mesmo e aí tudo cai naquilo q já te falei
nós não podemos achar q palavras como liberdade vida che mao
povo fome tortura SEJAM DELES! cê tá me entendendo?
é isso q eles querem toda palavra revela uma direção uma
intenção o lado para q você pende essas palavras também são
(podem ser) nossas é o fim da picada se a gente começar a
salivar ao ver essas palavras assim como eles tão pavlovianamen-
te fazem quando vêem poema espacial montagem ou artefinal
quem conhece os caminhos do signo como nós pode entrar no
fogo sem se queimar na água sem se molhar na redundância
sem se banalizar
Leminski aí demonstra-se preocupado, em setembro de 1978, com a liberdade de sua poesia, afinal, definia a poesia como "a liberdade da minha linguagem". Nessa carta, algumas palavras, genérica ou especificamente ligadas à política e que serviam de elementos básicos para a confecção da bandeira dos engajados, são enumeradas por um Leminski que em nenhum momento as renuncia nem delas quer abrir mão. No fundo, Leminski queria poder usá-las como qualquer outra palavra, isentas da unilateralidade que impunha ao seu sentido o uso tendenciosamente corriqueiro.
A liberdade da sua linguagem estaria em usar ou não tais palavras, e de, acima dessas coisas, ser político à maneira da própria poesia, pois acreditava, como consta da sua "teoria do inutensílio", que "existe uma política na poesia que não se confunde com a política que vai na cabeça dos políticos. Uma política mais complexa, mais rarefeita, uma luz política ultravioleta ou infravermelha. Uma política profunda, que é crítica da própria política, enquanto modo limitado de ver a vida".
"Quem quer que a poesia sirva para alguma coisa não ama a poesia. Ama outra coisa", afirmou ainda Leminski, sem que com isso estivesse pregando um "palavrismo" vazio, mas acreditando que o melhor que os poetas poderiam fazer pela poesia, era dedicar-se antes de tudo ao poema. E aí encontrariam sua melhor função: o prazer daquela poesia que é paixão da linguagem. A paixão que moveu Leminski por sua biografia de Leon Trotski, por exemplo, e que fez desse livro um dos que mais orgulhava seu autor, que o subintitulou de "a paixão segundo a revolução" sabendo que ali o que se contava era a revolução segundo duas paixões: a do protagonista e a do biógrafo.
O poeta Leminski queria para si e para sua poesia um "lugar mental" profundamente afeiçoado à sua idéia de vida, de mundo, de estar no mundo, um lugar compatível com a "grandeza da vida". Talvez, uma escapatória daquele que muitas vezes é o ambiente real de sua poesia, como o do poema Como abater uma nuvem a tiros:
sirenes, bares em chamas, carros se chocando, a noite me chama, a coisa escrita em sangue nas paredes das danceterias e dos hospitais, os poemas incompletos e o vermelho sempre verde dos sinais
Ou ainda o desse poema sem título, em La vie en close:
que pode ser aquilo, lonjura, no azul, tranqüila? se nuvem, por que perdura? montanha, como vacila?
O primeiro, um ambiente que surpreende. O segundo, um ambiente que é surpreendido. Um metropolitano, outro bucólico. Tanto um quanto o outro, algo desinteressantes para uma poesia que quer seu locus em meio a idéias, como confirma o professor Raul Antelo, estudando Leminski entre outros: "Desenraizados, para eles, e conforme à melhor tradição pau-brasil, o sujeito lírico é um passante arlequinal e hermafrodita sem referências fixas e, portanto, desgeograficado, como herói-sem-caráter, fundindo nele próprio o espírito dos lugares que atravessa".
Esses lugares fundidos, por Leminski em Leminski, não são mais nem menos que idéias de lugares, delimitações ou distorções favorecedoras da busca de um "ponto de fuga" para o poema ou, mais discretamente, para toda a poesia. A poesia de Leminski parte de uma idéia e não diretamente de uma observação, o poema de Leminski é uma idéia e não uma descrição naturalista – coisa da qual Leminski não gostava sequer de ouvir falar, em se tratando de poesia/literatura.
Leminski queria idéias, não conteúdos, afinal "preocupações com a ‘forma’ obscurecem o ‘conteúdo’", e, dando-se as costas a tais preocupações, se está abrindo portas para um "discurso jornalístico", para a automatização característica do jornal, "uma entidade impessoal e abstrata". A beleza, o prazer, a percepção, sim, importam. Como certeira e sucintamente gravou num poema sem título, com a dedicatória "como se eu fosse júlio plaza":
prazer da pura percepção os sentidos sejam a crítica da razão
Um pequeno poema que diz muito sobre um outro engajamento de Leminski, mais subjetivo, agora no "processo de descoberta/criação de sentidos e significados". E isso era tudo que ele, artista, queria. Um basta na arte instrumento, na arte mercadoria, na arte que não é arte. Na arte que é feita para doutrinar, para se vender ou para vender algo.
O simbolista Leminski buscava uma poesia para os cinco sentidos, indeterminada, para todos e para ninguém. Uma poesia que soubesse, como na citada carta a Bonvicino, "entrar no fogo sem se queimar na água sem se molhar na redundância sem se banalizar". A poesia que Leminski reivindicava, a "um deus [que] também é o vento", em que se pode "sofrer sem ser visto", "gozar em silêncio", "passar/ nunca duas vezes/ no mesmo lugar". Essa é a poesia em que "um poema/ que não se entende/ é digno de nota". Essa é toda a poesia de Leminski.
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Podemos ainda falar de um poema, já clássico, sem título, que oferece alguma dimensão a personalidade obstinadamente poética desse curitibano que, por quarenta e quatro anos, enquanto resistiu à própria vida, foi ininterruptamente poeta, como ele mesmo gostava de afirmar. Um poema engraçado, que tem, a meu ver, como principal mérito o de biografar seu autor à perfeição:
o bicho alfabeto tem vinte e três patas ou quase por onde ele passa nascem palavras e frases com frases se fazem asas palavras o vento leve o bicho alfabeto passa fica o que não se escreve
Mais uma vez a "idéia", aquilo "que não se escreve", é o que fica, permanece, perdura, resiste, protegida por "vinte e três patas ou quase", que, passadas, ausentes, ainda residem ali como algo alheio a todo entendimento, por trás dos seus disfarces.
Seu autor, no entanto, afirmava que "a literatura não passa de um fetiche universitário. Não estou interessado mais na idéia de uma literatura, nem mesmo de uma continuidade literária. Não tenho nenhuma intenção que as minhas coisas, por exemplo, tenham um padrão de continuidade com isso que se chama de literatura. Quero, pretendo estar atuando sobre a coisa mais complexa, que se chama cultura".
Hoje, é nítida a marca inconfundível de Leminski influenciando muito do que se faz em nossa cultura atual, além da poesia e da literatura, a letra de música, algum teatro, algum cinema e o modo de pensar certas coisas. Esse "mestre em desastres", "pequeno poeta da província", "cachorro louco" e "filhadaputa", entre outras coisas, soube ser "bicho alfabeto" por onde passou. Certamente.
Tarso M. de Melo, poeta, reside em Santo André, SP, autor de Odisseu sandeu (ed. do autor, 1996), Poesia, pão e circo & Paulo Leminski: ofício de fascínio (Alpharrabio, 1997) e Mimos mínimos (Alpharrabio, 1997)
* Conferência de abertura da "II Semana Paulo Leminski", promovida pelo CEPEL (Centro de Estudos e Pesquisas em Letras Paulo Leminski) da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Campus de Araraquara/SP, entre 3 e 6 de Novembro de 1998.
Copyright © 1998 by Tarso M. de Melo
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