Com quantos paus se faz um Catatau*

Régis Bonvicino


Desejo chamar a atenção, mesmo que de modo telegráfico, para um aspecto importante do Catatau, de Paulo Leminski.
Desde de 75, quando foi lançado, o pouco que se escreveu a seu respeito inventaria e aborda apenas suas influências e referências, digamos, literárias e históricas como o objetivo de montar-se um cenário contextual que facilite "sua difícil leitura".
Tudo muito filantrópico e bastante museológico.
Todo mundo sabe que a literatura e a história foram inventadas para pacificar e controlar os conflitos vivos da vida e da poesia.
O próprio autor revelou, a meu ver exclusivamente no sentido necessário de divulgação e não no de pompa, que, para a confecção do livro, havia partido, entre outras fontes, da macarrônica do padre Folengo, do Finnegans wake de James Joyce, das Galáxias de Haroldo de Campos.
O Catatau, a prosa mais densa e inventiva dos últimos dez anos, foi para mim, em primeiro lugar, engendrado e articulado por meio de um recurso corrente na linguagem popular.
Nada mais e nada menos que o corriqueiro provérbio.
Ninguém sabe direito o que é provérbio. Mas tem, pelo menos, algumas marcas e características bem definidas.
Para os dicionários é, geralmente, uma máxima popular expressa em poucas palavras.
Para o lingüísta russo Roman Jakobson é, ao mesmo tempo, um utensílio de uso comum e uma obra de arte.
Em termos Duchampianos, poderia se dizer que é um poema "ready made".
Em suma, uma sentença sintética, poética, referencial, com jeito de oráculo, que corre de boca em boca, fazendo a cabeça das pessoas.
(Assim, pode-se dizer também que as frases de pára-choque de caminhão, os slogans e os grafites de muro são traduções industriais e urbanas dos provérbios e quejandos.)
No Catatau, que é o tema central deste telegrama, Renatus Cartesius, estrela do texto, filósofo das idéias claras e das verdades absolutas, tenta enquadrar a realidade tropical nova, exuberante e emergente em seus velhos esquemas europeus.
Aí os provérbios entram na "estória" e começam a fundir a cuca do pensador geômetra. Leminski destrói e reconstrói os ditados populares a fim de produzir um EFEITO ICÔNICO com as alucinações de Renatus, provocadas pelo choque lisérgico da fauna, da flora e da vida tropical em sua lógica superracionalista.
A nova realidade indomada e indomável, via veneno poético dos provérbios reinventados, desfoca e subverte a rigidez ótica de seu sistema de pensamento.
RC tenta tapar o sol com a peneira, quando vê seus modelos em perigo.
Sintoma de tiroteio que acontece no tecido da linguagem.
No écram.
Verdadeiro bang bang no melhor estilo wild wild west. De um lado, ALTAS FILOSOFIAS, o mocinho sério e cerebral, e, de outro, PROVÉRIBIO, o bandido fuleiro e intuitivo.
"[...] A Ralé em geral com sua aptitude de fazer provérbios, dizer bobagens [...]", declara RC, p. 46, de maneira bastante suspeita...
Guerra entre o discurso longo, imperialista e o lampejo breve, terrorista.
Poderia citar, para comprovar o que digo, milhares de exemplos e "exemplares" espalhados à farta pelo livro, mas basta ler para crer.
Ler para crer que os provérbios de ralé, e todos os seus similares, de trocadilhos e anexins, referenciam e amarram, com unhas e dentes, a narrativa do Catatau ao mundo popular, à boca do povo, esse "inventalínguas".
E não só ao literário.
O que é fundamental em um país subdesenvolvido, colonizado, perdido num baú continental de louros e letras.



Régis Bonvicino

 

Régis Bonvicino é poeta, autor, entre outros livros de "Bicho Papel" (1975), "Sósia da Cópia" (1983), "Céu-eclipse" (1999), "Envie meu dicionário" (1999) correspondência com P. Leminski.

 

*OBS.: Texto escrito em 1979, publicado somente na 2a edição do Catatau, em 1989 (Sulina, Porto Alegre), por iniciativa do próprio Leminski.

Copyright © by Régis Bonvicino

 

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