Esse trânsito livre entre poesia falada e escrita tem uma conotação nostálgica, “poesia de volta às origens: no início, poesia era canção. O ser da poesia só se explica, geneticamente, pela sua origem como letra de música, porque ela estava ligada com a esfera musical” 19. Decorre daí uma passagem, na produção poética de Leminski, do valor espaço para o valor tempo. O primeiro se ocupa da plasticidade, da disposição da palavra na página, com a materialidade da palavra impressa na página, enquanto que o segundo se liga ao aspecto musical. Há um determinado momento, em sua poesia, que o interesse se transfere para a cadência da fala, a poesia se torna mais caudalosa. O registro da escrita é dado no tempo, na substância fugaz da voz, na música, no grão da voz barthesiano, como evidencia o seguinte poema:
Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva,
para ir do percalço ao espasmo. (LVEC, p.18) 20
São descendentes diretos dessa influência ligada à música e, em especial, ao tropicalismo, versos como esses, nos quais prepondera a melopéia, que Régis Bonvicino viu como sendo “melodias escritas com harmonias sintáticas irreverentes (...) onde o sentido vai se dando pelo encantamento sincopado do som" 21:
Condenado a ser exato
quem dera poder ser vago
fogo fátuo sobre um lago
ludibriando igualmente
quem voa, quem nada, quem mente,
mosquito, sapo, serpente. (LVEC, p.23)
Há textos de Leminski que poderiam exemplificar sua filiação à Tropicália, exemplos de tropicalismo tout court, como é o caso de desmontando o frevo (CER, p.16), você/ que a gente chama (CER p.56), ou mesmo para que leda me leia (DV, p.62) (chamo de textos porque são mais letras de música do que propriamente poemas no sentido estrito). Inclusive, o poeta chega a fazer um convite para que o leitor também musique uma das letras (para que leda me leia), além de abrir assim seu livro de estréia: “Aqui, (...) poemas para dizer, em voz alta. E poemas, letras, lyrics, para cantar. Quais, quais, é com você, parceiro”. Mas a melhor amostragem fica sendo Verdura, sendo inclusive gravada posteriormente por Caetano Veloso no LP Outras palavras (1981), e que poderia muito bem ter sido escrita por Torquato:
de repente
me lembro do verde
da cor verde
a mais verde que existe
a cor mais alegre
a cor mais triste
o verde que vestes
o verde que vestiste
o dia em que te vi
o dia em que me viste
de repente
vendi meus filhos
a uma família americana
eles têm carro
eles têm grana
eles têm casa
a grama é bacana
só assim eles podem voltar
e pegar um sol em copacabana (CER,p.84)
O ambiente inicial do texto (embasado por paralelismos gramaticais, como: o dia em que te vi/ o dia em que me viste; e eles têm carro/ eles têm grana), a partir de um recorte memorialístico dado meio que por acaso (de repente me lembro do verde), é eminentemente tropicalista, utilizando para isso uma das cores-símbolo do Brasil, em todas as suas nuances e contradições (a cor mais alegre/ a cor mais triste). Desse modo, o poema atinge um tom quase lisérgico, no qual ressaltam ecos do tropicalismo: superbacana, de Caetano Veloso, e ai de ti, copacabana, de Torquato. Ocorre então uma inversão paródica do nacionalismo, principalmente na segunda estrofe, que funciona como uma espécie de crítica política avant la lettre à emigração de brasileiros em busca de melhores condições de vida, numa progressão desenfreada, principalmente para os Estados Unidos, nos anos que se seguiram à primeira publicação do texto em livro (1981).
Poesia e Invenção
Os textos de Leminski, assim como os de Torquato, parecem tocados pela necessidade de invenção, do poema como texto autônomo, nova realidade diante da(s) realidade(s). Invenção, aqui, pode ter o sentido dado por Leyla Perrone-Moisés:
"Invenção" é também a criação de uma coisa nova, mas não de modo divino e absoluto. Inventar é usar o engenho humano, é interferir localizadamente no conjunto dos artefatos de que o homem dispõe para tornar sua vida mais rica e mais interessante. Dentro de um sistema de Verdade, invenção tem algo até de pejorativo. Diz-se de uma mentira: isso é uma invenção. Daí haver algo de provocador no uso da palavra invenção para designar o fazer artístico. O escritor que diz 'eu invento' recusa as verdades absolutas e os valores estáveis, ressalta sua habilidade mais do que sua inspiração. (...) Chamada de invenção, a obra de arte é comparável à pólvora ou ao avião. 22
Portanto, ao aproximar os nomes de Leminski e Torquato do conceito de invenção, procura-se, na verdade, clarificar um procedimento comum aos dois poetas, em oposição à idéia de arte reflexiva. Torquato aproxima, de modo explícito, a linguagem do corpo e o corpo da linguagem, ou seja, o poeta procura dar a ver a correspondência entre ato criador (recitar/escrever) e dado existencial, acarretando, no atrito entre eles, “imprevisíveis significados”, “informação” e “invenção”, como nesse trecho:
Quando eu a recito ou quando eu a escrevo, uma palavra -um mundo poluído- explode comigo e logo os estilhaços desse corpo arrebentado, retalhado em lascas de corte e fogo e morte (como napalm) espalham imprevisíveis significados ao redor de mim: informação. Informação: há palavras que estão nos dicionários e outras que não estão e outras que eu posso inventar, inverter. 23
O que Leminski pretende, por seu turno, é
CONSTRUIR estruturas, processos e recursos, inovadores, frustrativos às expectativas, aberturas, ciente de que mexer profundamente com os homens é mexer com os próprios fundamentos materiais em que se dá a comunicação. Indústria de base: na própria infra-estrutura sígnica. (...) Função fundadora, construtiva, inovadora, heurística, da consciência. (...) Quem não entende o caráter produtor de consciência, nunca compreenderá a arte de vanguarda. (...) O poema de invenção ou experimental não reflete. Ele é um novo objeto do mundo (um Primeiro). É crítica do mundo, pela linguagem, o que só consegue ser sendo também crítica da linguagem, onde se depositam os valores da cultura, os mitos e os ideologemas vigentes. 24
Construir, nesse caso, é inventar, passo a passo, palavra por palavra,com a “perfeição das coisas feitas nas coxas”, um objeto poético que é a um só tempo e metalingüisticamente, crítica do mundo e da linguagem.
Fabrício Marques de Oliveira
Referências Bibliográficas
1 FAVARETTO, 1979. p.97.
2 LEMINSKI, 1994b. p.26.
3 ASCHER, 1995. p.6.
4 FAVARETTO, 1979. p.8,11,18,19 e 20.
5 LEMINSKI, 1986a. p.78.
6 CÉSAR, 1993. p.127.
7 PIGNATARI, 1982.
8 LEMINSKI, 1992. p.175.
9 LEMINSKI, 1994b. p.92.
10 SALOMÃO, 1992. p.6.
11 LEMINSKI, 1992. p.159.
12 BONVICINO, 1992b. p.171.
13 SALOMÃO, 1995. p.13.
14 TORQUATO NETO, 1982. p.137 e 180, respectivamente.
15 MACHADO, 1992. p.6.
16 TORQUATO NETO, 1982. p.61.
17 LEMINSKI, 1992. p.46.
18 WISNICK, J.M, 1992. p.4.
19 LEMINSKI, 1994b. p.28.
20 A partir daqui, as citações dos poemas de Leminski serão identificadas assim: LVEC (La vie en close); DV (Distraídos venceremos) e CR (Caprichos e Relaxos).
21 BONVICINO, 1992d. p.186.
22 PERRONE-MOISÉS, 1990. p.101.
23 TORQUATO NETO, 1982. p.98.
24 LEMINSKI, 1986a. p.67.
*OBS.: Publicado originalmente em REVISTA DE ESTUDOS DE LITERATURA, Belo Horizonte, MG, vol. 4, p. 135-145, out. 1996.
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