Notas sobre Metaformose,
de Paulo Leminski
*

Benjamin Hollander


Ao contrário daquele "completamente outro" de Celan, a crítica do ego por Leminski é "construída" com aquilo que vamos matar ou afogar para nos manter inteiros, completamente sãos e salvos, desejando uma fundação ou plano que, no fim, vai nos deixar loucos. Fico imaginando onde Perseu situa o espelho que usa "contra" a Medusa. Será que ele o usa em um ângulo no qual ainda consegue se ver - caso ela venha por trás? Nunca fica claro o quanto de si mesmo ele olha, enquanto a enfrenta com a espada e o espelho. Será sua estratégia evitar o olhar filtrando-o através de outra lente e, ao mesmo tempo, desejar se ver naquele cristalino? Desejar-se naquela que vai congelar aquele olhar, desejando: então vamos poder nos virar para/em nós mesmos. No "imaginário" de Ovídio, isso, naturalmente, é o que ocorre com Narciso, quando ele rejeita Eco. Narciso desdenha Eco somente para ouvir a si mesmo - a transformação que sempre nos leva de volta a nós mesmos. Entra a fábula: alguém desfaz/desdiz um outro, para ser ele próprio um fazedor e um dizedor - ela entra por um livro de pilares de pedra. A transformação que inexoravelmente nos leva ao lar - Ulisses, de fato, chega em casa. Assim, os chamados de Narciso são transformados e ecoados por suas últimas palavras, que Eco ouve, seus próprios apelos, o apelo dele, retornando ao namora-flor. Leminski teceu um labirinto de fábulas a partir do chamado e resposta deste mito - Narciso & Eco. As outras se sobrepõem a esta - sim, é claro, como ondas.
Entretanto, não tenho certeza se essas vozes de Leminski estão se encontrando mutuamente ou apenas têm conhecimento ou desejo de conhecimento mútuo. Ou talvez elas, como nós, tomem por um encontro o conhecimento e o desejo que têm uma das outras. "Em que vou me transformar, no final? Quem acertar, ganha o direito de olhar bem nos olhos da Medusa". Esse "direito" à imagem do conhecimento, esse desejo pela imagem do conhecimento, esse desejo pelas imagens do conhecimento e do desejo, isolam-nos em um "deserto mal-assombrado de estátuas", (quase escrevi "estatutos", e por que não?). Essa a ironia: onde uma geração futura vai olhar para trás - mas não como Orfeu - fazendo esse deserto florescer de mais fábulas, "alimentando-se do cadáver putrefato das fábulas já esquecidas". Mas não como Orfeu, rededilhando sua lira, cordas soando uma dor, como se elas também tivessem sido rompidas no luto, destituídas de seu lenho, amarradas nele, como ele na mata que o cerca. "Que são os acordes da lira de Orfeu comparados com um rosto que se mira e remira?". Aquela face: Narciso à flor d'água em seus próprios "olhos alagados". O segredo de Gyges, o rei que vê sem ser visto, é contado através de fábulas que emolduram nossas arquiteturas políticas, que nos enquadram - de Narciso a Medusa a Perseu ao Panopticon de Jeremy Bentham. "A Medusa queria paralisar a história, a Medusa queria pedra. Perseu queria mais, fazer a história, contar a história, ser contado pela história, esse, um dos significados possíveis da fábula de Perseu e da Medusa". Qual é a diferença? Aqui está o troféu-de-cabeça. Aqui está a cabeça falante alardeando o troféu-de-cabeça. Tanto a história como a cabeça "brilham" como ouro.
No imaginário de Ovídio, Perseu guarda a cabeça-prêmio num alforje, enquanto se torna invisível para conseguir fugir das irmãs Górgonas da Medusa. Ele vê sem ser visto. No "imaginário"de Leminski, esses mitos se procuram e se transformam mutuamente em espelho e pedra. "Eterna auto-identidade". Eu ouço Zarathustra e seu anão: "Pode a metamorfose ser o errôneo, a vontade dos deuses? Que poder nossa vontade tem? A de alguém que simplesmente desejaria permanecer em sua própria forma ou estado?" "Quem acertar, (também) ganha o direito de olhar bem nos olhos da Medusa".

 

Benjamin Hollander

 

Sobre Hollander:


Poeta e ensaísta nascido em Haifa, Israel, em 1952, e radicado em San Francisco, Hollander tem seu The Book Of Who Are Was publicado em 1997 na New American Poetry Series, da Sun & Moon Press, prestigiosa coleção de nova poesia dos EUA que traz, entre mais de 30 autores, Barbara Guest, Juliana Spahr e James Sherry. Alguma poesia sua está traduzida para o francês por Emmanuel Hocquard (Onome, em 49+1 nouveaux poètes américains), e na coleção Un bureau sur l'Atlantique, em tradução coletiva organizada pela Foundation Royaumont (1997). Ben Hollander também dirigiu, com David Levi-Strauss, a revista Acts, editada em San Francisco.

 

tradução e nota de Josely Vianna Baptista
leia o texto original em Metaphormosis

 

*OBS.: Publicado originalmente em MUSA PARADISIACA, Jornal Gazeta do Povo, Curitiba, PR, 7 de fevereiro de 2000.

Copyright © by Josely Vianna Baptista

 

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