PERFIL LEMINSQUASE*

Jayro Schmidt


Com algumas referências de e em torno de Paulo Leminski Filho (1944-1986), traço um perfil aproximado do poeta mais insatisfeito de sua geração, uma geração que se insurgiu contra a ordem estabelecida e imposta pelo golpe militar de 64. A figura opressiva foi a da censura, da prisão, da tortura e do exílio. A figura propriamente dita de Leminski, e que representou as aspirações dos demais, foi contracultural, portanto marginal.
Na introdução da edição das cartas que recebeu de Leminski, diz Régis Bonvicino que em função “do quadro político e cultural” vários poetas estavam “exilados dos cadernos culturais dos dois grandes jornais daquele período: Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo e, também, exilados de editoras”. Remando contra a maré apareceram publicações alternativas como Poesiaem Greve, Qorpo Estranho, Muda, Navilouca, Pólem, Código e Almanaque Biotônico, veículos de e para poetas banidos, na realidade anti-revistas que grafavam um espírito de inovação que deve ser interpretado sob a ótica da palavra modernista, concretista, tropicalista. Os “patriarcas”, como Leminski chamava Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos, foram o pólo de referência intelectual para toda esta geração de novos e novíssimos poetas, entre os quais Leminski, que se dizia mais que concreto que os próprios concretos, pois nasceu concreto.
Na órbita da contracultura, com tons de vanguarda, estava Leminski com a palavra viva, inventando-se como “homemcentauro” e como “louco”. Viver e escrever para ele foi a mesma coisa: “eu vivo para fazer poesia”. Mas esse viver-fazer se ressentia com o isolamento declarado em uma das cartas: “além do mais/ tem o fator isolamento/ tirando a alice (que é comprometida)/ não tenho interlocutores poéticos/ à altura aqui/ tenho mais é fãs/admiradores/ o q é péssimo/ fico sem critério”. O sentimento de exílio involuntário não evitou, entretanto, um Leminski cada vez mais rigoroso consigo mesmo, com o seu meio e com o que estava sendo produzido nos principais centros culturais, tudo a partir da história pessoal em contato – em choque – com a história de uma época.
Nas palavras de Miguel Sanches Neto, “Leminski surgiu no território paranaense lutando contra as correntes imigratórias e restabelecendo a importância do simbolismo, momento em que a inteligência estadual era majoritariamente portuguesa”. A luta foi diretamente contra o consagrado Dalton Trevisan, que considerou, como se fosse um coveiro de reputações literárias, Emiliano Perneta ultrapassado e medíocre. Trevisan, talvez, naqueles dias estava com problemas de memória: o simbolismo, diga-se de passagem, inaugurava a água-forte do moderno brasileiro, a água tinta da vanguarda brasileira.
Leminski, por outro lado, estava dando voz à sua ascendência negra em um período de valorização do afro-brasileiro, aproximando-se dos “baianos”, principalmente de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Miguel Sanches Neto: “Assumir a negritude tinha um poder simbólico muito grande naqueles anos em que surgiu com grande força a questão negra”. Mais tarde, na década de 1980, Leminski incorporou essa procedência ao se imantar étnica e culturalmente em Cruz e Sousa, por sua musicalidade o expoente máximo do simbolismo, atualizando-o como expressão popular a partir do blues e do tropicalismo.
Antes desse Leminski provocador de discursos institucionalizados, ele estava preparando o terreno, o barro do bairro de suas invenções-contravenções, Cruz do Pilarzinho, em Curitiba, entre outras coisas dizendo: “dois loucos no bairro/ um passa os dias/ chutando postes para ver se acendem/ o outro as noites/ apagando palavras/ contra um papel branco/ todo bairro tem um louco/ que o bairro trata bem/ só falta mais um pouco/ para eu ser tratado também”.
Culto e ao mesmo tempo coloquial, o poema dá conta de toda a produção poética de Leminski. Talvez seja essa a porta que melhor se possa abrir para jogar com suas afirmações e contradições que soube cristalizar com o corpo que pensa enquanto é pensado no poema, mesmo que estivesse consciente, depois de Catatau, de que não havia “mais tempo/ para grandes e claros GESTOS INAUGURAIS”. Esses gestos nascentes, fagulhas da antropofagia, do tropicalismo, principalmente do concretismo, povoaram a palavra de Leminski com malícia, humor e transgressão, sobretudo com o rigor semiótico que colidiu com os prováveis núcleos do poema exatamente em seu aspecto formal, estrutural, visual. A relação com os concretos iniciou na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, Belo Horizonte, 1963, ocasião em que foram discutidos e sistematizados pontos programáticos para uma época à beira de crises políticas acentuadas.
Voltando à imagem do louco, que passa os dias chutando postes, eis a metáfora perfeita do poeta, enquanto Leminski, espelhado no outro que o bairro vê com simpatia, aspira o sentido de ser do poeta ao apagar palavras na página branca.
Outra imagem, agora uma foto que retrata Leminski carismático com um olho aberto e outro fechado, não diz mais sobre a metáfora, porém sobre o próprio poeta: o olhar mais para fora é o olhar mais para dentro – locução instantânea via Bashô. E como Leminski, além de outras referências, foi contagiado por matrizes ideográficas, configura-se na foto como desperto e semi-desperto de si mesmo, acrescentando a este perfil parcial – leminsquase – um toque efetivo de sua presença que lembra um de seus autores preferidos, Goethe: “Veja bem, não há nada exterior a nós que não esteja ao mesmo tempo em nós (...)”.
Leminski: “A noite/ me pinga uma estrela no olho/ e passa”.

 

Jayro Schmidt

 

Jayro Schmidt nasceu em Lages, Santa Catarina, em 1947. Reside em Florianópolis, SC. Artista plástico e gráfico, professor de pintura e história da arte nas Oficinas de Arte do Centro Integrado de Cultura, Florianópolis, SC. Publicações: 10 Xilos, gravura, Editora Noa Noa, 1978; Movimentos e Significados nas Artes Plásticas, teoria da arte, FCC Edições, 1991; Contaminatio, poesia, Letras Contemporâneas, 1996; Vincent van Gogh – Pintor das Cartas, biografia, Letras Contemporâneas1996; A Uma Sombra e outros ensaios, ensaio, Bernúncia Editora, 1998; Anotações de Leituras e Releituras – parte um, ensaio, Bernúncia Editora, 1999; Macedonio Fernández e alguns de seus papéis, ensaio, Museu/Arquivo da Poesia Manuscrita, 1999; Cruz e Sousa: poeta do abismo, ensaio, Museu/Arquivo da Poesia Manuscrita, 2000; Massala, poesia, Bernúncia Editora, 2000.

 

 

*OBS.: Publicado originalmente no suplemento cultural ANEXO, jornal A Notícia, Joinville, SC.

Copyright © by Jayro Schmidt

 

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