Notas sobre a história do haikai no Brasil
excerto
Paulo Franchetti
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A importância de Leminski é muito grande porque nele se
vai juntar a abordagem tecnicista da poesia concreta com uma espécie
de orientalismo zenista que provém de outras fontes. Com propriedade,
Caetano Veloso o definiu como "mistura de concretismo com beatnik" e nele
viu um "haikai da formação cultural brasileira".
Nos textos de Paulo Leminski encontramos, vivificadas por um apelo à prática de um modo de vida "zen", a clara presença de Allan Watts o mentor do orientalismo californiano dos anos 50 e 60, um homem realmente brilhante, que só encontra rival em D. T. Suzuki na difusão do pensamento religioso budista no Ocidente e de Reginald Blyth, que escreveu alguns dos textos fundamentais do nosso século, no que diz respeito à poesia e ao pensamento japonês.
Além de bom poeta, Leminski tinha também o dom de utilizar a media com habilidade e eficiência. Desconfiado (talvez com boa dose de razão) da formalidade acadêmica e do que chamava, na esteira do concretismo, de "lógica aristotélica" da linguagem, apelava para a experiência irracional como fonte de conhecimento para o haikai e para tudo o mais. "Quem quiser entender o zen," dizia, "matricule-se na mais próxima academia de artes marciais." Ao mesmo tempo, mantinha com o virtuosismo técnico e com a "agudeza" intelectual uma relação marcada pelo lúdico, num registro entre a inocência e o deslumbramento. Nesse sentido, representou, nesse segundo momento de que estamos falando, o coroamento da adaptação do haikai ao português, porque para ele confluíram tanto a ênfase na técnica do ideograma a que era atentíssimo , quanto o apelo vivencial, de radicar o haikai numa prática, de vê-lo como um caminho de vida, uma forma de trazer a poesia para dentro do cotidiano, identificando-a à exteriorização elegante e bem- humorada da experiência sensória mais elementar.
Muitos dos seus poemas tem, inconfundível, um claro "sabor de haikai" e, quanto à forma, uma grande liberdade, que ora permite o uso da rima e da assonância, ora utiliza o verso branco e sem medida, ora monta o poema visualmente, tirando partido do espaço e da forma física das letras e palavras. Vejamos alguns exemplos dos mais bem realizados haikais de Leminski:
hoje à noite até as estrelas cheiram a flor de laranjeira duas folhas na sandália o outono também quer andar a palmeira estremece palmas pra ela que ela merece pra que cara feia? na vida ninguém paga meia a chuva é fraca cresçam com força línguas-de-vaca.
Foi com Leminski que o haikai encontrou, fora da comunidade japonesa, a melhor realização no Brasil, e a mais conhecida. É certo que se poderá talvez dizer que seus haikais não se parecem muito com o haiku, tal como o lemos hoje em japonês. Mas não há a menor dúvida de que na sua poesia se encontram presentes em alto grau algumas das qualidades mais notáveis da poesia de haikai, tal como foi descrita e difundida por Blyth em língua inglesa. É ainda ao círculo de Leminski que devemos uma constante e importante atividade de produção, tradução, difusão e ensino do haikai-zenista, promovida por Alice Ruiz.
Com Paulo Leminski e Alice Ruiz esta exposição chega já
aos dias de hoje, tendo exposto apenas dois momentos da nossa história.
É que esses momentos não são consecutivos, mas às
vezes se sobrepõem, como dissemos no início. O último
deles é, aliás, exatamente contemporâneo da atividade
de Leminski e Alice Ruiz. Trata-se do haikai como prática coletiva,
e, muitas vezes, vinculada à presença de pessoas ou instituições
representativas da colônia japonesa. Por prática coletiva
quero designar aqui não o renga, mas o poema produzido em situações
coletivas: ou em workshops, ou em concursos ou ainda em grupos organizados
de haikai.(8) Embora não seja tão significativo, do ponto
de vista dos resultados e da presença no quadro da cultura nacional,
é bem importante enquanto testemunho da fixação desse
tipo de poesia entre nós e tem originado algumas publicações
regulares.
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OBS.: excerto do texto Notas sobre a história do haikai no Brasil publicado originalmente na Revista de Letras. São Paulo, UNESP, nº 34, 1994, pp 197-213. Veja o texto na integra em http://www.unicamp.br/~franchet/histhaik.htm
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