Os órfãos de Leminski*

Beatriz Resende


O poeta Paulo Leminski não é mais um autor polêmico. Exceto por alguns neo-conservadores, cultores do pós-parnasianismo, todos, de uma forma ou de outra, reconhecem a importância que sua poesia teve na renovação de uma dicção poética a partir dos anos 70. Se “Catatau” é uma obra à altura do “Galaxias”, de Haroldo de Campos, seu mestre por excelência, já é outra história. Como acontece com o debate retomado, volta e meia, em torno da importância ou da descendência deixada pelo Concretismo e pela Poesia Marginal. Pão e pães é questão de opiniães, como disse Guimarães Rosa.
O curioso, porém, é a legião de fãs, de órfãos, que o escritor curitibano deixou, desde aqueles que lhe foram contemporâneos à garotada nascida nos anos 80. Às vezes chega-se a pensar que a força da lenda, do mito Leminski, sua genialidade e humor junto com a figura de dentes podres e sem banho, ficou ainda maior que conhecimento do conjunto de sua obra. A verdade é que homenagens de todo tipo continuam sendo dedicadas ao “cachorrolouco”, como chamou a si mesmo.
Ainda este ano José Castello publicou o romance “Fantasma”, que tem como mote ou pretexto a figura de Paulo Leminski e as marcas que deixou na nublada Curitiba de onde poucas vezes saiu. Na cidade, dar seu nome a uma pedreira desativada, transformando-a em espaço cultural foi, certamente, uma boa idéia. Para que gosta de navegar na internet – como os leitores do no. –, Elson Fróes turbina uma das melhores páginas sobre literatura existentes na rede, a Kamiquase, que tem tudo sobre Leminski e é renovada constantemente.
Justifica-se, portanto, plenamente, que já seja lançada uma biografia do poeta, compositor, tradutor, publicitário, homem de todas mídias que foi Paulo Leminski, ainda que 1989, quando morreu aos 44 anos, não esteja tão longe assim.
Em “O bandido que sabia latim”, Toninho Vaz, jornalista antenado com as produções da contracultura (“no tempo em que a contracultura era uma postura ideológica e não um produto de consumo”), contemporâneo e amigo fraterno de Leminski, se ocupa sobretudo do “personagem”. A erudita formação cultural, forjada no tempo (breve) de seminarista beneditino, mas desenvolvida de forma autodidata e obsessiva; a vida íntima nos tempos do “amor livre” com questões familiares que mostram, por um lado, a reverência aos pais, na frente de quem não se fumava maconha, “a dor da perda do maior leminski de todos” e por outro, que vida dura mesmo era de filho de hippie. “Traziam as crianças, penicos, sacolas com fraldas, garrafas de vodca e muita disposição. Ficávamos a noite inteira compondo e tocando. O Leminski, claro, sempre com um monte de papel embaixo do braço. Eram as páginas do Catatau”.
Ao lado do “desbunde”, muita birita e razoável quantidade de drogas, as tragédias pessoais. O filho que morre aos dez anos, o irmão que se suicida, perda que parece marcar o momento em que o poeta não tira mais o pé do acelerador na corrida em direção à própria morte na autopista da cirrose hepática.
Toninho Vaz vai apresentando, junto com a vida do curitibano, um quadro da vida cultural do país, tendo como foco as casas do Cruzeirinho por onde acabavam passando, em algum momento, intelectuais de perfis os mais variados em reverência ao exótico personagem, de Luiz Costa Lima a Eduardo Portella, músicos como Caetano, Gil, Macalé, aspirantes a poetas e cineastas, compositores que logo se transformavam em parceiros, jornalistas de todo tipo.
O título da biografia: “O bandido que sabia latim” propõe o paradoxo instigante que atravessa a vida e a produção de Leminski. Se o poeta era, como disse Luiz Carlos Maciel “o espírito ambulante da contracultura”, autor do “Indicionário”, “Vocabulário do fumador de maconha”, publicado no O Pasquim, era também tradutor do grego e do latim a partir do original.
Esta parte do trabalho intelectual de Leminski merece realmente ser revista. São dele traduções preciosas, como “Folhas das Folhas da relva” de Walt Whitman, “Malone morre”, de Beckett e, sobretudo, (esquecida pelo biógrafo na listagem da bibliografia mencionada no final do livro) a de “Giacomo Joyce”, de James Joyce, onde encontra soluções felizes como “Seu brasão: capacete, escarlate, e lança sem ponta sobre um fundo preto”. Só como exemplo, para chegar a este trecho em português, Leminski passa pelo inglês medieval da linguagem heráldica e outras línguas e termina o volume com um posfácio, “Investigando a vida de um texto bastardo”, de fazer inveja aos melhores professores de Literatura Inglesa. Aí estaria outra faceta surpreendente que a biografia revela, a de professor disputado pelos cursinhos pré-vestibulares de Curitiba.
Toninho Vaz inicia o relato buscando um certo distanciamente, no tom de biografias tradicionais, situando a vida no espaço e tempo, com a história da cidade e outros esclarecimentos que, na verdade, não são tão importantes. É, porém, quando a proximidade que a amizade instaura e a comoção frente à crescente angústia autodestruidora vão tomando conta da narrativa – que não poderia jamais ser fria – que “O Bandido que sabia latim” vai arrebatando o leitor. O texto bem escrito e a pesquisa cuidadosa seguem então como que embaladas pelas músicas que Leminski compôs em parceria com Moraes Moreira ou Itamar Assumpção.
Além da figura de Leminski, outros personagens do momento são resgatados por Toninho, em especial Alice Ruiz, com que o poeta viveu 19 anos, mãe de seus filhos. Alice Ruiz é a autora do premiado “Navalhanaliga”, entre outras obras, às vezes parceira em músicas, justamente resgatada para além do papel de uma das várias mulheres do “bandido”.
No interessante quadro da vida cultural nos anos 70/80 apresentado, dois aspectos, que podem parecer periféricos, chamam a atenção. Primeiro a imensa solidariedade e generosidade dos “companheiros de viagem”, desde os sisudos professores paulistas que recebem e incentivam o poeta desde a juventude precoce, a escritores como José Louzeiro que recebe todo um bando que “invade” sua casa em Santa Teresa e se desdobra em formas múltiplas de ajudar a todos os curitibanos, dando um violão de presente ao compositor que surgia, arranjando emprego para vários deles, fornecendo comida e a inevitável bebida.
O segundo aspecto é total ausência de menção à vida política no país, nestes anos de chumbo. É Leminski quem diz que “O ideal do curitibano é ser invisível” e garante também que “A realidade objetiva é a prostituta mais barata no mercado das idéias”, ao falar de poesias que versavam sobre “bóias-frias ou metalúrgicos do ABC”. Mas é estranho que, neste panorama de nosso passado recente, a opressão sofrida por toda a produção cultural de uma geração que tentava sobreviver respirando o ar contaminado de uma ditadura só apareça mesmo no livro quando é citada uma entrevista de Nicolau Sevcenko. Nela o historiador saúda Paulo Leminski, citando “nadei, nadei, não dei em nada” e encontra na sua poesia “a síntese de uma vivência e experiência histórica muito fragmentada e concisa”.
O final da vida do múltiplo personagem já estava previsto em seus versos:

Ópios édens analgésicos
Não me toquem nesta dor
Ela é tudo que me sobre
Sofrer, vai ser minha última obra.

 

Beatriz Resende

 

*OBS.: Texto gentilmente cedido pela autora a Kamiquase. Originalmente publicado no site no. em 01 de junho de 2001.

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