Com quantos Paulos
se faz um Leminski
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Maria Esther Maciel


Paul Valéry dizia que o poeta se consagra e se consome em construir uma linguagem dentro da linguagem. Tal proposição, contudo, não seria suficiente para definir o ofício poético de Paulo Leminski, um poeta que, sem se furtar às exigências da construção, soube extrair uma linguagem também da experiência, do agora de sua própria realidade. Entre o rigor e o vigor, a exatidão da forma e a descompressão do verso, ele se deu a liberdade de não definir um caminho, mas inventar inúmeras vias para o exercício criativo da palavra.

Pode-se dizer que no presente estava a principal matéria de sua poesia. Um presente concebido não apenas como o topos privilegiado do hoje, mas também como ponto de interseções temporais. Espaço onde se inscrevem tanto a memória do mundo quanto o registro imediato das coisas cotidianas. Onde tradições e dicções distintas se encontram, se negam e se afirmam em pluralidade. Isso, porque o agora de Leminski já não é mais o dos pactos coletivos em torno de uma estética comum, programada, mas o tempo de procura de uma outra voz. Tempo também do compromisso do artista com seu próprio contexto político-social e com a necessidade de reinventá-lo. Dessa ­matéria-prima do presente Leminski soube extrair uma poesia ­múltipla, em diálogo com as várias vozes poéticas de seu tempo. E a partir dela, afirmou-se como um dos poetas brasileiros mais instigantes de sua geração, que, sem se confinar em qualquer grupo ou tendência dos anos 70 e 80, manteve uma relação dialógica com o legado modernista, com a poesia concreta, com o tropicalismo e com as várias vertentes da poesia pós-vanguarda. E mais: que soube conjugar a poesia com outras atividades de escrita, como o ensaio, a tradução e a prosa.

Fabrício Marques, em Aço em flor: a poesia de Paulo Leminski, explora exatamente essa multiplicidade do poeta, ou melhor, as “faces poliédricas” de sua poesia. Longe de tentar classificar a obra leminskiana ou esterilizá-la através de jargões academicistas, prioriza o jogo de que ela se constrói, flagrando-a em seus pontos de tensão e vitalidade. Seguindo um viés crítico sem rigidez, mas com rigor, Fabrício põe também em prática a sua própria veia de poeta, atento às exigências da própria sensibilidade no ato crítico da leitura. Nesse sentido, faz uma leitura prismática, fluida, da poesia leminskiana, sem aprisioná-la em teorias pré-estabelecidas ou domesticá-la pela lógica do isto ou aquilo. Delineia, portanto, para seus leitores, um retrato móvel e multifacetado do poeta curitibano. Aliás, um dos grandes méritos de seu trabalho é evidenciar como, não obstante as múltiplas vozes que se entrecruzam em sua poesia, Leminski soube construir uma dicção própria, que, simultaneamente, funciona como confirmação e negação dessas alteridades incorporadas.

Ao se propor a estudar cada uma das faces da poesia ­leminskiana, distribuídas no trabalho em 4 grandes linhas de força (concisão, informação, invenção e consciência semiótica), Fabrício Marques as coloca em relação dialógica, não deixando, contudo, de reconhecer que elas não explicam ou esgotam a complexidade que essa poesia apresenta. Antes, porém, de se deter de maneira mais concentrada em cada uma dessas linhas e no “a mais” que as constitui, Fabrício faz um necessário mapeamento da vida intelectual do poeta e do contexto em que ele atuou, situando a sua poesia no contexto do final do século XX e atribuindo a ela uma “função libertadora” em relação aos dogmas poéticos vigentes.

Com desenvoltura e sem se furtar ao “impulso lúdico” que a poesia leminskiana requer de seus leitores, Fabrício trata, no primeiro capítulo, das confluências do poeta com a poesia oriental (mais especificamente com os hai-kais de Bashô), com Torquato Neto, com a Tropicália e, como não podia deixar de ser, com a Poesia Concreta. No enfoque da filosofia (ou antifilosofia) Zen que atravessa a poesia leminskiana em seu diálogo com as formas breves da poesia japonesa, concentra-se precisamente na questão do “aqui-agora”, o tempo ­poético da “consagração do instante”. A isso acrescenta considerações pertinentes sobre os vários aspectos desse vínculo do poeta com o Oriente: a força do guerreiro-samurai, o exercício da síntese e do silêncio, a experiência da concentração e do desprendimento, o jogo móvel dos contrários. Já o Leminski tropicalista é tratado de forma mais pontual: Fabrício traça uma história concisa e bem articulada do movimento, mostra os vínculos do poeta curitibano com as propostas libertárias do grupo, com a irreverência antropofágica de Torquato e com as “solicitações da contracultura”. A invenção contaminada pela cor, pela força do coloquial, pela vitalidade da rebeldia. Elementos que o poeta soube conjugar ainda com os ensinamentos de rigor da poesia concreta, visto o diálogo profícuo e criativo que manteve com as propostas formais do concretismo brasileiro. Fabrício se ocupa desse ponto no final do primeiro capítulo, marcando o que de novidade o poeta extraiu dessa interlocução.

Muitas outras articulações são feitas ao longo do trabalho. A que se refere às similitudes dissonantes entre Leminski e Cabral revela, em detalhes, o jogo entre o rigor e o acaso que constitui a poesia leminskiana, através do qual lucidez poética se abre também para os improvisos da imaginação, para a surpresa. Uma lucidez contaminada pela impureza da experiência, da vida de cada dia. E, que portanto, se encontra na ordem do paradoxo. De todas essas aproximações e entrecruzamentos Fabrício extrai vários Leminski: o “samurai malandro”, o “parnasiano chic”, o “guerreiro lúdico”, o “anarquiteto de desengenharias”. Um rima, às vezes, “tanto com faz”; outro rima, quase sempre, “ando com quando”. Um luta com as palavras. Outro ri delas e de si mesmo. Há ainda o que faz do óbvio o nunca visto, o que está no meio, no dentro, no quase. O que sabe ser claro sem deixar de ser raro.

A parte intitulada “Uma vivência de despaisamento” é a meu ver um dos pontos altos do trabalho. Nele, Fabrício brinda o leitor com um interessante ensaio sobre a condição atópica do poeta no mundo das utilidades. Retomando o velho embate baudelaireano entre a poesia (entendida como um indispensável inutensílio) e a sociedade mercantilizada do mundo moderno, explora os vários aspectos desse confronto. Faz, através disso, uma urgente e necessária defesa da poesia ou do que chama de “ideologia poética” (na verdade, uma anti-ideologia), vista como uma força capaz de desafiar este tempo de uso e usura.

A Leminski é atribuída uma atitude de rebeldia com relação a essa ordem, de oposição à “ditadura da utilidade”, à medida que sua poesia se faz “de uma substância rebelde à transformação em mercadoria” e adquire, portanto, uma função política. Como explica o próprio Leminski, em citação feita por Fabrício: “uma política profunda, que é crítica da própria política, enquanto modo limitado de ver a vida”.

Se acompanhar o poeta curitibano em sua pluralidade cambiante é o grande desafio para os estudiosos de sua obra, dadas as várias entradas que oferece e as bifurcações de que é construída, Fabrício Marques, entretanto, não se intimidou: munido de lucidez crítica e sensibilidade poética, aceitou o desafio e mostrou aos seus leitores com quantos paulos se faz um Leminski.

 

Maria Esther Maciel

 

*OBS.: prefácio de Maria Esther Maciel ao livro Aço em flor de Fabrício Marques.

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