O sintoma do Caetano
MEMÓRIAs da CULTURA BRASILEIRA/2
*

Zélia Stein


Onde é que nós estamos
que já não reconhecemos
os desconhecidos?

Paulo Leminski (1944-1989)

Não pensem que é fixação, não, minha gente! Mas estava eu aqui a pensar nas formas pelas quais o inconsciente se revela e que, como sabemos (desde que o Freud abriu nossas cabeças - ocidentais e cristãs ) para o fato de que o fazemos pelos sonhos, pelos atos falhos e lapsos de linguagem (Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, 1904) e pela construção e efeito trocadilho (O Chiste e sua relação com o inconsciente, 1905).

A citação e a recordação vem à propósito do Paulo Leminski que, se vivo estivesse, cumpriria 56 anos neste 24 de agosto, e da ausência absoluta de qualquer referência a ele no livro Verdade Tropical do Caetano Veloso.

E juro que nâo é por falta de simpatia, e mais, admiração até que sinto pela produção artística (no plano musical e poético) do Caetano, a qual acompanhamos com prazer (e às vezes, com estupor) desde 1968. Lemos Verdade Tropical com interesse do princípio ao fim num meio fim de semana. Sua prosa, ainda que prolixa (incontestável marca de identidade primária baiana) e com subordinadas demais enroscadas em sempre longos parágrafos (própria da escritura "barroca"), digo que sua prosa -apesar de não compor um estilo narrativo que mais aprecio, o da concisão, prende.

O que narra também. Claro! Trata-se de um ator-observador-criador indiscutível da cultura pop brasileira; da refundação da mixtura-impregnação de formas eruditas (nacionais e internacionais) e formas populares nacionais brasileiras (em suas diversas variantes regionais) num novo dizer, integrativo de tudo mas também (e por isso mesmo) re-inventivo de tudo o que já se tinha dito. Um ator, dissemos, não o único, nem sequer o mais importante ou o mais central!

Digamos de passagem que não acreditamos em escalas de avaliação para designar e comparar-situar posições individuais mais altas ou mais baixas na produção - re-significação da cultura de qualquer época. São, na verdade, poucos, pouquíssimos (sobram dedos nas mãos) os que podem ser designados como PRIMEIROS irrefutáveis.

Pois é, mas o Caetano, que tão alto reconhecimento chegou a ter depois de um começo "marginal", nesse livro que escreve (quando já glorificado-incorporado ao canon cult brasiliense), cita a todo mundo que passou pela sua vida e que nela incidiu de uma ou outra maneira. Dos super conhecidos (de uma seleta mas importantíssima porção das) cabeças pensantes-críticas da modernidade brasileira como são os irmãos Campos, Haroldo e Augusto, que foram aliás os que primeiro reconheceram o valor do seu trabalho, a figuras absolutamente menores em qualquer cenário da cultura brasileira contemporänea que se queira montar. Ele cita e lembra de todo mundo. Aparentemente cita e lembra de todo mundo. Mas chegamos ao final do livro (depois de 400 páginas) e o Leminski não aparece nunca.

Eles conviveram no Solar da Fossa, entre 1969 e 1970, quando o Leminski deixou Curitiba para provar sorte no Rio de Janeiro, onde "ganhava a vida" como repórter de rua em jornais como Correio da Manhã, O Globo, Pasquim. Em 1963 (quando tinha apenas 19 anos), na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda realizada em Belo Horizonte, Leminski já tinha sido detectado pelos irmãos Campos como "o nosso Rimbaud curitibano" e, em tal qualidade, "com faro poundiano Noigandres o acolheu na plataforma de lançamento de Invenção, lampiro-mais-que-vampiro de Curitiba, faiscante de poesia e de vida", segundo conta o próprio Haroldo de Campos.

Sabemos que Caetano, Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, o grupo "A Cor do Som", Guilherme Arantes, todos interpretam em seu repertório, alguma coisa da poesia do Paulo Leminski.

No curta-metragem da Ana Maria Magalhäes, Assaltaram a Gramática, em meio a poemas semimalditos, Paulo Leminski defendeu sua bandeira-manifesto: sejamos pelo novo, não pelo belo!

No dizer de Leila Perrone-Moisés, Leminski valoriza "suas vivências de beatnik caboclo e sua filosofia de malandro zen depuradas no cadinho de linguagem até chegar à cifra certa" e "sem demagogia, com amor, talento e lucidez, Leminski vai abrindo caminhos na selva selvagem da linguagem, no repertório caótico de nossas cabeças cortadas. Destila tudo com sabedoria, e suas gotas de poesia são colírio para nosso olhos poluidos".

Paulo Leminski morreu no dia 12 de junho de 1989, aos 45 anos. Deixou fecunda obra poética:

• Caprichos e Relaxos, Série Cantadas Literárias, Ed. Brasiliense, 1983
• Distraídos Venceremos; Ed.. Brasiliense, 1987
• La Vie en Close, Série Espaço Brasileiro, Brasiliense, 1991

Romance:

• Agora é que são elas; Série Circo de Letras, Brasiliense, 1984
Traduções (do inglês, francês, latim, japonês ao português)
• Folhas das Folhas da Relva (1983), de What Withman.
• Supermacho (1985), de Alfred Jarry.
• Satyricon (1985) de Petrônio.
• Sol e Aço (1985) de Mishima.
• Malone Morre (1986) de Samuel Becket.

Biografías - Pesquisa Histórica, Etnográfica e Filosófica. Coleção Encanto Radical, Editora Brasiliense:

• Cruz e Souza, 1983
• Jesús a.C.; 1983
• Matusó Bashó; 1983
• León Trotski - A Paixão segundo a Revolução; 1984
Catatau, prosa experimental, 1975, e Não fosse Isso e Era Menos / Não fosse tanto e era quase e Polonaise, poemas, 1980, publicaram-se em Curitiba como edições do autor, ou seja, financiadas pelo próprio com os recursos que obtinha das aulas de Redação e História que dava nos cursinhos Vestibular da capital paranaense, além do sua condicäo de faixa preta e professor de judô.

O último artigo que dele lemos, O trono está vazio, foi publicado no Jornal do Brasil na semana seguinte à morte do Carlos Drummond de Andrade, ocorrida a 17 de agosto de 1987.

Perguntamos então: essa "ausência" nas memórias do Caetano revela ou não um ato falho, um lapsus, um sintoma?

O que revela? Esta é a pergunta que fica.

E aqui já não queremos entrar em "hipóteses" (respostas preliminares a fatos observados) pois não temos à mão material suficiente de pesquisa, nem tempo para fazê-la (nem patrocinador que a financie) e, em rigor, nem vontade. Pretendíamos apenas, num mesmo movimento-exercicio de observação do canon dominante na cultura brasileira de hoje, relatar o fato (a indiscutível ausência de Leminski na Verdade Tropical) e homenagear uma voz, a do Leminski, que está nos cernes do movimento renovador da linguagem-criação que, entre outros efeitos, também produziu o Tropicalismo.

Uma última observação. O título Verdade anteposto à Tropical, explicita ou não uma postura auto-assumida de dono da dita cuja no que se refere ao Tropicalismo?

Ora, se o nosso artista sempre preocupado com questões filosóficas maiores, como ele sempre gosta de lembrar, realmente se preocupou com a pesquisa dessas questões, certamente não desconhece que a noção de "verdade" é uma das mais problemáticas em qualquer re-construção do passado (e muito mais do presente).

Outro cantar sería se, como homem ilustrado que é, houvesse relativizado e colocado, por exemplo, Verdade Tropical (segundo minha memória, ou minha seleção ). É o que aprendemos a fazer, os cientistas sociais, nos primeiros anos de formação quando nos deparamos com as reais dificuldades para discernir (e lograr o maior grau de objetividade possível) os impactos da posição do observante no relato do observado quando o observante faz parte do observado.

Caetano está integrado ao imaginário e ao canon da cultura brasileira atual. Não está mal que assim seja. Ele, pela sua obra musical, merece.

O que não está bem é que Leminski continue sendo, entre outros motivos também pelos "esquecimentos dos já integrados" um semi-desconhecido para as amplas maiorias consumidoras "de cultura" do Brasil no Brasil, e demandadoras-consumidoras de cultura brasileira no Exterior.

Os integrados deveriam -por definição- integrar. Mas como no dito se situa também o não-dito, e o significado do que é "reprimido" sempre retorna ao próprio sujeito que diz ... Em síntese, se é verdade, como sustenta o Lacan, que a carta sempre chega ao seu destino, é legítimo também pressupor - como demonstra Slavoj Zizek- que o emissor recebe sempre do receptor sua própria mensagem invertida porque o reprimido sempre retorna e, nesse movimento, ninguém pode fugir da dívida simbólica que sempre tem que ser cancelada.

Deixemos, porém, o Caetano com seu sintoma exposto, e retornemos à fonte.

"Quando escreveu o livro Catatau, em 1975, assaltava-o a coceira das miscigenação de culturas, curtida até o fundo de suas origens. Divertiu-o a brincadeira: imaginar Descartes, de luneta, a observar, no horto florestal de Olinda, na época de Nassau, o espetáculo à volta. Um europeu diante das Américas e dos animais dos trópicos:

Ergo sum, aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aquí presente, neste labirinto de enganos deleitáveis - vejo o mar, vejo a baía e vejo as naus. Vejo mais. Já lá vão anos III me destaquei de Europa e a gente civil, lá morituro. Isso de "barbarus - non intellegor ulli" - dos exercícios de exilio de Ovidio é comigo. Do parque do príncipe, a lentes de luneta, contemplo a considerar o cais*, o mar, as nuvens, OS ENIGMAS e OS PRODÍGIOS de BRASILIA.

Nota sobre o porque do asterisco pegado no cais* - Tive que colocá-lo para que 'a máquina com teclado espanhol' não me trocasse cais* por casi.

"E por aí continua o Catatau, numa prosa dita pelos críticos experimental, na verdade a linguagem do espanto europeu misturada ao samba do crioulo doido deste Continente: um terceiro mundo incompreensível à luz da lógica européia.

"Nem todos o entenderam, acolheram. As duzentas páginas de um só parágrafo. percorrendo labirintos mentais, linguísticos, culturais não são dessas leituras amenas para embalar o sono.

"Já na poesia, Leminski chega direto e simples, "claro e raro".

tenho andado fraco
levanto a mão
é uma mão de macaco

tenho andado só
lembrando que sou pó
tenho andado tanto
diabo querendo ser santo
tenho andado cheio
o copo pelo meio
tenho andado sem pai
yo no creo en caminos
pero que los hay
hay**

** En espanhol no original portuguës.


29 agosto 2000

Zélia Stein

 

*OBS.: matéria originalmente publicada no site r e v y s t a .com.

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