Satyricon
Viagem ao "baixo"-Roma*

Ariovaldo Augusto Peterlini


Paulo Leminski está entre os tradutores que amam o perigo. Depois de Joyce, Petrônio. O Satyricon (texto latino escrito provavelmente sob Nero, por um suposto Petrônio), é um desafio que impõe audácias. E como é audacioso o artista que há em Paulo Leminski. "Entre trair Petrônio a trair os vivos", escreve ele no posfácio, "escolhi trair os dois, único modo de não trair ninguém". Leminski sabe que as traduções das obras clássicas greco-romanas ao nosso dispor trazem, de comum, ao leitor atual, de língua para língua, o escritor há centenas de anos, com sacrifício quase sempre da estrutura da língua receptora, em benefício da língua a do estilo de origem. Leitura restrita a minorias interessadas, já que supõe adaptação cultural. Mas Leminski, atendendo talvez a Henri Meschonnic (Propostas para uma Poética da Tradução), pretendeu "produzir um texto original em língua de chegada, homólogo ao texto da língua de partida".

No Satyricon, a variedade dos registros de língua corre desde a prosa culta até o vulgar do calão, sem falar nos trocadilhos a no raro de certo vocabulário só ali deparável. Apostando em mergulhar o leitor moderno na obra antiga, Leminski não hesita em "transcriar", em preencher e, mesmo, em reduzir, se disso necessita para trazer a seu leitor um Petrônio tão acessível a agradável quanto deve ter sido aos de sua época. "Esta não é uma tradução para especialistas. É um compromisso entre uma fidelidade essencial (o grifo é meu) ao texto latino do Satyricon às vezes até literal, e o não menos legítimo compromisso de envolver diretamente o leitor de hoje na vida de um texto dois mil anos vivo". "No caso dos poemas, mantive o sentido geral, aliviando-os, porém, do pesado lastro de alusões mitológicas que, evidentemente, só faziam sentido para um leitor da Antigüidade. Ou, hoje, para um especialista, versado em cultura greco-latina". Coerente com sua afirmação, não vacila em reduzir os 295 pesados versos originais do poema sobre a Guerra Civil a apenas sete. Mas, ao transformar os textos poéticos, visando à melhor sintenia com o leitor atual, aí então avulta sobremaneira a experiência e a arte de Leminski. Melhor, ler a sentir. Petrônio compõe uma paisagem ideal para o encontro de Encolpo a Circe: "Ondulante o plátano estendera as sombras estivais a assim também fizeram Dafne, coroada de bagas, a os trêmulos ciprestes a os pinheiros de contorno recortado na copa buliçosa. Por entre eles brincava, com águas errantes, um riacho espumoso, rolando os seixos na múrmura linfe." Leminski o "transcria", aligeirando-lhe os versos: "Lá onde o pinho e o plátano/ Entrelaçam suas ramagens,/ Lá onde o perfume das flores/ E o frescor das águas/ São os principais personagens/ Onde o cipreste ondula na brisa/ Que leva embora o canto dos pássaros..." (capítulo 126). Vezes há, porém, em que o aspecto paródico do original fica prejudicado, como, por exemplo, na passagem em que Encolpo, revoltado, interpela teatralmente o próprio membro, que se dobra teimoso na flacidez da impotência. Petrônio, valendo-se da técnica do centão, insere, aí, faceto, três versos de Vergílio, visando à paródia. Isso escapará ao leitor comum.

No trabalho de reviver o texto milenar, Leminski sabe escolher a primor a expressão moderna exata a agradável, quer, na tradução, quer nos comentários: "E um bofe, não uma mulher. Mas, enfim, quem nasce na senzala, nunca sonha com a casa-grande". (74). "A cultura 'nouveau riche' de Trimalcião é um verdadeiro 'samba do crioulo doido'." (52) Tão identificado com Petrônio me parece Leminski, que a tradução, a meu ver, só perde impulso em umas dez páginas do capítulo 11, exatamente um texto que deve ser apócrifo, pois não consta de excelentes edições modernas como, por exemplo, a da Las Belles Lettres.

Prós a contras pesados, o saldo é em extremo positivo. Tradução planejada à luz de objetivo específico e... com dedo de artista. Liberado de compromissos ferozes com os originais latinos, o tradutor ousa a "transcriação", preenchendo as lacunas do original a religando as malhas rotas do entrecho; facilita, enfim, os poemas a reduz ao mínimo a mitologia. Algumas falhas, como a ausência do capítulo 110 do original e a distração da passagem, só numérica, do capítulo 129 para o 135, poderão ser retificadas em próxima edição.

A bem da verdade, Leminski manteve todos os aspectos do Satyricon: está ali a novela erótica, a sátira menipéia, o mimo, a fábula milésia. Saem machucados, mas de leve, a crítica literária e a paródia, muito ligados que estão ao conhecimento especializado da cultura clássica antiga. Com polêmica ou sem ela, obra imprescindível a quem traduz do latim a do grego. Difícil dizer até que ponto o Satyricon de Leminski é o Satyricon de Petrônio, mas certo estou de que, se Petrônio fosse contemporâneo nosso a escrevesse, hoje, o Satyricon, escreveria provavelmente como Leminski.

 

Ariovaldo Augusto Peterlini

 

 

*OBS.: Publicado originalmente com o título "Viagem ao "baixo"-Roma", Folha de S. Paulo, 1985.

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