Obra de Leminski tem
primeira edição comercial
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Romulo Valle Salvino


A Iluminuras põe a circular uma obra preciosa para todos os interessados em conhecer melhor o poeta Paulo Leminski, antes disponível apenas numa edição de 1994 da Fundação Cultural de Curitiba, hoje quase uma raridade. Trata-se de Winterverno, livro em co-autoria com João Suplicy e que se define como um álbum de haiga – versos e desenhos em diálogo.

No Brasil, já há uma quase tradição de poemas visuais, que passa pelo construtivismo do grupo Noigandres, pelo funcionalismo de Wlademir Dias Pino, pelos poemas sem palavras da década de 1960 e chega até a infopoesia, a chamada poética do pixel. De modo geral, esses experimentos buscam uma aproximação maior ou menor com linguagens mais modernas, como a da propaganda, ou tecnologias mais recentes. Winterverno se coloca na contramão desse movimento, resgatando os traços de uma escrita autógrafa que se confunde com os desenhos de João Suplicy, sem vergonha de apresentar rasura e inacabamento – e que, por isso mesmo, acaba mais contemporânea que muitos hologramas e poemas visuais que continuam a repetir modelos estabelecidos há décadas.

É a poetisa Josely Vianna Baptista quem conta como foi o processo de composição do livro: norteado pelo acaso, reunindo anotações fragmentárias, em que às vezes os poemas antecederam as figuras e vice-versa, quando não nasceram juntos, num raro conluio entre rigor e improviso. Vários dos poemas foram reaproveitados em La Vie en Close, uma das mais conhecidas obras leminskianas, que acabou sendo publicada antes de Winterverno. O álbum tem uma posição única no legado do poeta. Não que a importância dada à visualidade seja exclusiva dele: há poemas concretistas reunidos em Caprichos e Relaxos, Agora É Que São Elas explorou com inteligência um certo tipo de letras explodidas e o projeto do álbum Quarenta Clics em Curitiba, com seu diálogo entre fotografia e poesia, tem muito em comum com o resultado final de Winterverno. Mas é esse livro que talvez traga de modo mais evidente certas intuições de Leminski e esboce um caminho alternativo para uma poética visual diferente daquela do primeiro concretismo, a quem tanto deveu o poeta quando jovem. Nele aparece também o parceiro certo para esse tipo de trabalho, João Suplicy, com seu traço precário e esvoaçante, ao mesmo tempo cheio de simplicidade e precisão.

Plasticidade – O Leminski mais óbvio e inconseqüente está ali, em trocadilhos e paronomásias fáceis como “vin te ver”, “invento”, “nervo”, “terno”, que se desdobram de “winterverno” no primeiro poema do livro. Mas nada é simples em Leminski, justamente porque tudo é simples nele. A partir desse início, os poemas vão-se sucedendo em composições cheias de plasticidade. Muitos deles talvez não se sustentassem apenas naquilo que têm de simbólico, mas ganham uma força rara enquanto ícones. Às vezes, as palavras sozinhas aparecem como visões em que o próprio traçado manuscrito se enche de possíveis sentidos; às vezes, em concordância ou discordância com os desenhos quase minimalistas, de sabor oriental, compõem autênticos ideogramas. Leminski por certo conhecia os experimentos quirográficos do filósofo norte-americano Charles Peirce, que reuniam a metalinguagem com a busca do caráter icônico das palavras. Mas os seus poemas autógrafos, na sua valorização do instantâneo, do fragmentário, do material, da imediaticidade da experiência, daquilo que é aparentemente insignificante, têm mais a ver com a sua paixão pelos hai-kais e pela filosofia zen, que o intrigavam desde meados dos anos 60. É o próprio Leminski que certa vez observou: “O hai-kai tem uma característica em comum com a técnica caligráfica japonesa: a irrepetibilidade. Um ideograma é traçado de um só gesto, único, irremediável, absoluto: não pode ser corrigido.” Assim como os poemas que, em Winterverno, incorporam as próprias rasuras, como signos de incompletude e de fragilidade, ou que, depois de reproduzidos em La Vie en Close, em fontes impressas, tornam-se outros poemas, outras coisas.

Quase todas as imagens do livro tratam do precário, do passageiro, e também do fugaz que se torna eterno. Um dos poucos poemas que falam mais diretamente da permanência, daquilo que é resistente, é o único que não é manuscrito, mas datilografado: “Dura o diamante/ dentro da pedra pura./ de agora em diante,/ só o durante dura.” Assim, a própria transição entre as tecnologias de escrita se faz matéria de poesia.

As edições tradicionais de hai-kais sempre os organizaram sazonalmente: poemas de primavera, verão, outono e inverno... É ainda Leminski quem disse, em sua biografia de Bashô, o príncipe dos poetas japoneses, que é “fria a estação da reflexão. Do recolhimento. Da teoria. Da metalinguagem. Do pensar e do falar sobre”. Winterverno, duplamente invernal, palavra que traz a própria inversão inscrita em suas dobras, procura superar a dicotomia entre pensamento e ação, entre dizer e mostrar. Um caligrama e um desenho como esses que se interpenetram no livro sempre trazem inscrito o gesto que os criou. E o cruzamento entre poesia e gesto é fundamental para Leminski, que traçou a sua própria vida de acordo com uma certa estética comportamental, uma beauté du geste, que reflete e é refletida em sua escritura, num constante jogo de consonância/dissonância. O álbum que agora ressurge em nosso mercado editorial, desta vez para um público mais amplo, é uma boa amostra disso tudo.





Romulo Valle Salvino

 

*OBS.: Publicado originalmente no caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo, em 21 de Outubro de 2001.

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