Vida e obra de um poeta-ícone
Biografia e ensaios de Paulo Leminski revelam facetas
pouco conhecidas de um transgressor lírico *
Geraldo Carneiro
PAULO LEMINSKI, O BANDIDO QUE SABIA LATIM
Toninho Vaz
Record, 364 páginas
R$ 35
ANSEIOS CRÍPTICOS 2
Paulo Leminski
Criar Edições, 118 páginas
R$ 20
O poeta Paulo Leminski continua fomentando folias póstumas. Primeiro, a Criar Edições acaba de publicar seus Anseios Crípticos2, segunda coletânea de ensaios, reflexões críticas e textos diversos sobre autores variados como Petrônio, Mishima, Euclides da Cunha e James Joyce.
Graças a esses Anseios Crípticos (cujo título, se você reparar, já inclui dois trocadilhos), nós, desocupados leitores, passamos a conhecer mais alguns detalhes da engenharia poética do Leminski.
As reflexões sobre os contos de John Lennon e as narrativas de Lewis Carrol, por exemplo, mostram o fascínio do poeta pelos jogos verbais, especialmente a paronomásia, que é mais ou menos o nome técnico do trocadilho, recurso levado ao grau mais extremado pelo escritor irlandês James Joyce, em seu livro Finnegans Wake. Não por acaso, foi o próprio Leminski quem se lançou à mais radical aventura pós-joyceana em língua portuguesa, o romance (?) Catatau, publicado em meados dos anos 70. Para quem não leu, esclareço que o protagonista de Catatau é o filósofo René Descartes (o inventor do ''penso, logo existo''), contrabandeado imaginariamente pelo príncipe Maurício de Nassau para o Brasil. Cá nestes tristes trópicos, Descartes conhece criaturas extravagantes como o tamanduá e, depois de fumar diversos baseadões com os nativos, sente-se obrigado a descartar o seu sistema conceitual e a redefinir suas premissas filosóficas, como se decretasse: eu dispenso, logo não existo.
Mas a grande estrela de Catatau, assim como da melhor parte dos poemas de Leminski, é a linguagem. Através da linguagem, Leminski desmonta iconicamente (ou icomicamente, se me permitem criar um neologismo à maneira dele) alguns mitos da cultura brasileira. Por exemplo, a ilusão de que, se o Brasil fosse holandês, seríamos uma Grande Amsterdã, e não uma nova colônia estilo Guiana Holandesa. Lá pelo meio do Catatau, Leminski, como bom vate, vaticina o futuro do pretérito: ''Se o Brasil fosse holandês, ninguém mais entendia batavina (trocadilho com batavo, isto é, holandês, em lugar de patavina, que significa nada, xongas, neres de pitibiribas).
Como se não bastasse o prazer do reencontro desses Anseios Crípticos, ainda nos deparamos com a publicação da primeira biografia do poeta: Paulo Leminski, O bandido que sabia latim.
De maneira geral, as biografias brasileiras são encomiásticas (isto é, meramente laudatórias) e pundonorosas. Na Inglaterra, ao contrário, o sujeito já começa contando que sua mãe (dele, caro leitor) praticava o felatio com o jardineiro Mellors, enquanto o pai era sodomizado pelo mordomo Ratcliff e a avó permanecia em seus aposentos, imersa em pensamentos abomináveis. Já nas biografias made in Brazil, o único vilão assumido é o Assis Chateaubriand, do Fernando Moraes. Quase todos os nossos biografados são castos como Madre Teresa de Calcutá e honrados como os senadores da república.
Não é o caso da biografia escrita por Toninho Vaz. Embora o biógrafo confesse admiração quase idolátrica pelo biografado, emerge da biografia de Leminski uma figura frágil, humana, crivada de contradições. E emerge sobretudo uma figura emblemática dos anos 70, com seu lastro de sonhos e quimeras. Em miúdos, Leminski é uma das mais perfeitas encarnações do herói cultural dos 70, para quem a realidade não passa de uma alucinação provocada pela falta de utopia, essa mesma realidade cuja presença opressiva pode suscitar o humor, o terror ou a ironia: podem ficar com a realidade esse baixo astral em que tudo entra pelo cano eu quero viver de verdade fico com o cinema americano Leminski também encarnou com incomparável perfeição o confronto entre a erudição e a eros-dicção. Era, por um lado, capaz de escrever magníficos ensaios biográficos sobre o poeta Cruz e Souza, Bashô ou Jesus Cristo, e, por outro lado, de permitir-se a eterna disponibilidade para o rocknroll, o amor sem convenções e os prazeres da existência. Quanto à estabilidade e à sobrevivência no mundo regido pelos demônios da caretice e do vil metal, isso ficou para o dia de são nunca: quando eu tiver setenta anos então vai acabar essa adolescência vou largar da vida louca e terminar minha livre docência vou fazer o que meu pai quer começar a vida com passo perfeito vou fazer o que minha mãe deseja aproveitar as oportunidades de virar um pilar da sociedade e terminar meu curso de direito então ver tudo em sã consciência quando acabar essa adolescência
Pois é, Leminski. Você partiu para os jardins suspensos do Copacabana Palace da Eternidade, enquanto nós continuamos aqui, neste país careta e corrupto dos primeiros anos do novo milênio, com a vaga impressão de que o princípio de realidade prevaleceu sobre a utopia. Resta o consolo da poesia. Como diria (mas não disse) o nosso amigo Joyce, a sting of beauty is rejoyce forever. Já é alguma coisa. Mas qualquer dia desses seremos jovens e felizes outra vez.
Geraldo Carneiro
Geraldo Carneiro é poeta.
*OBS.: Resenha publicada no J.B. de 20 de maio de 2001.
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