Leminski
e as vanguardas *

Antonio Risério



Me mantendo na área do tema proposto, Leminski e as Vanguardas, vou fazer um deslocamento de leitura. Um pequeno giro noutra conversa. Afinal, quando a gente fala em Leminski e as vanguardas, tende a restringir o horizonte, limitando-o à relação de Leminski com as vanguardas estéticas e, em especial, com a poesia concreta. Mas eu quero incorporar a esta nova "conviceversa" ,como diria o próprio Leminski, a questão de sua relação com as vanguardas extra-estéticas. Mais precisamente, seu engajamento na contracultura e seu ingresso na esfera da movimentação dos negromestiços brasileiros. E aí nós poderemos ver a imbricação das duas espécies de vanguarda na figura de Paulo Leminski.
Vamos reter aqui aquela noção de vanguarda como "desvio da norma" para lembrar a expressão de Viktor Chklósvski. Esta definição é válida tanto para vanguardas estéticas quanto para vanguardas extra-estéticas. Ambas podem ser encaradas em termos de comportamento desviante. Aliás, o antropólogo Gilberto Velho tratou a vanguarda estética neste sentido. Mas há, ao menos em termos esquemáticos, uma diferença fundamental. A vanguarda estética é desvio em relação a um determinado mundo, o "mundo artístico-intelectual", tal como o definiu Howard S. Becker. Já no caso de uma vanguarda extra-estética como a contracultural, o desvio sai da pista da obra, do pensamento, e vai se inscrever na vida e no corpo do indivíduo. O comportamento desviante assume, aqui, dimensão existencial. É o desvio do sujeito não em relação ao cânone estético, mas à norma social. Esta é a diferença, digamos, entre o desvio de James Joyce e o desvio de Timothy Leary.
No caso de Leminski, entretanto, estes desvios se justapõem e mesmo se mesclam, alimentando-se mutuamente. Não se trata de retornar aqui o velho clichê, repetido ad nausean pelos literatti, do que nele vida e obra são inseparáveis. Vida e obra são - e serão sempre -inseparáveis, qualquer que seja o caso. O que quero sublinhar é a constatação objetiva, sociológica, de que a trajetória leminiskiana se deixa flagrar na encruzilhada deste duplo desvio.
Podemos ver alguns lances desse jogo em campo contracultural. A contracultura pode ser definida como uma movimentação esteticopsicossocial. Uma espécie de preamar neo-romântica, trazendo à crista das ondas coisas como as drogas alucinógenas, o pacifismo, a ecologia, o orientalismo, o movimento feminista, o pansexualismo, etc. Leminski surfou nessa maré. Mas antes que falar aqui do seu gosto pela maconha, de suas viagens de ácido, vou destacar dois temas: o orientalismo e a ecologia.
Não sei como Leminski chegou ao Oriente. Sei que o Oriente é fundamental em sua vida e em sua obra. Do mesmo modo, não estou interessado no papo do ovo e da galinha. Se o que veio primeiro foi Huxley, Alan Watts ou Ernest Francisco Fenollosa. Não me interessa a precedência, mas a configuração. Leminski sentiu a influência de Donald Keene e Haroldo de Campos, mas também a de Daisetz Teitaro Suzuki. E evidente que há, em seu orientalismo, a marca esprit de geometric do concretismo, rebrilhando com nitidez no plano-piloto para poesia concreta. E é evidente que há também o influxo contracultural, mistura de satori e LSD, rock e zen, Eros e koan. Mas há ainda, a interseção, fragmentos que brilham nos interstícios. E possível viajar, neste aspecto, a partir do ideograma. Do enigmático ideograma de que nos fala Norman O. Brown, um dos deuses da contracultura, no seu Closing Time.
O método ideogrâmico é peça-chave da estética concretista. E verdade que a ideografia chinesa chamou a atenção das vanguardas literárias européias do início do século, especialmente depois que Apollinaire definiu o calligramme como poema ideográfico. Mas o lance concretista é outro. Um procedimento composicional radicalmente novo, fundado em Fenollosa/Pound. E já no ensaio de Fenollosa, The chinese Written character as a Medium for Poetry, encontramos observações interessantíssimas para o jogo de vanguardas que estamos apreciando. Ezra Pound escreveu que o trabalho de Fenollosa não se resumia a uma simples discussão filológica, sendo antes um estudo sobre os fundamentais da Estética. Está certo. Mas a verdade é que os primeiros parágrafos do texto fenollosiano vão além disso. Abrem uma perspectiva transcultural. Invadem o território da antropologia.
Aliás, Fenollosa é contemporâneo do nascimento da antropologia. Ele fazia suas reflexões asiáticas mais ou menos na mesma época em que Bachofen publicava Das Mutterrecht e Frazer iniciava a edição do Golden Bough. E Fenollosa achava que, à entrada do século XX, surgiriam, aos olhos do Ocidente, outras culturas universais. Ele se concentra, como todos sabem, no que chamava o problema chinês. Faz umas observações algo esquisitas, dizendo que os norte-americanos deveriam enfrentar e dominar esse problema chinês, o que me faz recordar a velha visão da antropologia como suporte auxiliar ou justificativa teórica do colonialismo. Mas o desenvolvimento do seu raciocínio é praticamente irretocável do ponto de vista contracultural. Fenollosa lembra que, durante muito tempo, o mundo anglo-saxão tenha ignorado - ou "interpretando errôneamente" - as questões mais profundas da cultura oriental. Aponta a estupidez do Ocidente em relação às histórias da China e do Japão. Constata que os ocidentais brancos negaram a humanidade essencial daqueles povos. E mais: diz que o Ocidente necessita dos ideais orientais - para completar os seus.
Ora, o escrito de Fenollosa é sobre linguagem e poesia. Mas aí já se coloca, de modo sintético, uma abertura extra-ocidental. Talvez possamos falar até mesmo, para além da repercussão do texto no plano específico da discussão dos fundamentos da Estética, que o que vemos aí é um contraculturalismo avant la lettre. A contracultura nada diz de diferente em seu orientalismo. A diferença é que, enquanto Fenollosa diz que o Ocidente precisa incorporar ideais orientais, a contracultura pretende incorporar de fato, na prática da vida, elementos e formas culturais nascidos no Oriente, das túnicas à ioga, passando pela adoção do "zazen" e da macrobiótica. Este é um aspecto básico, por mais ingênua que possa ter sido a nossa revivescência de condutas e posturas, ou de ritos e mitos, não-ocidentais. Luiz Carlos Maciel viveu em comunidade, Rogério Duarte foi monge e assim por diante. Tentava-se encarnar no cotidiano o que se pensava das coisas e do mundo.
Podemos fazer abordagens semelhante no que diz respeito à ecologia, à relação homem/natureza, outro dos temas fundamentais da vanguarda contracultural. Havia, naquela época, uma exaltação antitecnológica. O flower power contra o complexo industrial-militar, para usar termos então em voga. Celebravam-se ali, em contraste com o racionalismo tecnicista e a guerra do Vietnã, os valores da harmonia e da contemplação. E uma espécie retorno a natureza, refazendo viagens de Rousseau e Wordsworth. E óbvio que aquele ecologismo não é o ecologismo de hoje, mas ali se propunha, ainda que muito utopicamente, o rompimento com um modelo de sociedade. E foi assim que a contracultura abrigou e alimentou o embrião da ecopolítica, embora, naquele momento, nosso ecologismo tenha sido mais uma atitude filosófica do que qualquer outra coisa. Um ambientalismo místico, que às vezes me faz lembrar a história de Smohalla, o profeta sioux que se recusava a lavrar a terra porque não queria ferir o corpo de nossa mãe comum.
Quero ler neste contexto a paixão de Leminski pela cultura japonesa. O culto da natureza é tão enraizado no Japão que nos acostumamos a dizer que nenhum outro povo mantém relacionamento tão íntimo com as estações do ano. As estações ditam as cores do quimono, o haicai é sazonal (como a lírica occitânica) e mesmo nomes próprios remetem a circunstâncias climáticas, a exemplo de Natsuko, garota do verão. Podemos talvez dizer que as estações são categorias do pensamento japonês tradicional, embora tenhamos dificuldades em entender os princípios desta taxionomia. Para dar um só exemplo, parece que insetos, estrelas e cogumelos pertencem, nesta classificação centenária, ao outono, assim como ao verão pertencem a nuvem e a chuva. Segundo os japoneses, esta classificação, que vem sendo mantida desde os inícios do período Heian, no século IX, torna a vida melhor e previne contra o tédio.
Mas voltemos a Leminski. Todos sabem do seu amor pela cultura japonesa, pelo budismo zen, pela poesia de Bashô. Mas o que quero ressaltar é que não se trata simplesmente de mapear o influxo do texto criativo japonês do século XVII no texto criativo brasileiro do século XX. Leminski via o haicai com olhos experimentalistas: sintaxe de montagem, visualidade da escrita, harmonias fônicas, jogos de imagem, signos que se espelham e se espalham. Mas via também com olhos de andarilho contracultural. Shunkichi Akimoto diz que duas fontes concorreram para o desenvolvimento de uma cultura própria no Japão: o amor pela natureza e a escassez de recursos materiais. Acrescente-se uma outra: o isolamento. Embora tenha conhecido migrações e invasões, a singularidade japonesa no conjunto dos povos asiáticos, foi favorecida pela circunstãncia geográfica de um arquipélago que o mar se encarregou de isolar e proteger. E o haicai, assim como os arranjos florais e a cerimônia do chá, foi um dos frutos desta cultura que se metamorfoseou durante a reclusão do arquipélago sob o regime ditatorial da dinastia Tokugawa. Leminski colheu a lágrima no olho do peixe. E não foi apenas por acaso que, diante de um texto nipônico, traduziu tabi (viagem) por tripi, expressão que empregávamos para nossas decolagens lisérgicas. Tabi/trip - transavam aí o concretismo, com sua tese da tradução criativa, e a contracultura, com suas drogas para a expansão da consciência.
Mas deixemos agora o Oriente de lado. Vamos tocar em outro ponto que mobilizou a energia criativa de Paulo Leminski, relativo desta vez ao Atlântico Sul. Ao Brasil e à África. Leminski nunca havia falado de sua ascendência negroafricana antes da década de 80.0 caso me faz lembrar o caso de Gilberto Gil. Ainda no começo da década de 70, Gil afirmava que nunca fora vítima de preconceito social. Só mais tarde, num processo de superação da couraça greco-latina, reconheceu o fato de que já tinha sido discriminado racialmente. Do mesmo modo, Leminski costumava se apresentar a todos nós, que fomos e somos seus amigos, como descendente de poloneses. Mas de repente o poeta mestiço negropolaco resolveu assumir todos os seus antepassados. Este fato é da maior relevância. Será muito bom para o Brasil que cada um de nós se decida a assumir todos os seus ancestrais.
Esta atitude de Leminski não aconteceu a vácuo. Não foi sem mais nem menos que ele começou a falar, tanto em seus caprichos quanto em seus relaxos, de coisas como Oxalá, Ogum, e mesmo de girafas africanas como seus avós. Os orixás iorubanos passaram a condividir seu espaço memorial lado a lado com recordações polonesas. Este fato deve ser visto no contexto da recente projeção sociopolítica do negromestiço na cena brasileira. E aqui temos que falar de uma conjunção para usar a palavra que é tão cara a Octavio Paz.
É claro que esta virada negromestiça foi produto, em última análise, do chamado milagre brasileiro. Mas temos que falar aqui do influxo do movimento negro norte-americano, do black power à soul music. Do surgimento de novas nações negras de língua portuguesa no continente africano na reta final da luta contra o colonialismo. E temos ainda o fato, assinalado já por Frantz Fanon, de que cada comunidade segrega a sua própria luz. No Brasil dos anos 70, tivemos a projeção dos terreiros de candomblé, o renascimento das entidades afrocarnavalescas, a militância de uma música popular negromestiça, a formação do Movimento Negro Unificado, etc. Foi um momento importantíssimo na história das relações sociorraciais em nosso país. E Leminski não ficou fora da jogada. Deixou-se imantar por ela, de modo que não podemos separá-lo deste processo. Foi por essas trilhas que ele acabou botando os pés no Axé do Opó Afonjá, onde foi recebido por Stella de Oxóssi.
Em resumo, era o que eu queria falar. Apenas repito agora o que disse de início. Existiu um espaço para o entrecruzamento de códigos vanguardeiros. Uma encruzilhada para o ir e vir desses repertórios, nos sinais e nas estrelas. E não tenham a menor dúvida de que Paulo Leminski sonhou por aqui.

 

OBS.: texto publicado originalmente na revista Bric a Brac. Brasília, nº IV, 1990, pp 11-3.

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