Elogio da Hipérbole *

Frederico Barbosa


"Existe um paradoxo nos produtos culturais, superiores frutos do trabalho humano: eles sobre-vivem ao autor, são uma vingança da vida contra a morte. Por outro lado, só podem fazer isso porque são morte: suspensão do fluxo do tempo, pompas fúnebres, pirâmide do Egito." Essas palavras do poeta Paulo Leminski, morto há pouco mais de um ano*, ecoam fortemente na edição póstuma de Vida, reunião organizada pela Editora Sulina, de Porto Alegre, dos ensaios aparentemente biográficos escritos pelo poeta durante a década passada e publicados originalmente, em separado, entre 1983 e 1986, pela editora Brasiliense.
Quando Leminski morreu,aos 44 anos, sua intensa produção cultural, composta por 13 livros (poesia, romances, ensaios, traduções) passou a se revestir desse paradoxo. O poeta provocador, o agitador de mil baratos, o "samurai futurista" que de "incerta feita" assim se definiu: "o pauloleminski / é um cachorro louco / que deve ser morto / a pau e a pedra / a fogo e a pique / senão é bem capaz / o filhadaputa / de fazer chover / em nosso piquenique" e cuja poesia, assimilando as conquistas da poesia concreta e articulando-as ao coloquialismo e ao humor do nosso primeiro modernismo, assim como à densidade fulminante do haikai, apesar do grande sucesso comercial, ainda está por ser devidamente analisada e/ou digerida,  esse mesmo iconoclasta idólatra, é homenageado com "pompas fúnebres" pelos meios de comunicação e chegam a montar uma exposição dos seus livros, anotações e objetos pessoais em pleno MASP transformado em "pirâmide do Egito".
A trajetória poética de Leminski é, no mínimo, curiosa. Curitibano nascido em 1944, faixa-preta e professor de judô, publicitário, poliglota, publicou seus primeiros poemas aos 20 anos na revista "Invenção", iniciando, assim, um diálogo bastante fértil, e nem sempre tranqüilo, com a vanguarda concreta paulistana. Durante a década de 70 publicou poemas sempre em revistas alternativas como a "Qorpo Estranho" ( depois "Corpo Extranho" ), a "Muda"  ou a "Código", e lançou, em edição particular, a sua "prosa experimental" Catatau, romance pós joyceano que pode ser considerada a peça de prosa mais ousada escrita no Brasil depois (cronologicamente) de Guimarães Rosa e das Galáxias de Haroldo de Campos. A última década da vida de Leminski se inicia com a publicação, ainda particular, de duas coletâneas de seus poemas, Não Fosse Isso e Era Menos / Não fosse tanto e Era Quase e Polonaise, em 1980. Com isso, encerra-se a fase do Leminski "marginal", conhecido apenas pela "vanguarda" e inicia-se a popularização do poeta. Em 1981, Caetano Veloso grava "Verdura", de Leminski, no LP Outras Palavras. Em 1983 tem início a associação do poeta com a editora Brasiliense, com a literatura comercial e com o sucesso. O "poeta marginal" torna-se, então, o escritor profissional, produzindo uma obra bem mais "digerí-vel" do que a anterior, escrevendo para a revista "Veja" e participando do "Jornal de Vanguarda" da  TV Bandeirantes. Mas não deixava de surpreender. "Some Say a Man Ain't Happy Unless a Man Truly Dies", já disse o poeta Prince. A surpresa final de Leminski: a 7 de junho de 1989, no auge do sucesso, jovem, como Marylin Monroe, Camus ou James Dean, Paulo Leminski nos deixa a sós com seu "produto cultural", a sua poesia e seus paradoxos.
Traduzindo John Lennon, Beckett, Jarry e outros, tornando a poesia, com seu Caprichos e Relaxos, um produto comercial rentável, Leminski realizou um feito extraordinário nesse mundo tão prosaico. Embora, cabe frisar, por vezes abrindo mão de um maior rigor poético que sua obra "marginal" apresentava, o poeta, durante os anos em que esteve associado à editora Brasiliense, introduziu no "main-stream" da vida cultural brasileira temas e preocupações politico-poéticas antes relegados à marginalidade. Suas "biografias" de Cruz e Sousa (1983), Bashô (1983), Jesus a.C. (1984), todas integrantes da Coleção Encanto Radical, e de Leon Trótski (1986), inserida da série "Antologias & Biografias", também da Brasiliense, refletem claramente a preocupação do poeta em desestruturar o "museu do pardo indiferente" através do resgate destes quatro "exagerados"  cavaleiros da paixão e da poesia.
Vida era um projeto já revelado pelo poeta em depoimento datado de 1985 e estampado na abertura do livro: "Com os três livros que publiquei, o Cruz e Sousa, o Bashô, o Jesus e o que agora estou escrevendo sobre Trótski, quero fazer um ciclo de biografias que, um dia, pretendo publicar num só volume, chamado Vida. São quatro modos de como a vida pode se manifestar: a vida de um grande poeta negro de Santa Catarina, simbolista, que se chamou Cruz e Sousa; Bashô, um japonês que era  samurai, abandonou a classe samurai para se dedicar apenas à poesia e é considerado o pai do haikai; Jesus, profeta judeu que propôs uma mensagem que está viva 2.000 anos depois; Trótski, o político, o militar, o ideólogo, que ao lado de Lênin realizou a gran-de revolução russa, a maior de todas as revoluções, porque revolucio-nou profundamente a sociedade dos homens. (...) Quero homenagear a grandeza da vida em todos esses momentos."
A leitura de Vida, mesmo por quem já tenha lido as biografias separadamente, nos revela outras homenagens. Cada uma das quatro nos mostra claramente um faceta da quinta: a de Paulo Leminski. Não são propriamente biografias "stricto sensu". Mais do que o trabalho de pesquisa, de reunião de fatos, chamam a atenção os comentários, as escolhas dos momentos mais significativos, a homenagem à radicalidade, ao exagero e, até, às incoerências idiossincráticas pescadas por Leminski nas vidas alheias. Escreveu o poeta: "a vida varia /o que valia menos /passa a valer mais /quando desvaria"  ou ainda: "a vida é as vacas /que você põe no rio /para atrair as piranhas /enquanto a boiada passa". O biógrafo confirma  e ilustra o poeta. As"vidas"se comunicam: cada uma das biografias dialoga com as outras três de maneira por vezes explícita ou ainda com outras de forma implícita. As analogias dominam Vida. Em "Cruz e Sousa - O Negro Branco" , vidas são comparadas a figuras de linguagem: "Certas vidas são hiper-bólicas." Vida, assim como Leminski, é um grande elogio da hipérbole. "Cruz e Sousa's Blues" desaguam em Mallarmé, passando por Stevie Wonder e Gilberto Gil, levando a Bashô: "Todos os rios de signos do Oriente correm e concorrem para fazer das parcas sílabas do haikai de Bashô, sempre, uma obra-prima de humor, poesia, vida e significado." E "todos os rios de signos do Oriente" e do Ocidente se encontram em Jesus, na sua arte de falar por parábolas, de revelar e esconder. Por fim, os irmãos Karamázov desembocam na revolução, no parricídio do czar. Em Aliocha, Ivan, Dimitri e Smerdiakov, Leminski encontra a revolução de 1917. Em tudo encontra poesia. E nós, em tudo isso, encontramos muito Leminski."it's only life/but i like it /let's go /baby /let's go /this is life /it is not /only rock and roll".

 

Frederico Barbosa é autor de Rarefato (Iluminuras, 1990) e Nada Feito Nada (Perspectiva, 1993). Site do autor: http://sites.uol.com.br/fredbar

 

OBS.: Resenha publicada no jornal Folha de S. Paulo, caderno "Letras", 24/11/90.

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