Catatau:
um gabinete de raridades*

Maurício Arruda Mendonça


Acredito que Leminski tinha uma certa urgência de que o projeto Catatau (Curitiba, Ed. Do Autor, 1975) ganhasse os leitores. Para quem levara de 66 a 74 redigindo uma obra ambiciosa, havia o imperativo natural de comunicar e difundir imediatamente seu trabalho. Em decorrência disso, o poeta forneceu algumas informações que "pegaram" e ainda hoje permanecem como as únicas pistas de leitura e interpretação do romance-idéia Catatau.
De fato há pouca coisa sendo dita ou pensada a respeito do Catatau, apesar do romance ser considerado uma das mais ousadas experimentações narrativas das últimas duas décadas. Porém, após a publicação das cartas de Leminski a Régis Bonvicino, tornou-se possível arriscar uma leitura diferente do romance. Principalmente porque Leminski diz numa das cartas não crer "que o Catatau possa ser entendido ou explicado à luz do planopiloto", referindo-se ao paradigma teórico do Plano Piloto da Poesia Concreta - movimento ao qual a obra é costumeiramente associada.
Uma proposta diferente de leitura do Catatau deve levar em consideração não só os aspectos formais da obra - sua ligação com as contribuições da Semiótica, do Estruturalismo, ou mesmo da linguagem radical de James Joyce e Haroldo de Campos -, mas, também, levar em conta o Catatau "obradobra": uma intrincada tessitura de sentidos que entrelaça História, Filosofia, Ciência e Literatura, discutindo as imagens do pensamento dos séculos XIV, XV, e XVII de modo elegante e sofisticado.

Romance-idéia


A idéia de René Descartes (1596-1650) visitando o Brasil como integrante da comitiva de sábios e artistas do Conde Maurício de Nassau é a hipótese apresentada por Leminski. Sentado debaixo de uma árvore do jardim botânico do palácio de Nassau em Recife, o filósofo tenta aplicar seu "Penso, logo existo" ao Brasil, tendo nas mãos uma luneta e um cachimbo com erva narcótica. Descartes vai se embriagando com a fauna e a flora brasilis. Tudo é ex-oticum: vem de fora, estranho, estrangeiro. Ele espera, impaciente, o estrategista do exército da Companhia das Índias Ocidentais, o polonês Artyczewski, a fim de que lhe explique aquele Brasil. O livro é esta longa espera, que se revelará frustrante para o filósofo: Artyczewski chega à última linha do romance totalmente bêbado e incapaz de explicar qualquer coisa logicamente.
A interpretação mais imediata do livro é que Leminski procura demonstrar como a "lógica" cartesiana falha ao tentar ser transplantado para os trópicos. Mas, pergunta-se, como se exterioriza esta lógica falhando? À primeira vista, pela desordem da linguagem, mas não é o bastante. Isto embasa apenas o virtuosismo semântico e sintático da obra, não a sua proposta epistemológica", digamos.
Melhor seria pensar que a linguagem de Descartes está gaguejando, tendendo ao absurdo pela incapacidade de conceituar uma nova realidade que o provoca. Não é Brasil versus Lógica, mas Percepção versus Conceito. Se Descartes enlouquece com a erva é porque ele se submete a um plano de imanência extremamente vasto e fluido, como a imensa terra de um Mundus Novus. A droga - entendida como uma inserção ritual e dionisíaca na realidade - faz com que se torne impossível a unificação de um "Eu", uma concórdia facultatum, conveniente à observação científica: "...arranjem um outro eu mesmo que eu não dou mais para ser o próprio."

A razão do imaginário


Num nível mais profundo, percebe-se que Leminski está ilustrando o processo de desrazão que atinge Descartes. Isto é, o seu personagem conceitual Renatus Cartesius, pai da Razão, do Bom Senso e das oposições entre Pensamento e Sentidos. Em decorrência disso, o poeta curitibano articula uma traiçoeira subversão do cogito: "Duvido se existo, quem sou eu se este tamanduá existe?"
Ora, Leminski sabe que o cogito é essencialmente um dubito. Pensar é a condição de existir. Não podemos duvidar que pensamos, pois duvidamos por que pensamos. Não existir é estar impossibilitado de pensar. Portanto, o personagem não existe perante a evidência de um animal incatalogável, já que, para René Descartes, pensar é desconfiar dos sentidos, é dividir, excluir, ordenar, selecionar. Enfim, espancar ceticamente com a Dúvida Metódica todo o emaranhado de semelhanças, de similitudes que embasavam o pensamento contemplativo de origem tomista, que ainda nutria - via Escolástica - as mentalidades do século XVI.
Não é por mero acaso que, especificamente no bestiário do romance (da página 1 à 23), aparece o imaginário do viajante francês André Thévet. O uso das figuras e descrições do tucano e do bicho preguiça, por exemplo, demonstram a falência do olhar contemplativo. Thévet não questiona as causas e a razão das diferenças dos seres exóticos do Brasil, ele crê que isso seja matéria da Divina Providência. A natureza então se manifesta na forma de seres e monstros fantásticos. O preguiça teria cara de criança e choraria como tal. Como vive muito tempo nas árvores, Thévet acredita que ele "vive de vento". Estas imagens declaram a impossibilidade de abarcar um animal desconhecido por um plano de referências e de tábuas ordenadoras de semelhanças. O viajante cria "analogias parciais que suprimem a integridade da coisa observada", como diz Ana Maria de Moraes Beluzzo.
Ora, ao fazer uso do imaginário dos viajantes anteriores à invasão holandesa para sondar a natureza brasileira, Cartesius parece delirar e vacilar como um louco, negando as realidades corpóreas experimentadas por seus sentidos. Mas a aparente contradição - um Descartes anacrônico que se vale das idéias do século XVI em pleno século XVII - possui uma explicação: é que o Catatau se dobra e desdobra temporalmente. Movimento que é radicalizado quando do irrompimento de um monstro escolástico do século XVI: William of Ockham ou Occam.

A vingança de Occam


Mais do que monstro semiótico, ele é um personagem que não existe, uma entidade que se manifesta como desarranjador do texto. Neste aspecto, muitos têm apontado os surgimentos de Occam como instantes privilegiados da obra, nos quais Leminski cria trocadilhos joyceanos ou "palavras-valise" à Lewis Carroll. Insistimos novamente em que as implicações são um pouco mais profundas do que os efeitos de superfície da "cilada" Catatau.
O que Occam faz é questionar e cobrar essa contradição de Descartes, tanto no livro como na História da Filosofia. As navalhas de Occam são seus conceitos, seus "heréticos e pestilentos comentários" que foram detonados pela Inquisição. Um desses conceitos - que aparece clara e coerentemente no Catatau - é haecceitas ou Estidade (de "isto" ou "isso"), que ajudou Occam a declarar que os Universais de Tomás de Aquino são destituídos de realidade ontológica e que nada mais são do que nomes ou palavras. Assim Occam pôde separar os domínios da Filosofia e do empirismo nascente dos domínios da Teologia - justamente o contrário do que fez Descartes ao guindar o pensamento e a razão novamente a Deus, retornando a certas concepções metafísicas de Aquino.
Por mais complexo que possa parecer, tudo isso repercute no pensamento e nos humores de Descartes. De uma forma simples, nós vemos o conceito de Estidade operando já na página 6, numa série de "issos": "Nunca viu isso aí e pensou que não era nada". Pois bem, "aí" é o nome indígena do bicho preguiça e também é advérbio que comunica a idéia de lugar, de espaço geométrico. "Isso" remete ao hace de Occam, a todos os seres individuais e particulares que existem na natureza e que podem ser manipulados pela experiência livre do homem, através dos sentidos. Aqui Occam se choca com Descartes, porque para o francês o pensamento é autônomo e não depende dos sentidos.
Portanto, Leminski instaura uma perturbadora locução histórico-filosófica, porque, em última análise, Cartesius afirma que este aí que se oferece à experiência dos sentidos seja nada. Assim, o fato de Occam contradizer e enlouquecer o texto e a fala de Descartes, é resultado de seu projeto estratégico de minar conceitualmente as regiões do Catatau. Já que o monstro Occam se manterá escondido entre a "Sala da Realidade" (p. 47) e o "Gabinete de Evidenciação" (p. 125), de onde sairá para que seus homens tomem posição definitivamente contra Cartesius na página 194.


Maurício Arruda Mendonça - OccaM, maio de 1996, p. 3

 

Maurício Arruda Mendonça, poeta, tradutor e ensaísta, é autor do livro de poemas Eu caminhava assim tão distraído (Sette Letras, 1997) e traduziu com Rodrigo Garcia Lopes Sylvia Plath - poemas (Iluminuras, 1991) e Iluminuras (gravuras coloridas) de Arthur Rimbaud (Iluminuras, 1994).

 

*OBS.: Publicado no jornal OccaM, maio de 1996, p. 3.

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