sertões anti-euclidianos
Paulo Leminski
nenhum livro teve sobre a cultura brasileira letrada o impacto de "os sertões" com ele euclides da cunha militar engenheiro positivista como toda a oficialidade republicana traumatizou uma literatura feita por bacharéis ornamental "sorriso da sociedade" brilho dos salões do segundo império a leitura para ioiôs e iaiás surto de espinhas no rosto imberbe dos acadêmicos de direito ócio de aposentados prenda doméstica da elite de um país de analfabetos com ele um brasil outro um brasil novo o brasil verdadeiro do interior saltava na cara das nossas elites letradas concentradas nas cidades noeixo rio-são paulo centrífugas europocêntricas produzindo uma literatura francesa no trópico para branco ver canudos foi uma revelação o despertar da consciência brasileira o satori nacional um acontecimento histórico de muitas conseqüências das quais a mais importante um livro chamado "os sertões" dele descendem "macunaíma" "vidas secas" "o tempo e o vento" toda nossa prosa regionalista até o sertão máximo "grande sertão: veredas" onde o gênio de guimarães rosa dá ao sertão uma dimensão cósmica num texto rico como os de joyce encerrando com chave de ouro o ciclo mais fecundo da literatura brasileira o texto de "os sertões" tem uma história uma biografia essencial para a compreensão do livro nasceu das anotações do engenheiro militar euclides da cunha jornalista correspondente de "o estado de são paulo" no próprio local das operações da guerra jagunços e fanáticos de antônio conselheiro contra as tropas da república das anotações às reportagens e destas ao texto final de "os sertões" um longo percurso textual onde euclides apostou tudo que tinha preparo científico perícia de linguagem e maestria dos recursos estilísticos da língua o retorcido o tortuoso o barroco positivista de euclides "estilo de cipó" é prosa em drama isomórfica com o drama que presentifica discurso deformado e informado pelo assunto o impacto que canudos provocou em euclides não foi apenas histórico geográfico sociológico foi também semiótico/poético de linguagem em canudos euclides descobriu a fala natural do sertão a linguagem popular "errada" antinormativa uma linguagem cheia de giros próprios dizeres e falares jagunços muito distantes do"sermio nobilis" da capital este impacto escapou aos exegetas de euclides a revelação da linguagem dos sertões está documentada na "caderneta de campo" de Euclides caderno de bolso editado recentemente pela cultrix nascedouro de "os sertões" onde euclides fazia anotações de geografia geologia operações militares episódios e incidentres de guerra muitas folhas do "caderno" estão juncadas de listas de palavras e expressões que Euclides ouvia na boca da jagunça do povo linguagem/poesia viva explodindo em seus tímpanos civilizados algumas dessas expressões verdadeiros fósseis palavras e giros arcaicos mantidos no isolamentodo sertão uma volta ao passado da língua euclides recolheu no "caderno" poemas populares como o "abc da incredulidade" cordel de guerra de um homero anônimo onde a crueza das idéias e expressões se expressa em bárbara ortografia o código ortográfico constitui a primeira camada protetora da lígua dominante sua primeira linha de defesas muralha da china contra a invasão do popular do poético do novo euclides perante a tortografia social psicológica lingüística faz uma viagem psicanaítica ao passado do Brasil e dá nome ao nosso mal ele se chama alienação nenhuma paideuma brasileira (escolha de um elenco de autores vitais) que deixe fora "os sertões" pode se pretender completa com ele o euclidiano (matematicamente falando) euclides descobre o avesso antieuclidianamente e nos descobre.
(originalmente no blog: PENEIRA DO RATO )
Û | Ý | pop box |
´ | ¥ | Ü | * e-mail: Elson Fróes |