SOBRE POESIA E CONTO
- um depoimento -
Paulo Leminski
SOBRE POESIAUm avô poeta como exemplo, faço poesia, sem interrupção, desde que me conheço por gente. Nunca quis ser outra coisa. Aos 34, acho que tenho direito a algumas opiniões. Minha poesia aventureira tem um passado de freira e de puta. No ponto de origem, a empolgação pelo legado heleno-latino: Horácio, Ovídio, Catulo. Clareza e saúde mediterrânea. A descoberta do haiku. Síntese e vazio zen. O encontro com a poesia concreta, a vanguarda, o espaço, o ideograma, as linguagens industriais. O impacto de Maiakovski. Caetano, Gil, tropicália. A mutação para letra de música popular. O coloquial. O cantabile. Humor/cartum. Da poesia brasileira, menos. Drummond, só uma dose simples para saber que barato que dá. Cabral, por dever de ofício. Oswald, já muito tarde para alterar rumos. Com os demais, só contactos didáticos. Nunca fui muito fanático por Fernando Pessoa, de quem gosto mais do processo do que do produto que, às vezes, me dá a impressão de mero ardil, saltos ornamentais numa piscina vazia. Houve tempo em que fiz uma poesia rica. Mas era um Brasil de tão endividada. Hoje, é mais pobre. Mas com menos dívida externa. Evito a literatura. É mitologia, ideologia, religião. Procuro enxergar o texto à luz dos signos, da linguagem, da semiótica. Poetas me interessam na medida da sua originalidade e coerência estrutural. Faço questão de não me repetir, nem em saques nem em soluções E sempre tive aversão natural pelo surrealismo, pelo metafórico, pelo arbitrário, pelo "profundo", pelo psicológico, pelo típico. Me deixo enganar às vezes pelo bem feito e pelo bem acabado. Mas estou alerta a que as coisas novas costumam pintar em estado inacabado, irregular, "errado", discutível, problemático, perigoso, "experimental". Não é minha intenção fazer poesia voltada radicalmente para a construção, a produção de matrizes novas para uma sensibilidade nova. No que faço, subsiste um componente acentuado de expressão, de comunicação, portanto. Isso só é possível com certo teor de redundâncias, de "facilidades", cuja dosagem controlo e regulo. Mas não tenho obsessões. Não sou poeta de temas. Tenho um horror pop a qualquer palavra que obrigue o leitor normal a ir ao dicionário. O resultado deve ser raro, os ingredientes têm que ser simples. Tem um difícil que é fácil. E um fácil que é muito difícil. Prefiro este. Contra os aparatos persas, diria Horácio. João Gilberto é um dos nomes tutelares da minha poesia. Uma poesia básica. Elementar como um abc ou uma tabuada. Tamanho não é documento. No meu modo de ver, a brevidade pertente à essência mesma da poesia. Detesto poesia dita profunda. Estou cagando e andando para a psicologia. Não tenho psique. Sou apenas uma besta dos pinheirais. Na mesa da poesia, prefiro a carne sem gordura, os ovos crus, a água na temperatura ambiente, a voz natural. Poesia tem que me surpreender. Poesia envolvente e insinuante me cheira a vigarice. Eu vejo logo o truque. Eu quero o susto e o eco do susto. Criativamente, prefiro a companhia de programadores visuais e de músicos. Não consigo aprender nada com escritores. Poesia, aliás, é território limítrofe entre o verbo e outras artes. Ficção é literatura. Poesia, não. Um poeta, embora use palavras, está mais próximo de músicos e plásticos do que ficcionistas que usam, aparentemente, as mesmas palavras que ele. E mais próximo da fonte da fala. Os signos com que falamos pertencem a uma família de signos completamente distinta da família dos signos com que escrevemos. Falamos com ícones. Escrevemos símbolos. A fala tem valores de entonação, cadência, melodia: é icônica, como o desenho, a foto, o cartum, a dança, o judô. A escrita é simbólica, arbitrária, esquizofrênica, repressiva. O negócio da poesia é ficar brincando nas fronteiras. 95% da poesia que se faz e se publica por aí não tem nem 5% de poesia. Começo a gostar da poesia de 70% para cima. Fazem prosa empilhada em linhas. Se pelo menos fosse boa prosa! O baixo teor de informação (estética) do texto brasileiro é relativo à nossa condição de nação periférica, obscurantista, colonial, lusa, patriarcal, católica, mais de imitar que de pensar e criar? De qualquer forma, não acho que compactuar com o subdesenvolvimento e a redundância seja solução. E voto no l4bis de Dumont para totem da tribo. Poesia da música popular pode ser inculta (até é bom que seja). Poesia no papel tem que ser informada. Os que defendem uma poesia desprevenida esquecem que os grandes poetas do Brasil têm sido intelectuais de amplo saber e múltiplos interesses (Bandeira, Drummond, Cabral, Murilo, sem falar em Mário). A única exceção aparente é Oswald. Oswald é outro papo. Mas penso que excessivo amor aos símbolos é amor à morte. Prefiro a vida, esse signo sempre incompleto. Poesia, para mim, tem que ser alegria e esperança. O puro júbilo do objeto, esplendor do aqui e do agora. Ou a canção assobiada que ajuda a caminhar nas estradas, na viagem rumo à Utopia. Cedo me dei conta que poesia não altera porra nenhuma do real histórico. Quem quer fazer da poesia bandeira de guerra ou tribuna, errou de profissão e escolheu o instrumento inadequado. Não que a poesia não nossa brotar do político ou do social, mais explícitos. Pode. E até acho que deve, num país como este. Mas que pinte no modo específico da poesia, no ser da linguagem. Querem transportar a gravidade dos temas que abordam (o operário, a miséria, a fome, a desgraça) para sua poesia. Mas um poema convencional continua medíocre mesmo que invista contra toda a opressão do mundo. Fenômeno mais de sociologia da literatura que de poesia, a imensa maioria dos poemas sociais que se vê por aí serão um dia apenas índices do estado de espírito de nossas elites escrevedoras nesta Quadra feia e triste de nossa história. Que ficou da imensa literatura e poesia abolicionista e republicana que tomou conta do Brasil no final do Império? A poesia fala uma língua. A História, outra. Traduções são possíveis mas sujeitas ao estatuto de todas as traduções: infidelidades, erros, equívocos, más interpretações. A poesia redundante, banal, presa a veículos convencionais, é mais provável. E vai prevalecer quantitativamente, sempre. Mas é totalitarismo querer que todos façam a mesma coisa. Ótimo que alguns façam coisas extremas, estranhas, difíceis. Maravilha que o pessoal todo admitisse que algumas pessoas façam coisas diferentes, especiais, fora do igual. O que a gente vê é uma intolerância monolítica dos setores mais politizados e progressistas (pelo menos, da boca para fora) em relação aos criadores mais independentes e dissonantes, como Caetano e Gil. Não tem um jeito só de ser radical. Quem não teme, não oprime. Nem reprime. Aqueles que vivem legislando "o poeta deve", "o poeta não pode", "isso não é poesia", "poesia tem que ser assim ou assado", nada entendem de poesia e querem apanhar o vento com rede de caçar borboletas. A poesia, vida, linguagem viva, vaza por todas as frestas. E disso que o povo gosta. SOBRE CONTOO conto democratizou a literatura no Brasil. É o volkswagen dos gêneros, aquele que pôs a classe média sobre quatro rodas. Com o triunfo do conto, todos podem pensar em ser escritores, entrar na literatura, ingressar nessa carreira com mais passado que futuro. A poesia é muito rara, muito difícil, muito sacrificada. O romance é muito longo, exige capacidade de orquestração, domínio do todo e das partes, fôlego de mergulhador, paciência de beneditino, coisas difíceis de encontrar por aí. O conto é a solução. Contar uma história é a maneira mais óbvia de estruturar um texto. Mas há um infinito de maneiras. Por que preferir o óbvio ao infinito? O nascente e crescente público consumidor de textos não-práticos assim o quer. O tempo anda tão caro e tão escasso, para que complicar a vida das pessoas? Entendo que muitas coisas estejam se passando sob as espécies de conto: política, conquistas de linguagem, ampliação de mercado. Mas acredito, com Décio Pignatari, que, no conto, interessa o que não é conto. Interessa o que é outra coisa: signo, violação, flagrante delito. A fordiana produção em série de contos obedecendo a uma mesma programação (com variantes insignificantes) que vemos hoje deverá crescer até o processo produzir, por extrema redundância, contradição interna e arrebentar em nova síntese, imediatamente canonizada como a nova ordem. Fundamental o papel que o conto está desempenhando no sentido de firmar o nome de escritores brasileiros, movimentar o mercado editorial e livreiro. Nesse sentido, o conto merece o que está acontecendo com ele: está em vias de se transformar em sinônimo de literatura, no Brasil. Calculo que, para cada vinte novos contistas que surgem, surge um poeta. Vocações para romancista também são mais raras. Mas essa nossa emergente prosa de ficção apresenta nível de redundância e banalidade estrutural só comparável ao do soneto no passado. O conto é o soneto de hoje. O soneto também foi veículo cômodo e portátil para divulgar e generalizar a prática e o consumo da poesia. Afora isso, está sendo muito pequeno o contributo do conto para o progresso do texto de imaginação entre nós. Nossa prosa não aguenta confronto com os latino-americanos, mais atrevidos na concepção e na realização, mais surpreendentes, mais corajosos na inovação. E a vida, que vocês tanto falam? Quem escreve como se escrevia há vinte anos, sai de livros de literatura, não da vida. Inovar! Aprendam com a vida, que é a mãe inesgotável de processos, formas e estruturas. Parte da resistência da inteligência letrada ao nosso estado de coisas está se fazendo sob a pele do conto. Pena que essa resistência se dê, na maior parte, através de conteúdos muito previsíveis, por intermédio de recursos, soluções e efeitos herdados passivamente e não questionados. Quase não se vê ninguém nas trincheiras da linguagem. E a cerração da redundância torna mais escura esta noite que sabe Deus quanto tempo ainda temos que sofrer.
p. leminski
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