Entre outras singularidades, a literatura japonesa tem sobretudo esta: é a única literatura do mundo que foi fundada por mulheres.
O fato espanta, quando temos da mulher japonesa aquela imagem estereotipada da gueixa submissa, repouso do guerreiro, aos pés do seu amo e senhor, pedindo permissão até para respirar ou implorando humildes desculpas pelo fato de existir.
Mas nem sempre foi assim.
Há traços esparsos de um certo matriarcado na sociedade japonesa mais primitiva, histórias de princesas combatentes e de rainhas guerreiras. A mulher japonesa padrão que conhecemos é o resultado de séculos de militarização da sociedade japonesa.
Como entre os peles vermelha, não há lugar ao sol para mulheres numa sociedade de guerreiros. Apenas a sombra e a penumbra.
A menos que você tenha a sorte de nascer nas rodas mais altas.
Foi o que aconteceu com essas ilustres matriarcas que se chamaram Hieda-no Are, Sei Shonagon e - sobretudo - a grande Murassaki Shikibu, a autora do "Guenji Monogatari", um dos mais extraordinários romances da literatura universal (editores brasileiros a postos: existe uma tradução para o inglês feita por Arthur Walley. Alguém se habilita?).
Essas damas da corte viveram numa época em que a alta aristocracia japonesa masculina usava o chinês como idioma literário (como os letrados da idade média se expressavam em latim).
O japonês, a língua nacional, era território específico das mulheres, e era como um certo desprezo que os homens viam essa literatura escrita na sua língua natal e popular.
Essa curiosa circunstância sóciolinguística deixou o terreno livre para as mulheres fundarem uma literatura em japonês.
Significativamente, consta que o "Kojiki", o "Registro das Coisas Antigas", o primeiro livro da literatura japonesa, foi editado por uma mulher, Hieda-no Are e registrado por um homem, Ono Yassumaro.
Isso por volta de 712 da nossa era.
Mas, o verdadeiro começo viria em torno do ano 1000, durante a era Heian.
Nesses tempos primordiais, fora da corte, em nível mais popular, parece ter existido uma classe especial de narradoras orais, as katari-mê, herdeiras de histórias imemoriais, que vagavam pelo país contando as coisas do tempo antigo em troca de comida e hospedagem.
Algumas katari-mês eram cegas. No Japão, Homero era mulher... A palavra katari-mê (de kataru, narrar) teve uma curiosa evolução posterior e com o passar do tempo passou a designar tanto poetisa como prostituta.
Mas foi nas cortes de Nara e Kyoto que a literatura japonesa feminina produziu seus frutos mais esplêndidos.
Os cincoenta e quatro volumes da história de "Guenji" projetaram a autora, Murassaki Shikibu, na constelação dos maiores ficcionistas de todos os tempos.
Um príncipe como personagem central, o Guenji Monogatari é um romance de espantosa finura de registro psicológico cujo único paralelo ocidental seria o "A la Recheche du Temps Perdu" de Proust. Como "A la Recherche", o Guenji é todo banhado numa luz crepuscular, levemente decadente, retratando o ambiente das mais altas rodas aristocráticas.
A senhora Murassaki é ela mesma uma figura muito complexa e até "moderna", a julgar por certas confissões autobiográficas que deixou. Sua sobrinha, Sei Shonagon, deixou o "Makura No Soshi", os apontamentos do travesseiro, curiosa miscelânea de confissões e reflexões meio filosóficas, que fazem dela a precursora do gênero "ensaio". O "Makura" é considerado pelos japoneses um clássico da mais alta qualidade artística.
Em finais do século XII, o Japão mergulha em séculos de conflitos entre os senhores feudais. Estrutura-se a classe samurai. A capital é incendiada. E todo o maravilhoso mundo da era Heian desaparece na ferocidade e nas guerras internas (o mundo que Kurosawa retratou em "Ran").
A idade de ouro Heian desaparece e, com ela, proeminência das grandes damas que escrevem em elegante japonês.
Nunca mais as mulheres readquiririam seu "status" de escritoras por excelência.
Só muitos séculos depois, já no século XVIII, se ouviria falar em mulheres escritoras: são as "hai-jin", as haikaisistas da escola de Bashô, entre eles, a extraordinária Chiyo-Ni, com outras traduzida recentemente para o português por Alice Ruiz, no volume "Céu de Outro Lugar", Ed. Expressão.
É dela aquele haiku, tão mulher:
Tudo que colho
na maré baixa
vem vivo.
E a vida foi o que as mulheres deram na extraordinária literatura japonesa, essa literatura que começa com mães, não com pais.
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