Ascese e escassez

Paulo Leminski




"O pouco, por uso e tempo, faz-se muito".
(provérbio português do século XV).


Ascese é o Estilo de Vida do Monge: viver com o mínimo indispensável. A palavra é grega e aplicava-se, originalmente, à disciplina do atleta que se prepara para os Jogos, em concentração.
Parece que foi São Paulo o primeiro a empregá-la em relação à vida do espírito. Em meio cristão, ascese passou a denotar e conotar coisas como "jejum", "abstinência", "castidade", "penitência", "vigília", "silêncio", "contenção", "mortificação", "sacrifício".
Está sendo proposto que a ASCESE, em uma novíssima acepção, é a solução para a aspérrima conjuntura que a espécie vai atravessar.

Uma anedota edificante e altamente esclarecedora

Um eremita das vastidões da Tebaida, um dos chamados Padres do Deserto, era alimentado miraculosamente por um corvo, que lhe trazia, todo dia, uma maçã no bico. Perto da gruta do monge, corria um riacho onde ele jogava a casca da maçã trazida pelo corvo. Assim foi por muitos anos. Um belo dia, o monge achou que tinha atingido o cúmulo da santidade e partiu do lugar. Descendo ao longo do riacho, encontrou outra gruta, habitada por um monge da sua idade.
Na conversação sobre as coisas do céu, o primeiro monge mencionou, com uma ponta de orgulho, a graça singular com que o Senhor reconhecera sua perfeição: durante 70 anos, um corvo lhe trouxera, todo dia, uma maçã.
O outro monge disse que, em matéria de favores divinos, não ficava atrás: ele se alimentara, por 70 anos, de uma casca de maçã que, miraculosamente, vinha boiando no riacho, todos os dias.
Temos sido o primeiro monge. Vamos, logo, ter que ser o segundo.

Pessimismo ou realismo?

Na febre programada de possuir cada vez mais (bens, objetos, propriedade), a espécie humana esqueceu, numa amnésia conveniente, que os recursos naturais do planeta são finitos. O ferro está com os dias contados. O petróleo - nem se fala. O níquel vai faltar logo. O papel acaba com a natureza. O que é verdadeiro em cima, é verdadeiro em baixo, diz a Cabala, diz a Alquimia. O que é verdadeiro fora, é verdadeiro dentro, em verdade vos digo. O que já está faltando de ânimo, vontade, de disposição, é de apavorar.
Exaustos os recursos, irremediavelmente abalado o equilíbrio do meio ambiente, vamos todos ter que nos contentar com menos. Menos coisas. Menos títulos. Menos.
O pessoal vai ter que ser mais sóbrio. Mais poupado. Mais rigoroso, numa palavra.
"Economia", na boca dos doutores, quer dizer "eficaz gestão de bens". Na boca do povo, quer dizer "poupança". Perceberam?
Quando o Grande Abalo Sísmico vier, os primeiros a sentí-la serão exatamente aqueles cuja desmesurada ambição de fartura excessiva provocaram o Grande Abalo. Não é a indústria automobilística o principal responsável pelo emporcalhamento das águas e ares deste planeta?
Os que sempre se contentaram com menos, com pouco ou até com nada (em termos de possuir coisas), sofrerão menos. Nessa hora, quanto menos você possuir, mais você estará imune ao Abalo.
Nunca que o desenvolvimento tecnológico (quantitativo, progressivo, inexorável, tomado como um Absoluto Onipotente) vai poder estender a todos os homens de todas as raças aquele nível de vida hollywoodiana (carros na garagem, um aposento para cada filho, a geladeira cheia): os recursos naturais vão acabar bem antes.
O hippie de estrada. O monge. Esses passarão incólumes pelo indescritível desespero que tomará conta.
Concomitantemente, está ocorrendo uma mutação na espécie, a olhos vistos, invisível apenas aos menos avisados. Uma nova geração (pelo menos, suas camadas mais inventivas e atuantes) desistiu de possuir, preparando a espécie para o impacto que o Abalo e o Colapso acarretarão. Eles estão prepa-rando o equipamento psíquico-existencial, sócio-pedagógico e econômico-mitológico para o Grande Transe. Essa gente será o amortecedor entre os tempos passados da Pluto-Utopia e a Nova Era da Ascese. A Era de Aquário, meu camarada, não, vai ser festival, não.
Será por acaso que todo um tipo de gente está se chamando de "magrinho"? Vamos deixar de luxo: não podemos mais nos dar ao luxo. Morreu o luxo, viva o lixo.

 

Originalmente no caderno Anexo do Diário do Paraná em 30 de junho de 1977. Reproduzido em Revista Species nº 1, nov. 2015, Curitiba, PR, pag. 83.
colaboração enviada por Caio Ricardo Bona Moreira

 

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