Pajé

Paulo Leminski




Os feiticeiros das tribos primitivas (pajés entre os tupis, xamãs entre os tártaros siberianos) eram pessoas excepcionais, que viviam ao contrário.
Retirados e eremitas, fazendo do silêncio seu mistério, da noite - sua hora mais propícia, sem mulher (a ejaculação é tida pelos primitivos como uma perda de força vital), ao pajé convém o título de Senhor de Si, O Intransitivo. A natureza ajudava: observam os antropólogos que os pajés são frequentemente homossexuais, transformando uma maldição em superação da condição natural macho-fêmea. O sacro é sempre esquisito.
Não custa concluir que alguns, portadores de doenças mentais, tenham também aproveitado essa circunstância para exercer as prestigiosas artes da pajelança.
Per-versos, violando a Ordem Suprema das Coisas, os pajés viveram sem "trabalhar", sustentados por doações dos caçadores interessados em seus filtros e encantamentos. Não produziam bens, mas um Bem Maior que todos os bens, o Espírito.
Suas imensas noites meditando, seus delírios produzidos por ervas, seus saltos paradigmáticos por cima do sintagma cotidiano dos outros - ele era o Outro, o Anti-Ser, num universo só de matéria, ele já era antimatéria, o Des-Outro, Trans-Pessoa.
O xamã não só sabia, mas mais importante talvez ainda: simulava saber.
Um jogo: será que o xamã pode fazer tudo que diz poder fazer? Espantar a caça à distância? Frustrar gravidez? Tirar a dor (a parte que me cabe da Dor Universal) com rezas, falas, enfim?
O xamã foi o primeiro eremita, o primeiro herege, o Proto-Outro.
O primeiro "designer" de linguagens e comportamentos. Ele deixou de ser bicho primeiro.
Erro pensar que gozava de unânime prestígio social de um padre católico em sua paróquia ou pastor protestante tendo como certa a reverência de todos: era temido, procurado às esquivas, consultado a contra-gosto.
Sua alta consciência dos códigos o obrigava a inventar grafias, amuletos, talismãs, tábuas imprecatórias, runas, "winter-acounts": depois deles, só Guttenberg.
É à toa que os 1ºs textos foram escritos em terra, tabuinhas babilônicas de barro mais forte que o ferro hitita?
Contra a proximidade, propunham a similaridade. A vigília para todos, para ele - o sonho.
Sabe-se que um dos hábitos que davam mais prestígio aos xamãs era dormir de dia - enquanto todos trabalhavam, - e ficar acordado de noite, quando os guerreiros e caçadores, tomados pelos terrores da noite natural, viam luzir (bruxulear, em português, donde "bruxa") o fogo de sua cabana periférica, na fronteira entre o mundo humano da aldeia e o caos das trevas exteriores, infestadas de feras, demônios e outras entidades menos definidas.
O primeiro especialista: o Senhor dos Ambientes Fechados, o Velho, Saturno (gerontocracia).
Jovens são tagarelas: não sabem e/ou não podem deixar de falar. O velho sabe calar, porque sabe que as coisas fundamentais devem ser descobertas por cada um sozinho. O primeiro linguista, o xamã, olhando o código, viu o código: o truque.
Daí, a voz empostada ou deformada por algum recurso de nasalização (em hebraico, a palavra "bruxo" é a mesma que para "fanhoso"). A alteração na emissão dos fonemas acarreta consigo uma virtude mágica, que as sobrepõe à dita Realidade Objetiva.

Donde vem a Ioga?

O gravíssimo problema das origens da ioga indiana se satisfaz com as seguintes conclusões: a) o único povo ariano a praticar ioga é o indu, o que prova que a Ioga não é indo-européia, é aborígene. Documentos: quando os árias entraram na índia (1.400 a.C.), florescia ao Norte a notável civilização de Mohenjo-Daro (Harappa), em contato com a bacia mesopotâmica (Tigre & Eufrates) e a civilização suméria.
Ídolos de deuses locais, descobertos pelas escavações Inglesas, se nos deparam em posturas JÁ DE IOGA, na atitude de Shiva.
Donde, pois, a Ioga?

Dos xamãs, a Ioga

A Ioga, conjunção do corpo com a alma, espiritualização da carcaça do bicho e incorporação do espírito, uma das mais extremas criações da Essência Humana, deriva suas posturas, "asanas", gestos e nós, diretamente, da prática xamanística de imitar os movimentos e atitudes dos animais, portadores da Verdade Original, Fonte da Pureza das Origens, para obter a dinamização dos recursos do organismo humano.
Do estoque de truques daqueles monstruosos feiticeiros de eras remotas, desabrocha de repente uma das mais altas e puras práticas do Espírito da espécie, antes de os gregos inventarem a Lógica.
Através do xamã (depois, do iogi), a natureza humana comunica com a universalidade dos seres e com a vitalidade dos bichos: já é universalizar bastante esses bípedes sujeitos à cólera, à varíola, ao amor, à decadência e à Morte, que só os egípcios conseguiram disfarçar tão bem.

Árvore genealógica

Do xamã, saiu o monge, que deu no guru, Pai dos Cínicos. O Padre do Deserto produziu o SUFI, que ultrapassava eremitas e cenobitas.
O asceta trouxe o existencialista, que o "beatnik" imitou.
Um "hippie" em movimento é um estradeiro como os profetas taoistas que levaram a pecha de bruxos só porque sabiam.

Velho & Novas

Os xetá, tribo indígena do Paraná, estudada pelo prof. Aryon Dall'Igna Rodrigues , ilustram o caso antropologicamente antológico em matéria de patologia da DEGRADAÇÃO CULTURAL.
Seu aparato tecnológico, mapeado por sérios especialistas, era do tipo mais primitivo, o que os distanciava da classificação de tupis.
O idioma não dava margem a dúvida: eram tupis. Como? Fugindo de seus predadores - caçadores, fazendeiros, a Civilização -, iam deixando pela beira das estradas do mundo e da vida todo o lastro das conquistas culturais que não dissessem imediatamente respeito à sobrevivência instantânea.
Um registro, porém, causava espécie: como havia velhos (e xamãs, portanto) numa comunidade dedicada em tempo integral à demanda da comida?
Os guerreiros mais jovens e robustos carregavam os anciãos literalmente nas costas, velhos na garupa, selva afora, mato adentro, sobre pedras e espinhos, através dos rios, distâncias imensas.
Piedade filial, à moda da China de Confúcio? Pena? Sentimentalismo? Por quê?
É que os velhos, por causa do vasto repertório de dados que acumularam ao longo dos anos difíceis, eram o depositório das informações úteis, vitais à manutenção da tribo, com um mínimo de óbitos e penúrias.
Valia a pena alimentá-los com a caça que só o vigor dos jovens abatia, porque eles, o xamã e os velhos, sabem.
Os velhos eram o computador da tribo, seu lado abstrato e estético, homens sem existência substancial, meramente relacionai: eles eram a alma.

Saber é ter

No ventre da espécie, o xamã (= pajé) vem sendo o embrião do químico (Senhor da Virtude dos Pós), do biólogo (hábitos noturnos das cobras, o ciclo mensal das mulheres), astrônomo e cosmólogo (estrelas entre o Sol e a Lua, eclipses & cometas), do psicólogo (explicar para si mesmo o comportamento dos Outros), do poeta (vedor da linguagem), do maldito, do Marginal, do analista de sistemas, e próprio sintetizador de Sistemas.
Através da prática assídua da Solidão, estado que não convém aos homens nem às abelhas adquiria aptidões irredutíveis a todas as que estavam em oferta.
Podia dar livre curso a seus pensamentos, sem as discrepâncias embaraçosas advindas da chamada Realidade Objetiva, ao qual estavam submetidos os outros.
Primatas o classificavam de fascista.
Ele ficava sozinho, matutando, e ficando sozinho, fumava, pensava, e pensando meditava, esse supra-cúmulo do pensar.

As diferenças do xamã

O grande espírito dos xamãs se espalhava pelos corpos da tribo, infundindo ânimo e alma àquelas musculaturas meramente eficazes: deus mesmo deve ter sido atingido pelo que havia de Único naquela tentativa.
Outros, aventemos, terão, sob o efeito de drogas, ido além: rigorosamente ateus, como um primitivo jamais teria sido, não houvesse xamãs.
Acreditando apenas num vago Tao, Natureza kantiana, Ordem e Regularidade no Seio do Existente.

Renas & Runas

Passavam a noite inteira, em frente de um fogo cuja lenha lhes tinha sido trazido por mãos mais calejadas que as suas, a elaborarem parábolas, com sólidos fundamentos num trocadilho que a ninguém ocorreria, porque todos estavam absorvidos na matança outonal das renas.
Uns xamãs (Buda?) teriam passado esbarrando em plena tangência do Nada: deuses não há. Nem Deus. Nem Ordem nem "regula in natura". Tudo acaso, precário e escasso. Tudo - nada. A Totalidade dos Seres coincide com o Grande Vazio. Vazio como essas noites. Essa chama. Essa solidão. Eu.

EU

Ninguém nunca disse EU, como um xamã. Em sua boca, esse verbículo, vocábulo dos mais minúsculos, irradiava um sol, a Luz do Fenômeno, se revestindo de todos os terrores, onipotente como a Nulidade donde tinha sido recuperada.
Era a evidência de um espírito, parte maior de idade de O Espírito. Um ser puramente relacional.
A palavra do xamã pode mais que a lança dos grandes guerreiros.
Nada. Eu. Isso.
Começava a grande aventura do NÓS naquela rotina monótona do ser.

 

Originalmente no caderno Anexo do Diário do Paraná em 30 de junho de 1977. Reproduzido em Revista Species nº 1, nov. 2015, Curitiba, PR, pag. 85.
colaboração enviada por Caio Ricardo Bona Moreira

 

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