Mais que apenas mais um

Paulo Leminski



E, por fim, Augusto.
Não é mais um livro de poesia nacional.
É "Poesia", 1949/1979, ed. Duas Cidades, arrebanhando a dita cuja (quase completa) do poeta Augusto de Campos.
São 250 pgs (artes de Júlio Plaza) = 30 anos de um poeta concentrado em poesia 100°% poesia, 24 horas por dia.
Poemas de oposição. Oposição ao conservadorismo. Ao academicismo. A inércia. A inépcia. Ao oportunismo carreirista (tudo coisas em que somos dos grandes produtores mundiais). "Poesia" traz o percurso inteiro do poeta.
A atenção se foca naturalmente nos momentos mais íngremes, desafiadores e "excessivos" dessa poesia limite, feita com raio laser, paulista, industrial, internacionalista, planetária.
E se admira ao ver que, ao contrário do que garantem os acadêmicos bem-comportados, essa poesia expressa, é emoção, é paixão. Os acadêmicos não conseguem ver sentimento na poesia experimental (eles só enxergam o experimento), assim como não conseguem ver realidade na prosa experimental.
Augusto de Campos é poeta romântico, seus poemas são poemas de amor, à mulher, à própria poesia, ao semelhante (seu poema "Greve", de 1961, é dos grandes poemas políticos da poesia brasileira).
Mas Augusto é, também, poeta que trabalha na infraestrutura das formas, inconformado com os recursos herdados, ampliando, a cada poema, o campo do expresso e do expressável. Para isso, convoca todo o arsenal de linguagens industriais, socialmente desenvolvidas, mas, hoje, sequestradas pela publicidade, a serviço da iniciativa privada (letra-set, foto-montagem, grafias e grafismos vários).
Sua poesia é um caso quase limite, na poesia escrita brasileira, de mensagem materialmente imprevisível, improvável, original, portadora de altíssimo teor de informação estrutural.
Por tudo isso, "Poesia" está destinado ao silêncio.
Silêncio da crítica, despreparada para abordar a inovação ou defensiva em relação a uma poética que coloca em xeque os valores tradicionais.
E silêncio do público, conservador por culpa da escola e da crítica.
O preço do volume (700,00) é barreira séria (para o leitor isolado, não para a biblioteca ou para as bibliotecas que deviam existir. . .).
Apesar do preço, não se fale em luxo. "Poesia" é caro porque convoca técnicas industriais: não existe raio laser barato nem se vai à lua com carro de boi.
Onde não deveria existir silêncio sobre "Poesia" é no âmbito dos poetas, entre os produtores, para os quais a poesia de Augusto de Campos só pode ser uma lição de inconformismo, radicalidade de linguagem e competência técnica.
O meio poético brasileiro pode ser muito mais rico que o latino-americano, mais limitado, de bola mais presa, encalhado na melodramática e retórica grandiloqüência hispânica. Há mais agentes e reagentes em atuação na poesia brasileira, mais aberturas, mais escolhas. As forças produtivas da poesia brasileira estão mais desenvolvidas do que as da poesia latino-americana em geral.
Isso se deve, em larga medida, à irradiação da poesia concreta dos anos 56-64, da qual Augusto de Campos foi um dos introdutores.
"Poesia" é a melhor hora para separar Augusto de Campos dos seus companheiros de aventura poética, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, que já publicaram suas obras (quase) completas e também merecem uma abordagem como individualidades.
A poesia brasileira dominante, hoje, reporta-se a padrões drummondianos e cabralinos (ou mais recentemente oswaldianos), canonizados como "normalidade". As mudas da "Rosa do Povo" do Drummond dos anos 40, saída da "Rose Publique", de Paul Éluard, de 1934, continuam a dar pé. Mas agora como situação, como classe dominante da poesia (mesmo com pretextos participantes ou populistas). A poesia de "Poesia" convoca pontos de referência novos, extraídos da melhor poesia universal de todas as épocas (provençais, "metaphisical poetry" inglesa, etc.), da qual Augusto é exímio tradutor.
Só a má fé ou a colossal burrice poderiam negar a "Poesia" o lugar que ocupa, no anêmico e raquítico panorama poético nacional, onde não se vê a ousadia, a bravura, o risco, mas apenas o requentar reiterado dos mesmos recursos, das mesmas soluções, do mesmo sempre igual.
O lugar de um momento único.

 

p. leminski
79

 

in Revista Código nº 4, Bahia, 1980.

 

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