Forma é poder
Paulo Leminski
1
Em práticas de texto, a ênfase no "conteúdo" está ligada a uma certa
noção de "naturalidade" na expressão.
A forma "natural" é a que revela o "conteúdo" de maneira mais imediata.
Preocupações com a "forma" obscurecem o "conteúdo".
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Essa "naturalidade", porém, só é possível através de um automatismo.
Só quern obedece a um automatismo pode ser natural.
Isso que se chama "naturalidade" é uma convenção. O natural é um
artifício automatizado, uma forma no poder.
A despreocupação com a forma só é possível no academicismo.
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Naturalismo, academicismo.
O apogeu do naturalismo (Europa, segunda metade do século XIX) coincide
com a explosão do jornalismo.
O discurso jorno/naturalista representa o triunfo da razão branca e
burguesa: o discurso naturalista é a projeção do jornalismo na
literatura.
4
O discurso jornalístico é discurso automatizado.
Sua automatização decorreu de razões práticas, do caráter de NEGÓCIO
que o jornalismo teve desde o início: a necessidade (contábil) de
rapidez de redação, num veículo/mercadoria de edição diária, a
necessidade de anonimato, sendo o jornal (a empresa) uma entidade
impessoal a abstrata.
5
A "enxutez" do discurso naturalista do século X1X é obtida através de
uma tremenda repressão exercida sobre a fantasia mítica: é um discurso
castrado.
A disciplina do discurso naturalista, sua contenção, são calvinistas,
puritanas, reprimidas a repressoras (Reich explica).
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Projetado na literatura, esse discurso "impessoal", "objetivo" e
"natural" é investido de "normalidade". Na raiz, a palavra
"normalidade" indigita sua origem de classe. "Normal" vem de "norma".
Norma é lei: poder. O discurso jorno/naturalista é o discurso do Poder.
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Esse poder é branco, burguês, greco-latino-cristão, positivista, do
século XIX.
Daí, as literaturas Latino-americanas, em seu momento de afirmação,
privilegiarem as variantes ditas "fantásticas" do realismo.
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No discurso jorno/naturalista, o poder afirma, sob as espécies da
linguagem verbal, a estabilidade do mundo, DE UM CERTO MUNDO, suas
relações e hierarquias. O discurso, esse, em sua aparente neutralidade,
é ideológico, embora invisível (ou por isso mesmo): é ideologia pura.
Sua estabilidade é catártica: nos consola e engana com a imagem de uma
estabilidade do mundo. De UMA CERTA ESTABILIDADE. Uma estabilidade
relativa à visâo do mundo de uma dada classe social muito bem
localizada no tempo e no espaço.
9
Contra a "neutralidade" do discurso naturalista branco, levantam-se os
discursos reprimidos das culturas oprimidas, o frenético dinamismo
mitológico dos fodidos, sugados e pisados deste mundo.
Dinamismo, também, de formas novas.
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A "neutralidade" (objetividade) do discurso jorno/naturalista é uma
convenção. Assim como a clareza, apenas uma propriedade (retórica) do
discurso.
Não há texto literário sem perspectiva, quer dizer, sem intervenção da
subjetividade.
No texto naturalista (ou jornalístico), essa perspectiva é camuflada,
sob as aparências de uma objetividade, uma Universalidade que -
supostamente - retrata as coisas "tal como elas são".
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Invoca-se em vão o nome do realismo, que se procura confundir com o
naturalismo.
Realismo, quer dizer, discurso carregado de referencialidade, não é
sinônimo de naturalismo.
Ao contrário.
O discurso realists nâo camufla a perspectiva.
Realistas (e não naturalistas) são textos como o "Ulysses" de James
Joyce.
Ou as "Memórias Sentimentais de João Miramar", de Oswald de Andrade.
12
O naturalismo é incompatível com o experimento. Com a linguagem
inovadora.
O realismo favorece-os.
13
A atitude naturalista convencional não enxerga a realidade, no
experimento em prosa.
Assim como não percebe sentimento no experimento poético. Pois
identifica a expressividade com os signos convencionais do expressivo.
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Uma prática do texto criativo, coletivamente engajada, tem a função de
desautomatizar. De produzir estranhamento. Distanciamento.
É desmistificação da "objetividade" inscrita no discurso naturalista.
Essa objetividade é falsa.
Ela apenas reflete a visão do mundo de dada classe social, de determinada civilização.
Sua pretensão a "discurso absoluto" é totalitária.
15
Violação. Ruptura. Contravenção. INFRATURA.
A poesia diz "eu acuso". E denuncia a estrutura.
A estrutura do Poder, emblematizada na
"normalidade" da linguagem.
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Só a obra aberta (= desautomatizada, inovadora), engajando, ativamente,
a consciência do leitor, no processo de descoberta/criação de sentidos
e significados, abrindo-se para sua inteligência, recebendo-a como
parceira e co-laboradora, é verdadeiramente democrática.
in Folha de S.Paulo: Folhetim, 04/07/1982. Reproduzido em ANSEIOS CRÍPTICOS, Criar Edições, Curitiba, 1986, p. 69 a 72.