No último Nicolau (3)*, o jornalísta Otávio Duarte procede a um balanço
da situação lítero-cultural do Estado, num artigo inteligente e
carínhoso.
Repassa o estado atual de coisas, certeíro no elogio ao nunca assaz
louvado Sérgio Rubens Sossélla, bem como lembra a necessidade urgente
de uma edíção da poesia (excelente) do meu amigo Jaques Brand.
Esqueceu, porém, a poesia do Puppí. Do Tadeu. Dos Prados. Do Solda. Do
Eduardinho. Do Ricardo. E do Beto Carminatti.
Como esqueceu Alice Ruiz, nome nacional, editada da Brasilíense.
Como esqueceu o Karam, o Rio Appa, o Padrella, o Paulo Vítola, o
Roberto Gomes e o Jamil Snege, o Wilson Bueno e esse escritor que se
chama Silvio Back.
Nem há muitas cidades no Brasil onde se ache tradutora do nível de
Josely Biscaia Vianna Baptista, recríadora de Carpentier e do Paradiso
de Lezama Lima, editada da Brasiliense a da Companhia das Letras.
Vacilo principal, porém, está na passagem em que o repórter proclama
"muito pouco" o que fazemos. E pergunta, bombástico, quem de nós chega
perto sequer de Guimarães Rosa.
Ora, isso é um disparate. Dois. aliás.
A produção paranaense (que não é só Curitiba), evidentemente, não pode
ser cotejada com a produção das duas megalópoles, Rio e São Paulo, que
engolem cérebros de toda parte (Duarte é um exemplo). AIiás, as
megalópoles não andam lá grande coisa ultimamente (como o resto do
país, aliás)... Quem está fazendo grande poesia no Rio de Janeiro,
hoje? Ou escrevendo grandes romances?
Nossa produção tem que ser cotejada com a dos Estados. Aí, o que temos
não é tão pouco, como quer Duarte.
Perdemos estourado para Minas, claro. Mas quem não perde? A literatura
mineira, herdeira de uma tradição letrada que remonta ao século XVIII,
é superior em qualidade à de muitos países da América Latina. Estado
que consegue produzir um Murilo Mendes, um Guimarães Rosa e um
Drummond, além de seu excelente segundo time, é hors-concours.
Literariamente, a Bahia de Jorge Amado e de João Ubaldo também tem
tradição secular de qualidade acumulada, além de uma riqueza de cultura
popular (de que nem fazemos idéia), manifesta na pujança da música
popular (e poesia) de Caymmi e João Gilberto, até Caetano e Gil.
O time letrado do Rio Grande do Sul é muito forte também, com o velho
Quintana ainda atívo, o legado de Érico Veríssimo e a presença mais
recente de nomes como Moacir Scliar e Caio Fernando Abreu.
Tirando esses Estados, não acho quo a gente faça papel tão feio assim,
no campeonato nacional das letras.
Parana é Estado recente. Estamos fundando uma tradição, um passado, um
repertório coletivo.
Só Curitiba tem passado literário rico, o Simbolismo do início do
século.
É injusto um balanço quo não leve em conta esses dados, injusto,
maldoso e desonesto.
A prosa de Dalton Trevisan, por exemplo, admirada nacional e
ínternacíonalmente, não é tão pouca coisa como imagina o repórter.
Com a morte de Rosa e Clarice Lispector, Dalton faz, com certeza, a
melhor prosa da ficção do Brasil, a mais ágil, mais malandra, mais
louca.
Quanto a ninguém chegar "perto sequer de um Guimarães Rosa" quem, em
qualquerlugardo Brasil (ou do mundo) atualmente chega? Otávio Duarte,
por acaso?
Cobrar, é fácil. Eu quero ver fazer.
Um Guimarães Rosa paranaense...
Ora, isso não existe.
Cada artista representa um momento. E, como ele, é irrepetivel.
Nunca mais vai haver outro Drummond. Um outro Caetano. Um outro João
Gilberto.
Cultura, literatura, não é futebol em que, a cada ano, os times se
revezam num campeonato.
Ninguém pode ter a glória do outro.
Principalmente se as gerações são diferentes.
Nunca mais ninguém vai escrever Grande Sertão: Veredas.
Que bom. Escreverão outras coisas. Com outras modernidades, outros
valores.
A prevalecer o raciocínio do Duarte, vamos ficar perseguindo recordes
de ontem, como se a líteratura parasse no espaçotempo.
Hoje, uma noveleta rápida, esperta e elétrica pode valer tanto quanto
valeu Grande Sertão. Basta saber ler o tempo.
Os tempos mudam, a vida muda.
Senão vamos ficar nesse papo ridículo que anda por aí que, agora,
Affonso Romano de Sant'Anna é o sucessor de Drummond.
Que diabo!
Esse país está uma droga, mas a monarquia acabou.
Que cada um seja aquilo que é e, enquanto tal, seja lido.
Denunciando outras mazelas da produção cultural curitibana (não
paranaense, já que omite a figura superlativa de Domingos Pellegrini,
um dos mais fortes ficcionistas brasileiros de hoje, o mais fundamente
paranaense de todos), Duarte não esquece da "epídemia de
hai-kais", segundo ele, "o gonococus atual".
Ora, a prática do hai-kai está tendo efeito muito salutar sobre
a derramada verborragia brasileira de tantos Poemas Sujos por
aí, afluentes adiposos de Nerudas e de toda uma empolada retórica
"latino-América'; de que não precisamos (temos a linhagem Oswald,
Bandeira, Cabral e os concretos, enxuta, concisa, essencial, só nervos
e osso).
E vamos ser francos. O que Duarte fez literariamente para, do alto de
uma autoproclamada suficiêncía, ficar emitindo juízos globais sobre uma
dinâmica cultural para a qual não contribuiu com nada?
Sobre a safra e a colheita, fale quem trabalha nela.
Emitir juízos à distância é fácil.
Faça. Depois, abra a boca.
In: Jornal Nicolau, ano I nº 4 outubro de 1987, p. 10.
* NOTA: Leia-se esta matéria sobre a polêmica e o texto do Nicolau que a originou:
O primeiro ano de Nicolau